COACH LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro. Um profissional técnico, especializado em criação, um professor de escrita e um parceiro, ao mesmo tempo. Experimente, é terapêutico e libertador. Perpetue as histórias que só você tem para contar.
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A PRIMEIRA MORTE

 

Heitor era um jovem tímido e retraído, tinha um sorriso largo e fácil. Não era de falar muito. Um cara normal que adorava ser um cara normal. Amigo dos bons, daqueles que comprava nossas brigas ou corria junto. Mas, nunca deixava ninguém na mão.

Jogava bola, nem melhor nem pior do que a maioria. Um zagueiro zagueiro, que dava de bico na bola para onde o nariz apontava. Participante diário das peladas, não se destacava, nem queria.

Até aquele dia, quando ao intervir a favor de uma garotada mais nova, como era tradição no bairro, que discutia com um porteiro que confiscara a bola da molecada, foi surpreendido por uma facada covarde e traiçoeira desferida pelo porteiro embriagado que acabara de rasgar a bola com sua peixeira. Foi levado para o Hospital Miguel Couto pelos amigos. O banco traseiro do carro ficou ensopado de sangue.

Após a longa cirurgia, os médicos não quiseram fazer prognósticos.

Ninguém acreditava que o pior pudesse acontecer. Ele era jovem, forte e saudável. Era um de nós.

Os dias se passaram e ele obteve uma pequena melhora sem, no entanto, deixar a UTI. A notícia a angústia e a preocupação pioravam. E ele também. Grupos de amigos iam, constantemente, visitá-lo no Miguel Couto e, como ele não podia receber visitas na UTI, tínhamos que burlar a vigilância para poder vê-lo e acenar de longe, através da janela de vidro. Ele sempre acenava de volta.

Jovens se acham imortais e ninguém acreditava que ele também não fosse. Infelizmente, não era. O Heitor morreu. O impacto foi desorientador para nossa turma de adolescentes.

Choramos muito.  Inconsoláveis. Nossos pais choraram conosco e isso aumentou ainda mais o peso e a gravidade daquele evento inédito em nossas vidas, não havia instância a qual recorrer contra aquela fatalidade. Foi pesado. Havia abraços se confortando, sem consegui-lo. Havia incredulidade, perplexidade e muita tristeza. Uma onda de choque se abateu sobre todos nós. A morte mostrou sua cara e todos ficamos apavorados. Ela existia e era terrível.  Era para sempre. Todos nós sofremos uma mudança profunda e irreversível após aquela perda. 

Heitor tinha 18 anos e foi a primeira morte que nossa adolescência enfrentou.

 

Edmir Saint-Clair

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QUEM É FIEL?

Marília entrou no templo exalando felicidade e gratidão por todos os poros. A altura da nave e a vastidão do vão livre que a abóboda abarca provocam uma imediata sensação de pequeneza. Essa é a intenção. Ínfima e invisível, esse é um sentimento que sempre a acompanha, e a todos a sua volta, aquele local apenas reafirmava isso.  Todo em mármore branco, a iluminação sofisticada é a mesma de um teatro moderno, com todo o maquinário necessário para transformar o culto em diversos ambientes sugestivos, do céu ao inferno, literalmente. Os pastores sabem que a tecnologia, se apresentada com má intenção para quem não a compreende, provoca o mesmo efeito factóide que as supostas magiasmanifestações sobrenaturais encenadas incutem nas mentes dos desesperados e ignorantes.

Aquele dia era muito especial para Marília, o mais de toda sua vida. Ela acabara de receber as duas notícias que pelas quais mais orou: o empréstimo que ela e o marido haviam pedido ao banco para iniciar o próprio negócio acabara de ser creditado em sua conta e, para completar a graça alcançada, o teste confirmou a gravidez pela qual Gregório e ela tanto esperavam. 

Estava absorta em suas orações quando percebeu o pastor adentrando a sala no fundo do recinto. Dirigiu-se até lá, enquanto passava um zap para Gregório, contando-lhe que estava indo pagar o dízimo prometido pela graça do empréstimo. A notícia da gravidez tão ansiada ela queria dar pessoalmente.

Aguardou ansiosa sua vez de ser atendida pelo pastor. Estava nas nuvens, nunca tivera tanta satisfação e certeza de que, desde que começaram a pagar seus dízimos, ela e o marido haviam conseguido muitas coisas importantes. Quando entrou na sala, postou-se de joelhos diante daquele pastor que não lhe sabia sequer o nome.

- Em que posso lhe ajudar minha filha? Falou o pastor sem abaixar a cabeça na direção onde a pobre se postara.

- Consegui o empréstimo no banco, pastor, tudo que a gente pediu. Uma graça sem tamanho. Como o Sr. nos orientou, pedimos um pouco mais do que precisamos para poder honrar nosso dízimo com a sua igreja.

- Nossa igreja irmã... nada é meu. Você vai fazer o PIX com o valor do dízimo como o combinado com o Nosso Senhor?

- Claro pastor, vim aqui para cumprir minha obrigação com toda a gratidão da minha alma.

- Irmã, preencha tudo junto com o irmão Raulino aqui ao lado. Ele vai lhe ensinar a lidar com o aplicativo.

- Muito obrigado pastor, nunca usei e não sei direito como fazer.

Em momento algum o pastor olhou para o seu rosto. Se precisasse, não saberia descrever nem a cor de sua pele.

Ela estava muito feliz quando saiu do templo e começou a caminhar na direção da subida do morro quando uma bala perdida despedaçou sua cabeça.

Edmir Saint-Clair

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O HOMEM QUE MATOU O MINISTRO

Ele desligou a TV do bangalô do resort, deu um soco na mesa de cabeceira e balbuciou:

- Tua hora tá chegando!  Filho da puta!

 O local era extremamente luxuoso, ele nunca havia estado num resort de padrão tão alto. Planejara aquele fim de semana com todo o cuidado e o mais detalhadamente possível. Era seu último ato.

O tempo amanheceu nublado, mas a previsão era de sol no final de semana. Ele saiu para caminhar e fazer um reconhecimento do local. Seus planos haviam sido feitos levando em conta a visualização virtual em 3D que havia no site do resort. Precisava checar com mais precisão, in  loco.

Caminhou até o píer e certificou-se que o iate que seu alvo irá usar está sendo preparado por meia dúzia de funcionários. Essa marina é utilizada pelos proprietários de iates e embarcações de passeio da região. Um local de magnatas, celebridades, profissionais muito bem sucedidos e políticos, juízes e ministros corruptos da suprema corte. Alguns acumulavam mais de uma dessas ocupações.

O ódio não o abandonava, nem quando sentiu o sabor combinado de vinho branco com camarões bem graúdos. A tristeza sobrevinha a qualquer possibilidade de um sorriso. Suas perdas haviam acabado com qualquer possibilidade de que isso ocorresse. De que qualquer coisa boa viesse a ocorrer. A única possibilidade de ainda conseguir sentir algum prazer na vida era através da vingança.

Terminou a taça de vinho e caminhou até um pequeno e charmoso prédio de pedras aparentes com detalhes em madeira rústica, onde se certifica como funcionam as saunas, duchas e salas de massagens.

- Se houver muitas pessoas circulando, aqui não é possível. Pensou.

O restaurante no final do píer principal, debruçado sobre a baía de águas transparentes, só tem uma entrada e saída. Nada feito.

Transmitir ao vivo sua missão era um dos objetivos. Um celular no bolso da camisa faria a transmissão. Ele já havia testado várias maneiras, mas o teste que faria in loco era o mais importante.

Continuou caminhando pelo enorme e luxuoso resort. Foi até as cavalariças, sempre gostou de cavalos.  No píer de pequenos barcos, o hóspede tem à sua disposição Jet-skis, caiaques, pequenos barcos à vela e lanchas menores.

Vários profissionais de cada especialidade são oferecidos para os iniciantes. Seu filho mais velho iria se esbaldar aqui...O ódio só aumentava se misturando com a dor de um vazio  lancinante e intransponível. 

Em qualquer lugar do resort o hóspede pode pedir qualquer coisa que deseje que lhe será servido.

Segunda garrafa de vinho branco. Nada vai tirar seu foco.

Segue até chegar a um pequeno bosque à beira da lagoa,  onde uma pista de terra batida está sinalizada para corridas e caminhadas. A pista toda tem uns 800 metros, em formato oval. Em todo trajeto, muito arborizado, existem bancos e bebedouros. O local é perfeito, como esperava. Existem diversos pontos cegos. O crápula gosta de caminhar e não vai perder a oportunidade de fazê-lo num local tão bucólico e reservado.

Nesse fim de semana não há qualquer motivo facilitador que indique que o resort terá grande movimentação. O preço altíssimo e a situação caótica na qual o país foi lançado, depois que a Suprema Corte começou a emitir sentenças estapafúrdias e inconstitucionais, tornavam aquele local um privilégio para muito poucos, que não tinham vergonha alguma dos atos que praticavam para pagar aquele luxo nababesco.

Foco.

Não podia se deixar levar por pensamentos pouco práticos. Aquele local se confirmou perfeito, mas tem que haver uma segunda opção. Pode chover ou ele pode simplesmente resolver não caminhar.

Voltando até a sede, resolveu que se o ministro não fosse caminhar ele atiraria na oportunidade que tivesse. Não era sua intenção sair vivo dali mesmo. Só queria se certificar de que tinha transmitido a Live dos últimos segundos de vida daquele filho da puta que lhe causara tanta dor. Pensou nos entes que perdera, incluindo a si mesmo e a sua fé. Ele devia aquilo à muita gente querida que não teve chance alguma diante daquela horda corrupta que tomara conta de tudo.

Todos os pensamentos convergiam para o mesmo ponto e alimentavam sua certeza. Percebeu que finalmente sentiria algum alívio na alma atormentada.

No dia seguinte, não acordou com o toque do celular. Era muito mais garantido antigamente, quando as telefonistas dos hotéis faziam o papel do despertador. Olhou a hora e levantou-se assustado. Em segundos, sua adrenalina elevou-se a ponto de ver seu coração pulsando sob a pele. Colocou uma bermuda e a camisa já preparadas, certificou-se que a arma estava carregada e a colocou no espaço entre o cós da bermuda e suas costas. A camisa larga disfarçava perfeitamente. Calçou o tênis e saiu. Antes que chegasse ao restaurante viu o ministro já se encaminhando para a pista de jogging.  Atrasou um pouco o passo para não se cruzarem. Estava suando, mas não estava calor.

Quando chegou à pista o ministro já estava sumindo ao fundo do pequeno bosque, o local estava tranqüilo, sem outros corredores. Não havia seguranças no local. Realmente, pensou, ele se acha acima do bem e do mal. Faz o que bem entende, passa na cara do país e não está nem um pouco interessado em quem sofre as consequências. Não teme nada.

Na pista, tomou o sentido oposto ao do ministro e iniciou sua caminhada final.

Havia meses, que esperava por esse momento que, finalmente,  chegara. Caminhou até que não pudesse mais ser visto da entrada do bosque, tirou o celular, ligou a câmera de vídeo, colocou-a on-line para transmissão da live pelo Facebook, ajustou no bolso preparado e sentou-se.

Não encostou sequer as costas no banco quando o ministro e seu amigo aparecerem saindo da curva. Pensou nos entes queridos e falou, já transmitindo ao vivo:

- Ele se acha um Deus. Vou provar que ele não é.

Quando o ministro estava a cerca de 5 metros ele levantou-se, sacou a pistola, chegou bem perto, olhou fundo nos olhos aterrorizados do ministro e falou:

- É ministro, vamos ver se você é Deus mesmo...

O ministro balbuciou algo ininteligível e babou. Ainda babando e com os olhos arregalados, ficou parecendo ainda mais com um sapo, implorando pela vida. Chorando, urinou-se copiosamente. Tudo mostrado ao vivo naquela live que se tornaria famosa no mundo inteiro.

Ele não falou mais nada. Apenas sorriu como há muito não o fazia e atirou entre os olhos.

O país inteiro comemorou como se fosse carnaval.

- Edmir Saint-Clair

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ANOITECEU

 

    Seus últimos vínculos familiares haviam acabado de se quebrar. Em frente ao laptop, ouvindo o tema de Cinema Paradiso, sentiu o peso de suas dores. Eram muitas, eram todas que nunca esperou sentir, que lutou a vida inteira para não sentir, que chegou a desistir de sentir coisa alguma para não senti-las.

A música tinha esse poder sobre ele, abrir suas comportas transbordantes, fazendo-o cair diante de suas tristezas e chorá-las. De nada adiantava a raiva com que tentava ocultá-las de si. A raiva que sentia da dor e a raiva que sentia de si por senti-las.

Não é mais, há muito, o amante de corpo e alma se deliciando com a vida, com os encontros e com as manhãs cheias de sol.

Não gosta mais das manhãs, sabe o que pode vir depois delas. Gosta de acordar após o meio do dia, se possível bem depois, longe das manhãs. É entardecer, anoitecer, não manhãs. Há muito, nada nasce nele.

A noite o fascina, o breu, o silêncio, o nada.  Não há mais mistérios nas suas noites, só descanso. Não há mais o que esperar das manhãs.

Anoitecera.

– Edmir Saint-Clair
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O SOLITÁRIO

 

O conheci apenas por bebermos cerveja no Clipper, na Rua Carlos Góes, nos fins de tarde após o trabalho. Sempre calado, falando o necessário ou apenas respondendo. Não se alongava nas conversas ou emitia opiniões muito pessoais, sempre esquivo. Mas, era simpático.  Morava na mesma rua e nunca o víamos acompanhado.  Ninguém sabia nada a seu respeito a não ser que tinha um filho, que só via nas férias. O molequinho era bem simpático, bem mais extrovertido que o pai. Nas poucas vezes em que o vi, estava sempre rindo e solícito com todos os amigos do Clipper, que davam atenção especial a ele.

Ele era contador e trabalhava num escritório no centro da cidade, o que não colaborava em nada para que conseguíssemos formar um quadro mais profundo sobre a personalidade do nosso amigo tímido. Recusava sistematicamente os convites para festas ou qualquer outro evento. A princípio, pensávamos que tinha amigos em outro lugar, mas com o tempo percebemos que nunca estava sequer arrumado para sair. Sempre só. Vestia-se discretamente e sempre que chegava ao bar, o fazia de forma tímida. Encostava-se no balcão e pedia uma cerveja. Sempre esperava que alguém o chamasse não se chegava por livre iniciativa.

Ante véspera de natal. Estava na fila dos correios para despachar alguns cartões quando o vi na fila de encomendas com uma caixa grande. Acenei e ele retribuiu, logo que a despachou veio fazer-me companhia.

− Tudo bem? Mandando presentes?   Perguntei.

− Para meu filho. Ele está morando em São Paulo. Respondeu.

− Paizão hein? Falei.

Ele sorriu e tornou a olhar para o chão.

− Aonde você vai passar o natal? Perguntei.

− Por aí, não gosto dessas datas...

Aproveitei para convidá-lo.

− Vai um pessoal passar lá em casa. Todos os solteiros, separados e largados em geral. Vai passar lá com a gente. A gente tinha mesmo ficado de te convidar, o convite é da galera toda. Quem te encontrasse primeiro convidaria.

Ele agradeceu, baixando novamente a cabeça, me pareceu ter gostado do convite. Só achei. Voltamos caminhando juntos pelo Leblon, da Praça Antero de Quental até a Rua Carlos Góes, e poucas vezes em minha vida, lembro-me de ter percebido tanta solidão em uma pessoa quanto a que percebi nele durante este curto trajeto. A solidão estava estampada em sua forma de caminhar, na sua maneira de falar de futebol ou no desânimo de suas tentativas de risos. E, principalmente no olhar. Uma pessoa tão fechada que não sabia como dizer-lhe que após esses anos todos de chopp no Clipper, sentia-me seu amigo. Não falei. Ao passarmos pelo Clipper, o chamei para tomarmos uma cerveja, mas ele disse que tinha de ir. Parou um pouco adiante e me chamou:

− Quero te agradecer pelo convite para o Natal. Muito obrigado.

Desta vez, sua a emoção não foi imperceptível, deu-me um forte aperto de mão e vi que seus olhos brilharam úmidos. Olhou para baixo seguiu seu caminho.

 Comentei com os amigos que havia feito o convite e a emoção de seu agradecimento. Todos se mostraram alegres por ele ter aceitado, e percebi que todos ali também gostavam dele.  Papo vai, papo vem, e decidimos dar um presente de Natal para ele. A Tininha se prontificou a escolher e comprar. Fizemos uma vaquinha ali mesmo.  Até o Seu Antonio, do Clipper, contribuiu fato raríssimo.

            Na noite véspera do natal, estávamos lá em casa, animados, como sempre que passamos com quem gostamos. Lá pelas duas da madrugada, percebemos que ele não viria. Lamentamos, mas isto em nada alterou nossa grande noite. Afinal, ele nunca vinha mesmo. Violões rolando até de manhã, e aqueles papos doidos que só acontece entre grandes e queridos amigos.

            Uma semana depois, a Tininha aparece no Clipper chorando:

− Estava descendo de casa e vi alguns móveis sendo colocados numa Kombi de mudança e perguntei, pro Seu João, porteiro, de quem era. Ele disse que eram do Ricardo e que ele havia morrido na noite de Natal, atropelado quando atravessava a avenida Borges de Medeiros, no Jardim de Alah.

Todos ali choraram a morte daquela pessoa solitária, que morreu sem saber que tinha amigos e que ganharia um presente de Natal.

Nunca soubemos se ele estava indo ou não cear com a gente naquela noite

- Edmir Saint-Clair


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