Nunca entendi
direito o motivo da entrada do Padre Frederico na vida da minha família naquele
início do ano de 1971. Meus pais não dividiam com os filhos quaisquer oscilações
naturais da vida comum e aparentemente tranquila que levávamos. Mas, é claro
que existiam e, naquele momento, eles resolveram recorrer a uma ajuda extra de
um padre católico. A religião católica em si não era novidade lá em casa, ao
contrário, fomos criados como toda nossa geração com aula de catecismo e
primeira comunhão na Igreja Santa Mônica do Leblon. Mas, entre os irmãos ninguém
tinha muito interesse pelo assunto. Cumpríamos o que nossos pais pediam, sem
questionamentos, como todos os nossos amigos.
De um dia para o
outro, um padre alemão, chamado Frederico, começou a ir todas as quintas-feiras
à noite para cumprir o mesmo ritual: primeiro rezava uma pequena missa num
altar improvisado na cômoda do quarto dos meus pais, seguido de um lauto jantar com
pratos saborosos e diversificados. O padre sempre caía matando na refeição. Comia que
nem um condenado e haja comida para sustentar aquele corpanzil. Ele era alto, cerca de 1,90m, louro de olhos azuis, um alemão
bem alemão, inclusive nascido na Alemanha, como todo alemão tem que ser. Sua
aparência, o sotaque forte e o jeito circunspecto faziam com que sua figura
ganhasse ares extraordinários. Eu e meus irmãos quase não falávamos, mas,
sentíamos a cerimônia daqueles momentos. Acima de tudo, era estranho.
Não durou muito
aquele período, talvez pouco mais de meio ano, mas toda quinta-feira tinha
missa e jantar do padre Frederico. Só lá em casa tinha isso e a
gente não comentava com ninguém. Lembro-me de uma conversa, entre os adultos, de que
era proibido rezar missa na casa de fiéis sem autorização prévia, o que ativou
ainda mais minha curiosidade, afinal aquilo era algo proibido.
Certa ocasião
minha mãe resolveu agradar mais o padre Frederico e conseguiu uma receita do
tal do chucrute, um prato típico alemão, do qual nunca havíamos ouvido falar.
Quinta-feira, e lá foi ela para a cozinha preparar a receita junto com a nossa empregada, que era uma baiana que cozinhava divinamente, mas nunca tinha ouvido falar em chucrute.
Veio à noite, família reunida, padre Frederico aguçou nitidamente o olfato
assim que adentrou a porta. E apressou-se em iniciar a “missa” que, naquele dia, foi bem mais curta. O padre
estava com fome. Já na chegada meu pai o avisou que tinha uma
surpresa gastronômica para ele no jantar. O padre, que não era de recusar
prato algum, ficou ainda mais animado. Minha mãe notou a animação e segredou, igualmente animada, para nós:
- Ele sentiu o cheiro do chucrute!
Minha mãe deixou a finalização do chucrute aos cuidados da Zoraide e fomos para o quarto assistir a missa.
Quando voltamos para a sala, a mesa estava posta e diversos pratos, carne, ave e peixe o
esperavam, além dos acompanhamentos, dentre eles o tal do chucrute.
O plano da minha
mãe era não falar nada e deixar que o padre tivesse a agradável surpresa de
descobrir o prato típico de sua terra natal no meio dos outros. Combinou
conosco que ninguém deveria falar nada. Todos cumprimos à risca o trato.
O jantar
transcorria normalmente, o padre foi se servindo, um a um, de todos os pratos
com igual apetite, mas, nada de pegar o chucrute. De repente, minha mãe olhou para a travessa de chucrute e estranhou a cor da combinação que deveria ser só de repolhos e molho branco. Estava com a cor de azeite de dendê pálido dada a mistura com o molho branco. Sincronizadamente com a estupefação veladissima da minha mãe, padre Frederico pega a travessa e serve-se. A príncípio apenas um pouco, para provar. Ato contínuo, faz uma expressão de aprovação e serve-se fartamente daquilo que ninguém sabia o que era. Sorrindo, pergunta com seu forte sotaque:
- Muito gostosa esse comida. Gosta muita de azeita de dênde. Como chama?
Sem perder a pose, minha mãe respondeu:
- É uma especialidade da nossa cozinheira baiana.
Ele nunca soube que aquilo era um legítimo chucrute baiano, que acabara de ser inventado naquele momento.
Nunca soube por
que o padre veio nem porque não veio mais. Mas, sempre que ouço falar
em chucrute, lembro-me do chucrute baiano do padre Frederico.
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