ORIENTADOR LITERÁRIO

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O DIA EM QUE CONHECI UMA LENDA

  Janeiro, férias escolares. 

Eu tinha uns 12 anos e acabara de ganhar meu primeiro violão no último natal. Passava a maior parte do tempo entre a praia, as peladas à tarde e o violão no resto do tempo. Dias cheios, quentes e inesquecíveis. 

O condomínio dos Jornalistas, no Leblon, fervia de crianças e adolescentes. Literalmente, dos seis aos vinte havia gente de todas as idades. Bem no centro do condomínio havia um rinque de patinação que servia, principalmente, para o pessoal ficar sentado nas bordas. No centro, tinha de tudo, menos gente patinando. À noite, a festa continuava com brincadeiras de polícia e ladrão com 50 crianças em cada time correndo por uma área que corresponde a um quarteirão inteiro do Leblon cheio de árvores e com espaço à vontade. Era uma festa diária e interminável.

Os quase adolescentes como eu, ficavam conversando e e tocando violão, tentando chamar a atenção das meninas. Eu ficava olhando e tentando repetir a posição dos dedos no meu violão. Eu levava jeito e em pouco tempo estava tocando algumas coisas mais simples,  Carpenters, James Taylor, Carole King e outros adocicados do gênero. Dos brasileiros eram poucos que faziam sucesso na nossa roda; Novos Baianos surgindo, Milton Nascimento e o clube da esquina, Mutantes e o Terço eram as exceções.

Os FIC (Festivais Internacionais da Canção da Globo) estavam em decadência e já não despertava a nossa atenção como antes. Só a minha, que sempre fui ligadíssimo em música desde que me entendi por gente, e me interessava por tudo. Acompanhava pelo jornal o passo a passo das etapas e sabia quem eram todos os participantes, tanto da fase nacional quanto da internacional.

Mas, quem fazia sucesso naquelas férias era James Taylor. Naquele dia, depois da décima repetição de “You've got a friend” senti que era hora de subir para casa, naquela época ainda tinhamos hora determinada pelos pais para voltar.

Quando cheguei à minha portaria, já estava esperando o elevador um cara alto, jovem, muito magro e com os cabelos penteados de um jeito engraçado. Puxou conversa quando viu meu violão. Falou que era da Bahia e estava na casa dos primos, Horácio e Heloísa, que eu conhecia desde sempre, apesar de serem mais velhos do que eu. Disse que era cantor e que iria se apresentar no FIC da TV Globo. Fiquei entusiasmado com aquilo, o cara era muito simpático e gente boa, o que não era comum, já que os “caras mais velhos” não davam a menor importância para pirralhos como eu. Quando chegou meu andar, abri a porta, me voltei para ele e perguntei:

- Como é seu nome? Vou assistir você na TV.

Ele respondeu sorrindo:

- Raul Seixas.

- Edmir Saint-Clair

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COERÊNCIA

A coerência é o encaixe perfeito entre o que fazemos e o que pensamos. Sua principal consequência é um bem-estar indescritível.

A coerência é o alicerce sobre o qual construímos nossa identidade e caráter. Reflete a harmonia entre nossos pensamentos, palavras e ações, garantindo que nossas intenções estejam alinhadas com nosso comportamento. A coerência não é apenas uma virtude abstrata, mas uma prática diária que molda quem somos e como somos percebidos pelo mundo.

A coerência cria uma base sólida de autoconfiança. Isso se traduz em uma vida mais equilibrada e autêntica, onde nossas escolhas refletem nossos verdadeiros valores e objetivos. A coerência nos permite navegar pelo mundo com clareza, sabendo que nossas ações estão em sintonia com o que acreditamos ser correto. Levando-nos a ser mais assertivos e menos ansiosos diante da diversidade de pequenas decisões que somos obrigados a tomar todos os dias. Resumindo, passamos a confiar mais nas próprias decisões e intuições.

Por outro lado, a falta de coerência pode causar um descompasso profundo. Quando nossas ações contradizem nossas palavras, criamos uma dissonância interna que pode levar a sentimento de culpa, vergonha e insegurança. Esta incongruência pode minar nossa autoestima e nos fazer questionar a própria identidade, despertando comportamentos que podem chegar a ser dissociativos.

Na rotina diária, a ausência de coerência pode ter consequências ainda mais tangíveis. Um indivíduo que constantemente promete algo, mas não cumpre, acaba perdendo credibilidade tanto no âmbito pessoal quanto profissional. A confiança, uma vez quebrada, é difícil de ser reconstruída, inclusive a autoconfiança. Além disso, a falta de coerência pode resultar em uma vida desorganizada e caótica.

É essencial cultivar a coerência para manter a harmonia interna e externa. Nesse sentido, podemos dizer que, a busca pela coerência prática, é um dos principais pilares para se estabelecer uma vida saudável e satisfatória. É a viga mestra da felicidade.  Isso exige reflexão, autoconhecimento e uma disposição constante para alinhar nossas ações com nossos princípios. E só podemos alcançá-la com muita determinação.  Ao praticar a coerência, não apenas fortalecemos nossa própria identidade, mas também inspiramos confiança e respeito nos outros.

Segundo o filósofo Ralph Waldo Emerson: "O que você faz fala tão alto que eu não consigo ouvir o que você diz."

A coerência é como um fio condutor em nossas vidas, nos guiando rumo a uma existência mais plena e cheia de significados para nós mesmos e para quem amamos.

Afinal, quando deitamos no travesseiro, é a nós mesmos que temos que dar satisfação sobre tudo que fizemos.

Edmir Saint-Clair 



FELICIDADE EXPLÍCITA

 

Eu e minha filha sempre fomos muito ligados. Mesmo durante os muitos anos em que ela morou em Barcelona, onde estudou cinema, nos falávamos quase todos os dias, muitas vezes por horas seguidas. Falta de assunto nunca foi problema, eu sempre tinha uma passagem de vida para contar. Sendo assim, ela conhece de cor a maioria das histórias mais interessantes que vivi. Ambos somos apaixonados por animais e, em especial, por cães, dessa forma, a história do maior amor da minha vida depois dela própria, minha Cocker spaniel Angie, já havia sido contada de cabo a rabo algumas centenas de vezes durante nossas longas e deliciosas conversas. Há poucos dias, ela postou no Instagram um conteúdo sobre o cantor David Bowie, cuja mulher se chamava Angie e fora a inspiração para a minha Angie. Não resisti e comentei no post, pela milionésima vez para ela, a história de porque minha Angie tinha esse nome. Eu mesmo não resisti a minha própria “caduquice” e comentei:

- Já te contei essa mesma história umas mil vezes né filha?

E ela me respondeu:

- E eu amo todas as vezes.

 Edmir Saint-Clair

UMA LADY CHAMADA ANGIE

Era especial e única.

− Angie!

Era só eu a chamar e ela largava o que estivesse fazendo ou comendo e corria para ao meu lado o mais rápido que conseguia.

Era Linda, era muito doce e minha melhor amiga.

Era uma Cocker Spaniel Inglesa, caramelo e branca, com orelhas longas e o olhar mais cativante e amável que já vi na vida. Uma princesinha que trazia em si toda a alegria do mundo.

Ela foi um presente de meu grande amigo Bode.

- Bode não, Carlinhos!

- Que Carlinhos?

- O Bode.

Fui buscá-la em Jacarepaguá numa noite de verão, estrelada e quente. A noite em que a conheci tinha uma lua cheia diferente, e ela era ainda bem filhotinha, tinha entre dois e três meses de vida.

Os primeiros dias na nossa casa foram de deslumbramento mútuo.

Logo não tive dúvidas: Ou, ela era uma pessoa encarnada numa cadela, ou eu era um cachorro encarnado num adolescente.

Falávamos a mesma língua. Um Amor à primeira vista daqueles bem espontâneos e legítimos.  Ela parecia a personagem Lady, do desenho A Dama e o Vagabundo de Walt Disney, e o vagabundo, naquele caso, era eu sem dúvida alguma. Ela tinha nobreza, ela era uma autêntica Lady. Uma obra de arte da natureza. Uma doçura e um charme natural que conquistava a todos que a viam.

Ela foi a Cocker spaniel inglesa mais adestrada que conheci e nunca precisou usar coleira para nada, nem para atravessar a rua ao meu lado. Aprendeu brincando e nunca dei uma palmada sequer. Era obediente como um cão adestrado por profissionais. Não me recordo de tê-la ensinado a não fazer as necessidades em casa, até mesmo porque eu não saberia como fazê-lo, mas a partir de pouco tempo, ela simplesmente não fez mais. Mesmo quando estava super apertada, esperava tempos intermináveis até que eu a levasse para passear. Havia um entendimento mútuo fascinante. 

Ela não latia. Num certo momento, até achei que ela poderia ser muda. Ela já estava com quase um ano de idade e nunca a tinha ouvido latir. Até que a ouvi. Um latido meio rouco, engraçado, diferente e com personalidade. O latido único e inconfundível da Angie, nunca mais ouvi nenhum outro cão que latisse daquele jeito.

Ela ia comigo para todos os lugares. Onde não podia entrar, ficava me esperando do lado de fora, o tempo que fosse necessário.

Só quem tem ou já teve um companheiro canino sabe a que profundidade essa relação pode chegar.

Bobagem tentar ficar explicando cada momento de compreensão, carinho, companheirismo e amizade incondicional que essa relação mágica com a minha grande parceirinha Angie trouxe para mim.

Na praia, na chuva ou na fazenda estávamos sempre juntos. 

Adorava um carinho, mas não era carente. Nem quando teve cria ficou brava. Os amigos iam olhar os filhotes e ela não se alterava. Era uma cachorrinha segura e tranquila. Acreditava na bondade humana.

Sempre tive o costume de passear tarde da noite pelo Leblon e ela era minha companheira inseparável. Nos dias úteis, as noites do bairro são sempre bem tranquilas e não tem quase ninguém nas ruas.

E lá íamos, eu e a Angie, sem coleira e saltitante, às 2 horas da manhã até a Pizzaria Guanabara, onde eu comia um pedaço de pizza calabresa com um mate, que comprara antes no BB lanches.

E, voltávamos caminhando, às vezes pela praia, em Incontáveis noites e memoráveis conversas que só eu e ela conseguíamos trocar.

Ganhei a Angie logo depois que minha família se mudou para Brasília e eu havia ficado no Rio de janeiro. Tinha 17 anos e nunca tinha morado sozinho antes, sempre com meus pais e irmãos. 

A sensação de liberdade era maravilhosa, mas tinha momentos de solidão e de saudades da casa cheia. Ter que cuidar de mim fazia eu me sentir inseguro e sozinho à noite.

Às vezes me sentia adulto e outras criança. Às vezes, eu cuidava da Angie, outras vezes era ela que cuidava de mim.

A Angie sabia se aninhar no meu colo quando eu estava triste. Ela sabia quando eu precisava disso e sempre me acolhia.

Nunca existiu, na história do mundo, um olhar mais carinhoso e acolhedor do que o olhar especial de uma Cocker spaniel inglesa chamada Angie.

A minha Angie.

- Edmir Saint-Clair


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O CASO DO CEMITÉRIO SÃO JOÃO BATISTA

 

Reginaldo começou a trabalhar na agência de uma forma bastante peculiar. Exatamente na mesma manhã em que o último estagiário de redação havia sido sepultado no cemitério São João Batista, após morrer no dia anterior num trágico acidente de moto. 
 
Quando o pessoal voltou do enterro, Reginaldo já estava sentado esperando para ser entrevistado para o cargo de estagiário de redação. A tragédia e o volume de trabalho tramaram a seu favor e a partir daquela manhã Reginaldo começou a estagiar na agência.
 
Na primeira semana já começou a se destacar apresentando trabalhos e soluções criativas muito acima da média para alguém que nunca tinha estagiado em criação publicitária antes. Para os diretores e o pessoal da criação aquela era a sorte grande. Não é sempre que aparece um talento daquele quilate no mercado, ainda mais na figura de um estagiário não remunerado. 
 
O jovem não aparentava mais de 22 anos e rapidamente começou a ser visto como um gênio muito promissor. Mas, sua personalidade era uma incógnita para todos. Era simpático e acessível a todos os colegas de trabalho sem, entretanto, jamais participar das socializações do pessoal nos botecos e restaurantes após o expediente. Mesmo no almoço, quando sempre almoçava com os colegas do departamento de criação, não se demorava e nunca ficava para o cafezinho com o papo furado tradicional. 
 
Assim que acabava de comer dava a desculpa de ir ao banco e só reaparecia de novo na agência, já para cumprir o expediente da tarde. 
 
O pessoal começou a ficar impressionado com a quantidade de vezes na semana que Reginaldo ia ao banco depois do almoço. Em tempos de internet banking, aquilo não fazia o menor sentido para alguém que trabalhava o dia inteiro na frente de um computador conectado permanentemente à internet. E não demorou para começar a surgirem suposições; aonde iria Reginaldo todos os dias após o almoço?
 
O certo é que, sempre que a equipe precisava criar alguma campanha mais robusta, Reginaldo chegava do “banco” com algumas grandes ideias, geralmente aplaudidas por toda a equipe e premiadas nas competições de publicidade. 
 
O ritual era sempre o mesmo; Reginaldo chegava calado, sentava-se na sua estação de trabalho e dali há pouco tempo lá vinha ele com todo o conceito da nova campanha pronto para ser trabalhado pela equipe. 
 
Apenas alguns meses após sua chegada, a agência havia crescido e toda a equipe de criação recebera os louros das brilhantes campanhas imaginadas por Reginaldo. A relação entre o pessoal da equipe se aprofundou naturalmente pela convivência e pelo sucesso, e a camaradagem era cada vez maior. Inclusive com Reginaldo, apesar dele nunca acompanhar o pessoal no chope tradicional no boteco da esquina. 
 
O burburinho começou pela ideia do Victor, diretor de arte que duplava com Reginaldo e, por isso, era mais próximo a ele. Bolaram um plano. Já que a rotina era sempre a mesma, eles esperariam Reginaldo terminar de almoçar com eles e sair para “ir ao banco”. Victor esperaria um pouco e seguiria Reginaldo. 
 
Todos pediram o cafezinho, menos Reginaldo que comunicou sua tradicional ida ao banco. Victor esperou um pouco e saiu atrás dele, se esgueirando pelas árvores e carros da rua Dona Mariana. 
 
    Atravessaram a rua Mena Barreto e continuaram até Reginaldo entrar por um portão lateral de serviço no Cemitério São João Batista. Aquilo estava se tornando cada vez mais esquisito. Victor continuou a segui-lo furtivamente por entre as sepulturas, cada vez mais curioso. Era dali que Reginaldo tirava suas inspirações? Teria ele algum pacto com o outro lado? Aquilo estava ficando bizarro. 
 
Victor continuou se esgueirando por entre os mausoléus cheios de esculturas de anjos, santos e figuras divinas, todas com plaquinhas com fotos e dados dos sepultados. Ele seguiu Reginaldo até a parte mais central do cemitério, para onde ele se dirigia de forma firme e determinada, ele sabia aonde estava indo. Até que entrou por um dos becos ladeados por sepulturas, cujo final terminava num enorme mausoléu ornado com estátuas de arte sacra muito bem cuidadas. Victor chegou a tempo de ver Reginaldo entrando no mausoléu e fechando o portão de ferro atrás de si. Se antes já estava bizarro, agora Victor nem sabia mais nomear o que estava sentindo. Uma mistura de curiosidade atroz com um medo de gelar a espinha. Mas, já que chegara até ali...
 
Foi se aproximando furtivamente até chegar a entrada do imponente mausoléu. Olhou ao redor, o silêncio era total. Olhou para o alto da estrutura que parecia ser de mármore procurando algum nome de família ou qualquer referência de identificação. Viu apenas uma enorme pirâmide com um olho aberto, esculpida em alto relevo no mármore. Ele a reconheceu por ser a mesma marca que as notas de dólar americano trazem impressa. O olho que tudo vê.
Victor se aproximou do portão de ferro que estava levemente entreaberto, colocou apenas a cabeça para dentro e ouviu a voz de Reginaldo:
- Bem-vindo, Victor.
 
Desde aquele dia, após o almoço, o pessoal da agência, a família e os amigos de Victor esperam pela volta da dupla. Reginaldo jamais foi procurado por alguém. Na agência, ninguém sabia sequer o sobrenome dele, já que ele era um estagiário sem contrato de trabalho, nem remuneração. Não havia registro algum da existência de Reginaldo.
 
Nunca mais nenhum dos dois foi visto.
 
Edmir Saint-Clair