ORIENTADOR LITERÁRIO

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O SEGREDO DO MARKETING

 

   Diz a lenda que certa grife mundial, cansada de vender bolsas que custavam mais que apartamentos, resolveu testar um limite ainda não explorado: o da estupidez vaidosa da humanidade.

O plano era simples — tão simples que beirava a genialidade. Criaram um produto chamado A CAIXA. Só isso. Nenhuma descrição, nenhuma promessa além da propaganda oficial:

“Nada menos do que muito poucos merecem.”

O preço? Astronômico, naturalmente. Acessível apenas para quem já não sabia mais onde gastar dinheiro.

O anúncio de que seriam produzidas apenas mil unidades desencadeou uma corrida insana. Iniciou-se a venda no escuro: ninguém sabia o que estava comprando, mas todos estavam dispostos a pagar. A fila de pretendentes atravessava continentes. Bancos suíços receberam transferências milionárias antes mesmo de confirmarem os nomes. Políticos, artistas, donos das maiores hi-techs, sheiks do petróleo e magnatas de todas as nacionalidades apelaram a todas as conexões possíveis para garantir um lugar entre os compradores eleitos.

Em pouco tempo, instalaram-se negociações discretas nos bastidores: convites trocados por favores, promessas de influência, silenciosos acordos de conveniência. O privilégio de estar entre os mil compradores passou a valer tanto quanto — ou até mais do que — a própria Caixa.

Em poucas horas, a lista de espera foi totalmente preenchida. E o mercado negro por um lugar na fila explodiu, atingindo valores indecentes.

O lançamento aconteceu em Nova York, no Madison Square Garden, transformado em templo da futilidade moderna. Sheiks árabes com turbantes cravejados de ouro, nobres europeus entediados, bilionários de todos os continentes: todos lá, ansiosos para botar as mãos naquilo que não sabiam o que era.

Mil compradores, mil caixas personalizadas. Segundo a grife, cada uma conteria um produto único, personalizado e exclusivo que representaria exatamente o valor de cada comprador para o mundo.

Luzes, drones, fogos de artifício. Um mestre de cerimônias, com voz de trovão, anunciou:

— Senhoras e senhores, eis o reflexo de quem vocês são!

Um batalhão de homens vestidos com smoking negro e postura solene entrou no enorme salão e passou a entregar cada caixa ao seu proprietário. A CAIXA era de madeira de lei escura, solene, e entalhada com o nome de cada comprador aplicado em ouro puro. Em cada mesa havia um pequeno biombo, para que cada magnata tivesse privacidade ao verificar o que havia dentro de sua caixa.

No instante da revelação, cada um dos mil compradores abriu sua caixa dourada personalizada, com o nome encrustado em pedras de rubi finamente lapidadas e elegantemente dispostas na tampa, acima da logomarca famosa, com a respiração suspensa.

O que encontraram lá dentro não foi uma joia, nem um artefato exclusivo, tampouco algum segredo da eternidade.

Dentro de cada caixa havia apenas uma folha de papel timbrado. Nela, em letras grandes e solenes, lia-se:

Você vale a mesma coisa que qualquer outra pessoa.

A surpresa foi grande — um choque íntimo, quase uma bofetada filosófica. Mas nenhum deles ousou demonstrar. Afinal, quem pagaria milhões para admitir em público que não valia mais do que qualquer outro?

Mais abaixo, em letras menores, uma instrução irrefutável:

“Não conte a ninguém o que você recebeu, nem pergunte o que os outros receberam. Nos comprometemos a nunca revelar o que você mereceu ganhar.”

Após o choque inicial, cada um dos compradores começou a encenar sua explosão de alegria diante da Caixa. O que se seguiu foi um espetáculo de hipocrisia: atuações dignas de Oscar. Cada qual tentava exibir mais felicidade, mais encantamento, mais êxtase que o outro. Sorrisos falsos, lágrimas de emoção forçada, abraços teatrais.

A plateia, composta de convidados e jornalistas, aplaudia com fervor, convencida de presenciar um momento histórico. As câmeras captaram lágrimas cintilantes e gestos de êxtase, transformando a farsa em verdade televisiva. Enquanto isso, os compradores seguiam à risca as instruções de sigilo, cada um se achando o maior idiota do mundo — mas sem deixar transparecer. E, claro, certos de que todos os outros haviam recebido algo muito mais valioso.

E assim, todos calaram-se envergonhados. Cumpriram à risca a ordem impressa, protegendo o segredo que os envergonhava.

No dia seguinte, jornais noticiaram o lançamento como o “espetáculo de marketing da década”. E a grife, naturalmente, anunciou um novo lote de caixas — agora pelo dobro do preço.

Ninguém jamais ousou romper o silêncio.

 

Edmir Saint-Clair 

OUTRAS VIDAS

 

Um menino de seis anos nascido em Piracuruca, no Piauí, começou a descrever com precisão a vida de um alemão rico que morrera cinquenta anos antes na cidade de Punta del Este, no Uruguai.

O psicólogo Túlio Linhares, da Universidade de Campinas, investigou o caso com rigor científico, viajando três vezes ao local. Confirmou cada detalhe relatado: a casa de três andares à beira da água, a família Schmieden, os negócios de couro, a mala marrom e a morte nos anos 1940. A história tornou-se referência internacional porque desafia as fronteiras conhecidas da memória e da consciência.


A criança e as memórias impossíveis

4.680 quilômetros separam João Benício, uma criança de Piracuruca, no interior do Piauí, da cidade de Punta del Este, no Uruguai. Uma enorme distância geográfica, cultural e histórica. Mesmo assim, o menino começa a descrever com precisão a vida de um homem alemão rico, morto meio século antes de ele nascer, naquela cidade à beira do Rio da Prata.

Ele fala de uma casa de três andares construída sobre a água, com um píer onde barcos atracam. Atrás, haveria uma igreja. Ao lado, a propriedade de uma mulher famosa: Evita Dolores, conhecida na América do Sul e marcada por escândalos judiciais.

O detalhe mais intrigante surge quando o menino menciona a família Schmieden — donos da casa, ligados ao comércio de artigos de couro. João diz que o patriarca carregava sempre uma mala de couro marrom e só passava os verões naquela residência.


O olhar cético da ciência

Nada fazia sentido para seus pais, trabalhadores simples e católicos dedicados, cuja crença não inclui nada parecido com reencarnação. Como uma criança do sertão poderia inventar tais detalhes sobre um lugar que jamais visitara?

Em 1997, o psicólogo Túlio Linhares, da Universidade de Campinas, decide investigar. Cético por natureza, viaja até Piracuruca e entrevista o menino. Com um gravador de mão, anota e grava cada informação: a casa à beira da água, a igreja atrás, a vizinhança de Evita Dolores, a família Schmieden, a mala marrom, a morte entre 1940 e 1941.

Ao retornar ao gabinete, Túlio enfrenta a escolha: arquivar o caso como fantasia infantil ou testar cientificamente as afirmações. Opta pela segunda via.


A primeira viagem: a casa existe

A primeira ida a Punta del Este o surpreende. A residência de Evita Dolores é localizada sem dificuldades. Ao lado dela, exatamente como descrito, surge uma casa de três andares, construída sobre a água, com um píer na frente e uma igreja atrás. Estava abandonada, mas correspondia ponto a ponto à narrativa de João Benício.

Um vizinho idoso confirma: sim, um alemão morou ali décadas atrás. Mas, não havia mais nenhuma informação sobre a família que ali residira. A pista inicial se transforma em um enigma maior.


A confirmação histórica

Em 1998, Túlio retorna ao Uruguai. Consulta historiadores locais, especialistas na memória dos bairros de Punta del Este. Um deles confirma: a casa pertencia a um alemão da família Schmieden, casado com uma italiana, com três filhos. O homem era lembrado por sempre carregar uma mala de couro marrom e só ocupar a residência durante os verões. A família tinha negócios de couro em Montevidéu. A morte, registrada por volta de 1940, coincide com o relato do menino.

O detalhe final reforça o mistério: João Benício dizia que o nome do homem significava “bom homem” em alemão. Pesquisando, Túlio descobre que a expressão existia, usada de forma respeitosa em tempos passados.


A terceira viagem: eliminando dúvidas

Determinando-se a fechar o quebra-cabeça, Túlio viaja uma terceira vez. Investiga registros de comunidades italianas ortodoxas e encontra indícios de que os filhos da família realmente receberam nomes italianos.

O quadro se completa: casa, localização, vizinhança, família, ocupação sazonal, negócios, mala, idioma, nomes. O menino brasileiro havia descrito com precisão elementos que nem mesmo historiadores locais lembravam de imediato.


A repercussão internacional

Os resultados são publicados em periódicos científicos e apresentados em conferências. Ian Stevenson, referência mundial nos estudos sobre reencarnação, elogia o trabalho como “exemplar, detalhado e verificável”.

O caso repercute em debates acadêmicos pelo mundo. Para alguns, é a prova de que memórias extra conscientes existem. Para outros, apenas coincidências estatísticas. Túlio mantém a posição equilibrada: não afirma que João Benício seja a reencarnação de ninguém, mas mostra que há fenômenos que escapam à lógica tradicional.


O ceticismo e a impossibilidade das explicações

Com a fama vêm as críticas. Pesquisadores analisam se a família poderia ter tido acesso a livros ou relatos sobre Punta del Este. Outros buscam conexões ocultas com alemães no Brasil. Nenhuma hipótese encontra sustentação.

A distância de 4.680 km, o isolamento da família no agreste do Piauí e a ausência de interesse em publicidade tornam improvável a fraude ou a coincidência. Para muitos estudiosos, a solidez metodológica do trabalho de Túlio transforma o episódio em um dos casos mais impressionantes já documentados.


O fim das memórias

Como em relatos semelhantes, as lembranças de João Benício desaparecem com a adolescência. Hoje adulto, vive uma vida comum, sem falar do que um dia marcou sua infância.

Na ciência, porém, o caso permanece. Para uns, prova de que a consciência pode sobreviver à morte. Para outros, um mistério ainda sem explicação.

O que se mantém indiscutível é o impacto: um menino pobre do sertão brasileiro descreveu com precisão a vida de um alemão morto a milhares de quilômetros, décadas antes de seu nascimento. E um pesquisador obstinado, aplicando o método científico, confirmou cada detalhe.

Mas o que João Benício realmente reviveu? Uma memória guardada em algum ponto secreto da mente? Uma coincidência impossível? Ou a prova silenciosa de que a vida não termina onde acreditamos que acaba?

A resposta permanece em aberto, perdida entre ciência e mistério — como uma casa abandonada à beira da água, onde ainda ecoam lembranças.

Edmir Saint-Clair  

Disclaimer

Esta é uma obra de ficção literária. Embora inspirada em atmosferas, relatos e mistérios que circulam pelo imaginário humano, não se apoia em fatos documentados nem tem compromisso com a realidade histórica. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas, lugares ou acontecimentos, é mera coincidência — ou talvez apenas o eco de outras vidas.


 

O SEGREDO

 

 O avô era um homem discreto, de poucas palavras e muitos silêncios. Tinha uma elegância natural e um senso de humor refinado, mas só se revelava a quem estivesse disposto a escutá-lo com atenção. E, nos últimos tempos, quase não tinha com quem falar. Sua vida regrada, metódica e correta não despertava a curiosidade de ninguém.

 Foi casado com a mesma mulher por mais de cinquenta anos, criou três filhos e aposentou-se como funcionário público. Para quem o conheceu superficialmente, era só isso: um bom homem, trabalhador, marido fiel, pai dedicado e avô amoroso. E era mesmo.

 Ninguém jamais imaginaria que ele tivesse algum segredo — era um homem acima de qualquer suspeita.

 O velório foi simples, como ele havia pedido. No salão pequeno e abafado da funerária do bairro, estavam todos reunidos: filhos, netos, sobrinhos, vizinhos e amigos. Gente emocionada, mas serena. Era como se todos já esperassem a sua partida.

 Foi então que, por volta das dez da manhã, entrou uma mulher desconhecida. Tinha cerca de 70 anos, a mesma idade de minha avó, usava um vestido azul-escuro e segurava uma rosa branca nas mãos.

Ela se aproximou devagar, parou diante do caixão, fez um leve aceno de cabeça e, em seguida, beijou a testa do avô com ternura. Depositou a rosa sobre seu peito e sussurrou algo que ninguém conseguiu ouvir.

 Ele a observou com atenção. Ninguém da família a reconhecia. Ficaram todos em silêncio, constrangidos, até que uma tia tomou coragem e perguntou:

 — A senhora conhecia meu pai?

 A mulher sorriu, com uma mistura de melancolia e carinho, e respondeu:

 — Sim, profundamente.

 E saiu. Simples assim. Sem explicar nada.

 Durante dias, o assunto na família e na vizinhança foi esse. Quem era aquela mulher? Por que dissera aquilo? Seria uma amante? Uma amiga do trabalho? Uma parente distante? Ninguém sabia — e ela nunca mais foi vista.

 A rosa branca secou dentro do caixão, e com ela, o segredo do avô. Nunca souberam o que houve entre os dois, nem se havia algo mesmo. Talvez fosse só nossa imaginação tentando dar um toque de mistério à vida de um homem aparentemente comum.

 Mas, para ele, não. Para ele, aquele momento revelou a parte mais fascinante de seu avô: a parte que ele escolheu manter só para ele. Um segredo que ele levou com dignidade, até o fim, para sempre.

 Edmir Saint-Clair

O CONSELHEIRO NOTURNO

 

O último ano havia sido difícil. Aos 32 anos, divorciado, uma filha de nove e um trabalho que lhe permitia apenas o básico, havia desistido de seus sonhos.

 Sua vida estava suspensa — fazia tempo. De tudo, somente a filha valera a pena. Enquanto caminhava pela av. Afrânio de Mello Franco em direção à Lagoa, naquela quase 1h da madrugada de uma terça-feira chuvosa, tudo o que sentia era pena de si mesmo.

Caminhava vagarosamente, afinal não estava indo a lugar algum, aliás, nunca ia. A insônia, que há tempos o acompanhava, com certeza o faria chegar atrasado ao trabalho na manhã seguinte e isso lhe renderia mais uma bronca do chefe, e o círculo vicioso mais uma vez se autoalimentaria, tirando-lhe os sonos futuros.

Tudo o que desejava era escrever suas histórias. Mas como começar? Por onde?

Tudo o que ele havia escrito até agora, não passava de textos baratos, cheios de clichês, que quando muito impressionavam alguma moça mais desavisada.

 No fundo, ele acreditava que poderia escrever algo bom, mas já não tinha certeza.

Sentia-se um velho em fim de carreira nenhuma.

Pensou na filha e um nó subiu-lhe a garganta, soluçou — sem chorar — um suspiro profundo, como se seu corpo expulsasse o excesso de tristeza que já não suportava.

Seguiu caminhando. Virou na Rua Humberto de Campos e passou pela 14ª Delegacia de Polícia no piloto automático.

A rua estava tão deserta quanto seu espírito. Não via saída.

A solidão soava como paz. Para onde seu pensamento fosse lá estava a angústia que aumentava a ansiedade que aumentava a velocidade com que sua mente lhe aterrorizava com pensamentos fatalistas.

Sentia raiva, ansiedade, angústia — e uma pena imensa de si mesmo. Não tinha para onde correr nem a quem recorrer.

A rua deserta estava em perfeita sintonia com ele. A chuva cessara — restavam os pingos que caíam das folhas encharcadas.

Não fazia frio. Nem calor. Não fazia nada e nada importava.

Acendeu o baseado e entrou na Rua José Linhares. O entorpecimento que a maconha lhe causava era um alívio grande, a sensação do primeiro trago nublava os pensamentos.

Os tragos seguintes aguçaram seus sentidos — o som da chuva, a luz amarelada, filtrada pelas copas densas das árvores.

Na esquina entre a Humberto de Campos e a José Linhares, o prédio em formato de L tem uma marquise em frente à porta de madeira da garagem — um bom abrigo contra a chuva. E é escuro.

Era um canto da rua. Fumando ali, encolhido, sentia-se o melhor que podia naquele momento.

Só percebeu o vulto quando já estava bem perto — e se assustou. Era o porteiro, que parou e o fitou em silêncio. Sentiu-se intimidado e saiu da entrada da garagem.

Sentir-se intimidado não era novidade. Seus pais faziam questão de mantê-lo familiarizado com esse sentimento.

Era um exilado — um estorvo confinado espontaneamente a um quarto de portas sempre fechadas.

A sensação era de constante ameaça. Velada, obscura e onipresente.

Uma prisão sem grades, uma tortura sem ferros.

Pensou que a única coisa em comum entre aquelas três pessoas, que poderiam ser uma família, era a certeza de que ele não era nada.

E nunca seria. Ele deu errado. Sua vida era um erro.

Caminhou até a metade do quarteirão e parou diante de um prédio em construção. Ali era mais escuro, sem porteiro. Encostou-se num carro estacionado ao meio-fio.

Foi impossível não notar o carro preto reluzente, de linhas futuristas. Os vidros, completamente negros, bloqueavam a visão do interior.

Era o tipo de carro que teria, se pudesse.

Mas não podia. Depois do divórcio, voltou a morar com os pais — e a verdade é que provavelmente jamais sairia de lá.

E, mais uma vez, pensou em algo que há tempos lhe seduzia: a morte.

Acabara de comprar uma caixa de cada um de seus ansiolíticos e remédios para dormir — na única farmácia que lhe vendia sem receita, com ágio, é claro.

Seus olhos choraram o choro de sempre. A rua estava escura como sua alma.

Aquela angústia intransponível o levou de volta a um pensamento que amadurecia nas noites insones.

— Trinta comprimidos de ansiolíticos mais trinta soníferos... isso vai me livrar de tudo — pensou.

Dormir — a única coisa que ele realmente gostava, e sabia fazer. E assim, tudo estaria resolvido.

Enquanto puxava um trago mais fundo, sentiu a porta do carro onde estava encostado se abrir. Sua reação foi automática: escondeu o baseado. Ele vivia escondendo tudo de todos.

Um homem bem-vestido, usando um chapéu preto, no estilo dos filmes noir em preto e branco, que lhe cobria o rosto, aproximou-se. O som de sua voz parecia-lhe familiar quando o homem lhe pediu para fumar de seu baseado.

A princípio, hesitou — mas havia algo confiável naquele homem. Manteve a cabeça abaixada, tentando esconder as lágrimas.

O estranho pegou o baseado e, enquanto prendia a fumaça, dirigiu-se a ele — sem mostrar o rosto.

— Sei exatamente o que você está sentindo agora...

Levantou a cabeça, tentando ver o rosto do homem. Mas o estranho desviou o olhar e continuou.

— Não se preocupe. Você não vai fazer o que está pensando, eu lhe garanto.

Puxou mais uma vez o cigarro, fazendo com que a brasa reluzisse e uma cortina de fumaça tornasse ainda mais difícil a visão de seu rosto.

As palavras daquele homem o assustavam. Afinal, como poderia ele saber o que estava pensando?

Não poderia, pensou, ele deveria estar apenas se utilizando de clichês, pois não seria difícil alguém perceber sua angústia.

E o estranho continuou.

— Não tenha receio. Eu sei que tudo isso parece — e é — muito estranho. Mas este momento vai mudar profundamente a sua vida. Para melhor. O tempo vai lhe mostrar... apenas acredite.

E continuou falando, como se conhecesse cada pensamento que lhe passara pela cabeça nos instantes anteriores àquele encontro improvável.

O estranho seguia falando, calma e pausadamente, enquanto as lágrimas escorriam — incontroláveis — pelo seu rosto.

Ele mantinha a cabeça baixa, tentando esconder a profusa emoção. O estranho, de chapéu preto, facilitava sua tarefa evitando olhar em sua direção, sem parar de falar.

Parecia saber exatamente o que fazia ali.

Foram interrompidos por uma jovem que irrompeu vinda de algum lugar que ele não percebeu.

— Vamos, pai?

A voz feminina o fez se virar a tempo de ver uma mulher de cabelos lisos, longos e muito negros entrando no carro. Não conseguiu ver-lhe o rosto, mas o som daquela voz lhe provocou uma sensação estranha — algo que não soube identificar.

O carro arrancou, e o homem não se despediu. Ele não tivera tempo de perguntar nada. Na verdade — percebeu — não dissera uma só palavra. E, mesmo assim, ele sabia tudo.

As lágrimas haviam cessado. Ele estava quase catatônico — estático, sem reação. Fumou o resto do baseado e, quando acabou, ainda não conseguia ordenar o raciocínio.

Quem era aquele estranho que parecia conhecê-lo tão bem?

O que ele fazia ali, parado diante de um prédio em construção, à uma da madrugada — como se o esperasse? De onde surgira aquela mulher que o chamou de pai?

Talvez estivesse esperando a filha — que ele nem viu de onde surgiu. Essa lhe pareceu uma boa resposta. Mas... e as outras?

A cabeça começou a rodar — por pouco não caiu.

Quando se recuperou, percebeu algo estranho: a angústia havia sumido. Completamente.

Subitamente, a ideia de suicídio perdeu o sentido. De algum modo, aquele estranho modificou seu pensamento.

Voltou para casa em busca de respostas para perguntas que mal conseguia formular — e muito menos responder.

Por fim, já em casa, adormeceu profundamente — como não acontecia há anos.

No dia seguinte, passou a manhã inteira no trabalho, fazendo contas. Concluiu que, se fosse demitido, o que receberia de indenização e seguro-desemprego o manteria por alguns meses. Tempo suficiente para tentar um trabalho que realmente lhe trouxesse algum prazer.

Sentia-se mais motivado — e sabia que o estranho tinha tudo a ver com isso.

As palavras daquele homem o haviam influenciado de uma forma diferente, e ele não conseguia entender por que elas haviam penetrado tão profundamente em seu espírito.

O Conselheiro Noturno — como passou a chamá-lo — falara com tanta segurança que acabou por contagiá-lo de forma definitiva.

Desde aquele dia, quando o desânimo batia, recorria à lembrança do Conselheiro Noturno.

Passou a visitar agências de publicidade, oferecendo-se como redator. Nada parecia promissor no início — até que conseguiu um estágio, não remunerado, numa agência pequena.

A partir daí,  sua vida começou a mudar. Mas era só o começo de uma longa caminhada.

Vinte e cinco anos se passaram.

Agora, ele é diretor de criação de uma prestigiada agência de propaganda, com dois livros de contos e um de poesias publicados e um terceiro em fase de acabamento.

Tem um carro que lhe parece semelhante ao do Conselheiro Noturno — não igual, claro: o seu é do ano, e o outro veio há mais de duas décadas atrás. Mas estava satisfeito com algo que, para ele, era parecido.

Fora isso, a lembrança daquela noite nunca se desvaneceu.

Hoje é um dia especial. Sua filha acaba de se mudar para o apartamento que ele deu — e que ela escolheu. Vão sair para jantar e comemorar o primeiro dia dela na nova casa. Uma ocasião única, com a qual ele sonhara muitas vezes.

Chega à agência um pouco mais cedo do que seu costume — não quer se alongar nos compromissos de trabalho. O dia está cinza e chuvoso, mas para ele o dia parece radiante. Dias de chuva no Rio de Janeiro podem ser belos e agradáveis.

O celular toca. É sua filha, pedindo o carro emprestado para resolver tarefas da produção do figurino de uma peça teatral em que está envolvida. Combinam que ela deixará o veículo na garagem dele no final da tarde.

Resolve almoçar sozinho, perto da agência, em Ipanema. O tempo segue chuvoso e, depois de comer, sente vontade de caminhar até a Praça Nossa Senhora da Paz. O chão está molhado e a praça vazia. Ele espana as gotas do banco e se senta.

No mesmo instante, o Conselheiro lhe vem à cabeça. Uma sensação estranha o invade — não sabe o que é, mas já sentiu antes. Uma única vez.

O Conselheiro Noturno parecia rondá-lo.

Já passa da meia-noite quando sua filha liga. Diz que ficou arrumando algumas coisas e acabou perdendo a hora. Deixa-o à vontade para remarcarem — se ele achar que está tarde, podem deixar o jantar para o dia seguinte.

Mas ele insiste. Aquele é um dia único na vida dos dois. Reconfirmam o compromisso. Ele vai buscá-la em casa.

Ele para em frente ao prédio da filha e permanece no carro, esperando que ela desça.

De repente, sente a traseira do veículo abaixar — alguém se apoiou ali. Um cheiro de maconha invade o interior do veículo pela fresta da janela semiaberta, um arrepio intenso percorre sua espinha e irradia-se por todo o corpo.

Só então percebe que está exatamente no mesmo lugar de vinte e cinco anos atrás.

Vira-se para trás tentando ver quem se apoiara no carro e, nesse instante, ao olhar de relance para o banco traseiro, vê um chapéu preto — provavelmente, do figurino que sua filha estava produzindo — e que havia sido esquecido ali.

Naquele momento, ele finalmente descobre quem é o Conselheiro Noturno.

Abre a porta do carro, pega o chapéu — e vai cumprir seu destino.

 - Edmir Saint-Clair


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A MEDALHA DE SÃO JORGE

A ansiedade é grande. Ele não vê o filho há tempo demais. A saudade aperta ainda mais agora que faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quer que Felipe vá buscá-lo no desembarque — pode haver imprevistos nas conexões e não quer que o pai fique de molho esperando no aeroporto. Está vindo de Pequim, depois de cinco anos na China.

Felipe decide descansar um pouco — a ansiedade dos últimos dias o deixou exausto. Deita-se no sofá da sala e adormece. Passou a noite acordado, ansioso, pensando na volta do filho. Agora, cede ao cansaço.

 O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h06 daquela manhã.

A campainha toca insistentemente. Ele desperta sobressaltado e, ato reflexo, corre até a porta.

 — Diego... Dá um abraço, filhão...

 Diego abraça o pai com força e saudade, iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e familiar. Pai e filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor.

Felipe pega uma das malas no hall do elevador, o filho carrega as outras. Pelo volume da bagagem, parece que veio de vez. Tomara, ele pensa.

Voos internacionais sempre chegam cedo pela manhã. Dá tempo de brincarem um pouco nas ondas do final do Leblon no final da  tarde. Felipe entrega a Diego a prancha que mandou fazer de presente para ele.

Diego se emociona com a recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daqueles abraços demorados e saudosos. Tem orgulho do pai. A felicidade dos dois transborda. São daqueles momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca mais vai sair. Olhar para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.

— Ele é meu filho, pensa Felipe.

— Ele é meu pai, pensa Diego no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são grandes demais, não cabem em palavras.

A felicidade acontece explicitamente naquele momento: pai e filho desfrutando a plenitude da presença do outro.

Combinam que Diego vai dormir um pouco — viajou mais de trinta horas. Está exausto.

Felipe beija a testa do filho e sai do quarto.

Diego não deve acordar antes das duas da tarde. Felipe tem quase seis horas pela frente. Decide que é melhor almoçarem em casa, para que o filho possa acordar com calma e sem pressa. Lembra-se da feijoada de sábado do restaurante Degrau — a mesma que comiam desde que Diego era pequeno e ainda não gostava. Mas, depois que o filho se tornara adolescente, virou programa obrigatório de todos os sábados. É a pedida perfeita para hoje.

Ele volta até a porta do quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo em si.

Uma feijoada, e depois uma boa remada no mar de fim de tarde outonal. A luz mais bonita do Rio de Janeiro.

Seria perfeito se tivessem um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fuma. Fumar um baseado com o filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um ritual quase xamânico.

Faz tempo que Felipe não compra maconha, e perdeu o contato com os fornecedores ocasionais do bairro. Normalmente, é uma meia dúzia de amigos, moradores do próprio Leblon, que vendem para conhecidos. Ou a velha opção de sempre: a doleta da Cruzada. Pequenas quantidades, geralmente um cigarro, vendido a varejo. Nesse ponto do fim de semana, se quiser fumar um baseado com o filho antes da praia, vai ter que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é tranquilo, ele pensa. Sorri sozinho: a última vez que foi lá comprar um baseado deve ter sido há pelo menos uns vinte e cinco anos.

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Diego volta três dias antes de completar trinta anos. Um adulto pleno, um competente profissional de I.A. com formação altamente especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai — não importando com quem Felipe estivesse casado — só moraram juntos nos dois primeiros anos de vida dele, enquanto seus pais foram casados. Época da qual, obviamente, não se lembra. Depois disso, lembra-se dos fins de semana, férias e feriados — como todo filho de pai separado. Pouco antes de viajar para a China, passaram onze meses numa convivência maravilhosa e tardia, para ambos, na casa de Felipe.

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Felipe mora na Rua Padre Achotegui, na Selva de Pedra. A Cruzada São Sebastião fica a um quarteirão de distância. Antes, ele decide passar no restaurante Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem. Melhor garantir que nada saia errado. A feijoada de sábado do Degrau é disputada no bairro e costuma acabar cedo. A ideia é servirem-se em casa, para que Diego acorde devagar e coma na maior preguiça que conseguir.

Já na praia, depois de passar no Degrau, Felipe nota que continua ansioso e atribui à excitação pela chegada do filho. Diego já chegou, mas ele ainda anseia pela conversa, pela troca que certamente terão. E por tudo o que ainda viverão juntos a partir dali. Um chopinho no Clipper, com certeza, vai dissipar essa sensação estranha. Onze da manhã de sábado — a essa hora é certo encontrar os amigos no bar.

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Diego não consegue parar de se mexer na cama. Está inquieto. Acorda incomodado, pensa que talvez seja o frio do ar-condicionado e se cobre mais. Olha a hora no celular: 11 horas da manhã. Dormiu menos de três horas... isso não costuma acontecer. Normalmente, dorme seis horas de um sono calmo e contínuo. Sempre agradece mentalmente ao pai por tê-lo introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribui a isso sua calma, seu equilíbrio. Mas não agora.

Ainda cansado e sem conseguir adormecer novamente, sente uma ansiedade angustiante.

Rola na cama até o cansaço vencê-lo. Adormece. Mas o sono não é repousante.

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Felipe termina o segundo chope. Conversa com amigos da vida toda — sobre a chegada de Diego, claro — e isso faz o tempo passar com mais leveza. Mas nem tanto. Enquanto espera a conta, a sensação estranha retorna. Ansioso, tenso. Ele não é assim, nunca foi, e não há motivo para estar daquele jeito agora.

Menos mal, o tempo passou. O relógio marca meio-dia em ponto.

Hora de seguir para a Cruzada. Despede-se e parte.

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Diego acorda sobressaltado de um sono rápido e agitado. Olha o celular: meio-dia. Tem certeza de que não conseguirá mais dormir. E ficar na cama só vai piorar.

Atribui a angústia à excitação da chegada, ao fuso horário, ao acúmulo de sensações. Tudo junto, talvez. Não está acostumado àquela inquietação que lhe revirava o estômago. Uma ansiedade sem motivo, sem explicação. Detesta se sentir confuso.

Há algo diferente. E errado.

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Felipe atravessa a avenida Ataulfo de Paiva e desce pela rua Carlos Góes, em direção à Selva de Pedra. Vira à direita na rua Humberto de Campos e segue rumo à Cruzada. Ao parar no cruzamento com a avenida Afrânio de Melo Franco, repara que a porta da delegacia está movimentada. Nunca se preocupou com isso. Não vai ser hoje.

O sinal abre, ele atravessa. Na esquina oposta, vê Adilson saindo da Igreja Santos Anjos e acenando. Felipe acena de volta.

São amigos desde pequenos. Jogaram juntos no time de futebol de praia e em muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas. Depois, ao entrarem na vida adulta, seguiram caminhos diferentes. Hoje, Felipe é arquiteto e Adilson, motorista de uma empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e se orgulha disso. Ainda mora na Cruzada São Sebastião, no apartamento que herdou dos pais.

Apesar de sempre ter tido amigos por lá, Felipe entrou poucas vezes naquela comunidade. No Leblon, era comum que amigos que moravam na ali pegassem baseados para os outros. Faziam “um voo para os amigos”, como se dizia na gíria da época. Sempre foi assim.

No meio de uma conversa cordial, Felipe pergunta se Adilson poderia pegar uma doleta. A reação é imediata — e inesperada.

Adilson se mostra visivelmente contrariado com o pedido do amigo. Na verdade, se sente ofendido e responde de forma bastante incisiva.

— Felipe, sempre achei você um cara legal. Gosto de você... temos cinquenta anos de amizade, nunca mais me peça isso. Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.

O constrangimento é mútuo e bastante incômodo. Os dois se conhecem desde meninos. Mas, naquele instante, uma distância nunca antes percebida dá-lhes um tapa na cara. A distância que, no Leblon,  todos fingem que não existe se escancara ali, na esquina da Igreja Santos Anjos.

Eles apertam as mãos e Adilson se afasta, caminhando rumo à Cruzada.

Felipe permanece parado por alguns minutos, tentando digerir o que acabou de acontecer. Observa Adilson se afastar, até sumir entre os prédios. Sente vergonha.

Recupera-se ao lembrar que Diego o espera. Vai ter que entrar na Cruzada para comprar. Volta a caminhar, tentando manter o passo nem rápido, nem lento demais. Normal. Não está acostumado. A angústia volta. Lamenta ter ofendido o amigo — mesmo que sem querer.

Está passando em frente à portaria dos fundos da AABB quando vê as primeiras pessoas correndo. Logo depois, alguns tiros, mas não consegue identificar de onde vêm. Não sabe para onde correr, que lado proteger.

A seguir começa a ouvir sirenes de polícia. Gritos vindos de todas as direções. Barulho de carros vindo da direção da delegacia. Os tiros aumentam. Os transeuntes, muitas mulheres e crianças, correm buscando abrigo.

Felipe percebe que está no meio do fogo cruzado.

De repente, sente algo rasgar e queimar sua barriga — uma dor profunda — e o sangue quente jorra e escorre pelas pernas e genitais. Ele cai, as mãos na barriga. Solta um grito alto de dor. É como se uma flecha de aço em brasa tivesse atravessado seu abdômen.

Felipe tenta controlar a respiração enquanto pressiona o ferimento, que sangra sem parar e empoça no cimento desgastado da calçada.

É desesperador sentir o sangue escorrer e saber que não há possibilidade de socorro naquele momento.

Pensa no filho — e a dor ganha alma. Não pode morrer ali. Não hoje. Os tiros continuam.

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Diego adora os requintes aos quais o pai se dedica. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de expresso italiano, sempre com dezenas de opções e variedades de grãos, que ele mói na hora.

O sabor está excelente, mas a ansiedade aumenta. Ele vira a xícara impaciente, sem degustar. Arruma-se e decide descer até a rua. Aquela inquietação desconhecida é agoniante. Por quê? A falta de causalidade intensifica ainda mais a angústia de alguém tão acostumado ao mundo lógico da programação computacional.

Diego salta do elevador e, da portaria, já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de que há algo errado é cada vez mais intensa.

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Felipe luta para se manter acordado, mas as vozes e os ruídos se dissolvem num eco cada vez mais distante. Adilson é o primeiro a aparecer, abaixa-se e apoia sua cabeça com as mãos.

— Puta que pariu! Que merda, meu véio! — Grita Adilson assustado, enquanto digita o celular chamando a ambulância do SAMU. Ali na Cruzada São Sebastião todos têm o número desse telefone. Após a ligação, Adilson se agacha novamente ao lado de Felipe, que já está bastante pálido. O tiro é de grosso calibre e atingiu o lado direito do abdômen. A hemorragia é grande.

Felipe fala com a voz enfraquecida:

— Adilson, por favor, avisa meu filho.

— Você ainda mora na Rua Padre Achotegui?

Felipe confirma com um movimento de cabeça. Percebe que Adilson chora. Isso não é um bom sinal.

Adilson arranca um pingente do pescoço e parte a medalha em dois:

— Fica com isso na mão e pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou dar a outra metade para o Diego.

Felipe apenas percebe quando os enfermeiros abrem espaço e o colocam na maca. Tudo parece nebuloso e distante. Os sons e vozes têm eco. Os paramédicos fazem alguns procedimentos ali mesmo. Ainda dá tempo de reforçar o pedido a Adilson.

Ele aperta a metade da medalha nas mãos e começa a rezar do jeito que ainda se lembra.

Os solavancos da maca sendo encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados. Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente, literalmente, a vida se esvaindo até desfalecer.

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Em poucos minutos, vários moradores já estão na rua — é sempre assim quando algo extraordinário acontece nessa parte do Leblon. A Selva de Pedra tem seu jeito próprio de ser. Diego continua cada vez mais ansioso, mais angustiado. Tenta entender algo daquela agitação quando o porteiro do seu prédio puxa conversa:

— Troca de tiros na Cruzada, tem um baleado grave.

Um calafrio corta Diego como um bisturi gelado ao longo da espinha. Ele reconhece um homem caminhando com passos apressados vindo da praça em direção à sua portaria — é Adilson. O amigo do pai que jogou futebol de praia com ele.

E, que mora na Cruzada São Sebastião!

As pernas de Diego ameaçam ceder. Não pode ser. Mas quanto mais Adilson se aproxima, mais o olhar dele confirma o pior.

Adilson conhece Diego desde que ele nasceu.

Chega perto e o afasta da presença de outras pessoas.

— Diego, seu pai foi baleado. Foi levado para o Hospital Miguel Couto e pediu para você ir para lá. Eu vou com você. Mas, antes, ele pediu que você pegue os documentos dele que estão na mesinha de cabeceira.

— É grave? — Pergunta Diego.

— Estava sangrando muito, os paramédicos não disseram nada.

Adilson toca o ombro de Diego antes que ele siga para o prédio. Tira do pescoço a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a ele.

— Fica com isso na mão e pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber. Para São Jorge de Ogum. A outra metade está com ele. Agora vai. Comece a rezar agora!

Diego está em choque. Age como um robô, mecanicamente. Ele não sabe rezar. Nunca aprendeu, nunca o ensinaram. Mas a necessidade é a mãe de todas as bênçãos, e ele pede a São Jorge de Ogum com todas as suas forças. Com uma fé que nunca soube que possuía.

O elevador chega. Ele entra, toca o número do andar e volta à reza improvisada. Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como há poucas horas atrás. Consegue sentir, quase fisicamente, o abraço que trocaram. Sua alma se aquieta. Estranhamente, se aquieta.

Quando abre os olhos, ainda está no segundo de dez andares. Parece que passou muito mais tempo, sente-se estranho. Abre a mão — a metade da medalha de São Jorge quase feriu sua pele, de tão forte que a apertava.

O elevador chega. Ele sai e olha para a porta do apartamento do pai — leva um susto que quase o derruba. Suas malas estão ali, na porta. Ele se olha: está com a mesma roupa de quando chegou pela manhã.

O que é aquilo?

A única coisa que permanece imutável é a metade da medalha, ainda em sua mão marcada. Mas não há tempo para pensar. Seu pai está morrendo no hospital. Precisa dele.

Procura a chave do apartamento no bolso — não a encontra. As malas na porta o desconcertam por completo. Por impulso, toca a campainha. Ouve sons do outro lado. Toca de novo. Ouve o barulho da fechadura sendo destrancada. E, nesses milésimos de segundo, deseja o impossível.

A porta se abre — e Felipe aparece, com a expressão mais assustada que Diego já viu. Os dois se abraçam e choram. Cada um com sua metade da medalha de São Jorge de Ogum na mão.

O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h06 daquela manhã — pela segunda vez no mesmo dia.

- Edmir Saint-Clair


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