ORIENTADOR LITERÁRIO

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NOITE FELIZ


             O espírito do Natal chegava no dia de armar a árvore. Eu tinha uns 4 para 5 anos. Não me lembro direito se era a mesma árvore ou se a cada ano era uma diferente. Mas, todas eram a árvore de Natal da minha casa, que eu, meus irmãos e minha mãe tínhamos montado juntos. Às vezes, meu pai estava também, outras ele vinha para a parte final, que era ligar o pisca-pisca "do jeito certo”. Minha mãe sempre colocava algodão em cada "galho” da árvore para parecer neve. A cada ano, surgiam enfeites novos que se juntavam aos que tinham sobrevivido nos anos anteriores. Lembro claramente de alguns. Era excitante, alegre e divertido.

Tinha o dia certo de escrever cartinha para o Papai Noel. Hoje, penso como minha mãe era hábil. Sempre escolhíamos os presentes que eles poderiam nos dar. Não porque pensássemos neste aspecto econômico, mas porque ela ia, aos poucos, nos induzindo. Incrível, quanta habilidade. Eles não tinham dinheiro para nos dar o que quiséssemos ou o que as propagandas sugeriam, meu pai era muito novo, militar do exército, capitão ainda. Mas, sempre davam o que pedíamos. O que mostra a capacidade de influência que minha mãe tinha sobre nós.

Eram Natais felizes, plenos. Fazíamos listinha com nomes de alguns amiguinhos que gostaríamos de dar presente. Cada uma tinha direito de escolher uns tantos. Eram só lembrancinhas, como dizia minha mãe.

Um dos Natais que mais me marcou foi quando ganhei minha primeira bicicleta. Era o meu maior sonho, na época. Sonhei com ela desde que havia passado de ano por média no colégio e minha mãe e meu pai me sugeriram que pedisse uma bicicleta para o Papai Noel, porque eles achavam que eu merecia e que Papai Noel saberia disso.

Fiquei confiante e escrevi a carta com a certeza de que meus pais tinham algum conhecimento lá com Papai Noel. Quando eu perguntava para minha mãe o que ela achava, se Papai Noel ia me dar ou não, ela piscava o olho e não dizia nada. Mas dizia tudo. Aquele piscar de olhos, para mim, era como se ela falasse claramente que tinha lá sua influência com o Bom Velhinho. E, quando a gente é criança acredita mesmo que mãe seja o ser que chega mais perto dos "seres encantados”.

Foram dias de ansiedade. Quando a gente é criança o tempo demora demais a passar. Perto de aniversário ou natal então chega a ser torturante. Não chega nunca.

Na noite de Natal, chegaram meus tios e primos, a ceia posta. E nada de dar meia-noite. Meu pai, mãe, tios, primos, irmãos e eu. Eles conversando com a porta do apartamento aberta, por onde entravam e saiam vizinhos, que também deixavam suas portas abertas e nos recebiam em algum momento da noite.

No Leblon, nas noites de Natal da minha infância, as portas dos apartamentos sempre ficavam abertas e os vizinhos faziam visitinhas rápidas só para dar Feliz Natal e comer uma rabanada.

Criança não liga para as comidas deliciosas que se faz no Natal. E, pior, ainda são obrigadas a comê-las... Estava tão ansioso que não cabia nem uma ervilha no meu estômago. Minha mãe entendeu e me dispensou daquele martírio.

De repente, algum adulto dá um alarme de que está vendo Papai Noel na janela do quarto, lá dentro.

As crianças correm que nem loucas, mas, não chegamos a tempo de ver, ele tinha acabado de passar na direção da janela da sala. Ouvimos o barulho.

Corre todo mundo de novo de volta para a sala e lá estava a minha primeira bicicleta: uma Monark verde, aro 12, freio contrapedal.

A emoção foi tão forte e a felicidade foi tão grande, que tive certeza que a sentiria para sempre, em todos os Natais que viriam depois.


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MISTÉRIO NO LEBLON

 
 Rio de Janeiro - Bairro do Leblon,
início do outono, 20h55m.

Eu acabara de sair da academia Lucinha & Cláudio, atravessara a Rua Humberto de Campos, na direção da Rua José Linhares, que fica a menos de 50 metros. Estava dobrando a esquina, quando vi uma senhora idosa vindo na direção contrária. Ela dá uma topada na calçada, se desequilibra e começa a acelerar o passo descontroladamente. Ela vai cair.
Corro em sua direção para tentar ampará-la mas, antes que chegasse perto o suficiente, surge do nada uma mulher muito esguia de cabelos pretos, curtos, e a segura, colocando-a de pé e sumindo novamente.

Tudo não durou mais do que fugazes 3 segundos.

Fiquei petrificado com a cena. Senti-me muito estranho, um desconforto cerebral extremamente desagradável, como se tivesse levado uma pancada forte na cabeça. Senti uma confusão agoniante, uma perda da noção do que era ou não realidade. Como uma pane inexplicável no meu sistema mental...

Como alguém aparece e desaparece do nada? Sim. Ela não surgiu e foi embora correndo ou sumindo de forma gradual, como é natural acontecer. Ela apareceu e desapareceu, como um flash fotográfico.

A Senhora Idosa estava atônita e tão perplexa quanto eu. Quando conseguimos trocar olhares, foram de puro espanto!

Aproximei-me dela um pouco mais e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Ela me relatou, exatamente, a mesma coisa que eu havia visto. Utilizando, inclusive, as mesmas expressões como “apareceu do nada" e “Desapareceu do nada”.
Ela relatou o que eu tinha presenciado com a mesma precisão de detalhes que eu percebera. Ou seja, quase nenhum, já que a velocidade do evento, foi como se alguém tivesse colocado um vídeo em câmera acelerada.

Logo percebemos que havia uma prova física e inequívoca do ocorrido: a Sra. Idosa estava usando uma blusa branca de mangas compridas e, nela, estavam estampadas visivelmente, duas marcas de mãos onde o “ser” a segurara. Perfeitamente visíveis e brilhantes.
Nós dois olhamos para as marcas e, em seguida, um para o outro, ainda com expressões de absoluta incredulidade.

Percebi que havia testemunhado algo fantástico e extraordinário, e que não haviam palavras que pudessem descrever aquele flash inacreditável.
Ficamos em silêncio, eu e a Senhora Idosa, tomando fôlego e reiniciando os pensamentos. Pouco depois, seguimos caminhando, lentamente, até a entrada do prédio para onde ela estava indo. Ambos no mais absoluto silêncio, em choque.
Despedimo-nos pelo olhar, sem trocar mais nenhuma palavra, ainda visivelmente desconcertados. Não havia nada o que falar. Nossos olhares se acenaram, confirmando a cumplicidade que havia acabado de nascer. Nunca mais a vi e nunca soubemos o nome um do outro. E Nunca entendi o que havia acontecido.


- Edmir Saint-Clair





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DIVINA PROVIDÊNCIA

Tudo que Neyla pensava naquele momento é o que falaria para o filho mais velho quando ele a visse com o olho e os lábios inchados.

Ela sabia o estado em que Maicon ficaria quando visse o que seu pai fizera com ela novamente. Ele crescera presenciando e sofrendo a mesma violência que a mãe desde que se entendia como gente, e não aguentava mais. Desde a última sessão de pancadas, ele prometera a mãe que daria um jeito naquele inferno.

Neyla lembrou-se de cada uma das palavras do filho, e um calafrio percorreu sua espinha de cima a baixo, como se alguém houvesse passado sobre seu túmulo, como diziam na comunidade. A caçulinha Raylane ainda estava com o gesso na perna como consequência da última vez em que Julião estivera na casa deles.

Ele vinha e ia embora quando bem entendia, sem dar satisfação sobre o tempo que passara ausente.

Eles sabiam que eram a segunda família dele, a filial como os vizinhos a chamavam.  Mas, agia como se tudo aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.  Quando voltava era sempre a mesma história. Gastava todo dinheiro que encontrava, dormia quase o tempo inteiro e quando estava acordado bebia até começar a implicar com quem estivesse ao seu alcance, mas só em casa. Na rua era um frouxo.

Era o segundo mês de Maicon como caixa de supermercado. O segundo salário que recebia. O primeiro terminara nas mãos do pai, que achou e confiscou a quantia revirando as coisas da mãe.

Neyla passou o dia inteiro sendo consumida pelo medo do que aconteceria quando o filho chegasse, visse Julião dormindo no quarto e os machucados em seu rosto.

Maicon e a mãe tinham uma relação de amor e confiança profundos. Desde que a irmãzinha nascera, Maicon nunca mais havia se envolvido com o submundo que os rodeava. Tinha voltado aos estudos e, desde então, ajudava a mãe a sustentar a casa. Pagava integralmente a creche em que Raylane passava os dias, enquanto a mãe trabalhava como diarista em casas particulares.

Quando a noite chegou, Neyla deu graças a Deus quando Julião acordou, tomou banho e saiu sem falar nada.

 Ela teria tempo para tentar acalmar o filho e evitar uma tragédia doméstica.

Quando Maicon chegou e viu o rosto da mãe fechou as mãos e socou a própria cabeça com força. Neyla o envolveu num abraço e ambos choraram juntos. Não falaram nada. Maicon tirou a mochila das costas, colocou-a no sofá rasgado, deu um beijo no rosto da mãe e saiu sem dar-lhe o dinheiro do salário. Dessa vez, aquele dinheiro teria outro destino.

Neyla tentou impedir que o filho saísse pela porta naquele estado que ela não conhecia, mas pressentia. Calado, com o olhar crispado e o corpo todo endurecido. Ela sabia o que ele iria fazer e implorou, sem resultado. Ela perdera totalmente qualquer contato com ele, que saiu andando como um corpo sem alma.

Maicon rodou por todo o complexo do alemão, procurando os conhecidos dos tempos em que fora aviãozinho e fogueteiro do tráfico. Precisava de uma arma, qualquer uma, a qualquer preço dentro do dinheiro do salário, que não era muito. E ficou rodando pelas vielas meio desorientado, mas decidido.

Em casa, tudo que Neyla podia fazer era rezar, pedir, implorar, prometer e buscar no fundo de sua fé alguma providência que os livrasse da tragédia anunciada.

Ela rezou com toda a fé que sempre tivera desde muito pequena, acendeu uma vela e ficou ajoelhada durante as 4 horas em que Maicon ficou fora. E, cada minuto dessas horas, ela rezou sentido o pavor de que fosse o último. Ela temia por todo a vida que Maicon perderia fugindo ou preso numa penitenciária, ...caso se tornasse o assassino do pai.

Nem a pancada na porta, anunciando a volta de Julião, bêbado, a tirou de sua concentração santa. O crápula se jogou na cama de casal, sem dizer palavra alguma, apenas emitindo um grunhido animalesco.

Pronto, pensou ela, o cenário da tragédia está montado. A primeira coisa que ela fez foi trancar a porta da casa com todas as voltas que a fechadura podia dar.

 O único jeito era tentar manter Maicon do lado de fora e tentar demovê-lo da ideia de matar o pai. Ela guardou as chaves nos seios e voltou a concentrar-se em suas orações e promessas.

Santa Rita de Cássia não podia abandoná-la agora.

Ficou ajoelhada até ouvir o estrondo da porta sendo arrombada por um chute de Maicon que entrou e foi direto para o quarto empunhando a arma já engatilhada.

Neyla o interceptou na porta e quando os dois olharam para a cama viram o improvável: Julião jazia morto, com a boca e os olhos arregalados, quase fora das órbitas, com a expressão aterrorizada como se sua última visão, houvesse lhe arrancado a vida..

Edmir Saint-Clair

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UM SONHO DE NATAL

 

    A bicicleta, no meio daquela grande vitrine natalina, chamou-lhe a atenção. Era vermelha e modelo BMX, parecida com a primeira bicicleta que dera ao filho. Há mais de 35 anos. A lembrança foi automática e dolorida.

Na noite da véspera de Natal, perto do horário de fechar, os shoppings se tornam o maior dos infernos para quem está ali apenas para comprar um sifão da pia, que estourou. Até a loja de materiais de construção se apropriou do Papai Noel e colocou um pobre velhinho fantasiado para vender vasos sanitários e Box blindex em 12 vezes, porque é Natal.

Ele desistira de tentar gostar de Natal havia tempo, na verdade, não suporta a data. Gosta de passá-la como se não houvesse.

De tudo que já havia perdido, o contato com o filho era o que mais lhe doía. Esse seria o décimo ano, o décimo natal desde que haviam rompido. Nem uma troca de palavra sequer durante toda essa eternidade. Tentara uma reaproximação de diversas maneiras, durante todos esses últimos anos, mas nunca obtivera resposta alguma. 

Quando saiu, o shopping já estava praticamente fechado, assim como todo o comércio do bairro. Existe apenas uma noite, no Rio de Janeiro, em que os bares, restaurantes, farmácias e todo o resto do comércio fecha; é na noite de natal.

    Voltando para casa, pelo caminho mais longo, foi vendo o tráfego ir se reduzindo, os pontos de ônibus se esvaziando e pensou que não trocaria o sifão da pia naquela noite. Queria apenas dormir. Definitivamente, o natal não lhe faz bem.

Ele sabe, já passou várias dessas meias-noites na rua, por livre vontade. Saía de casa alguns minutos antes e passava a meia-noite na rua. Apenas para ver sua própria solidão tomar conta de tudo e imperar soberana. Não tinha mais medo de encará-la. Ao contrário, tornaram-se bons companheiros.

Chegou ao seu condomínio, parou na entrada da garagem e, enquanto aguardava que o porteiro lhe abrisse o portão, ouviu A voz inconfundível:

- Feliz Natal pai. Vamos passar juntos?

Era seu filho.

Edmir Saint-Clair

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NOITE DE NATAL

 

Seu pai o despertou dizendo-lhe que era o dia de retirar os pontos. Dia 24 de dezembro, mas ele não tinha a menor ideia, nem de que dia da semana era aquele e muito menos do mês.

 Acordou e permaneceu deitado, tudo estava muito estranho. Ele se sentia estranho demais. Não tinha noção de que dia era aquele, nem de quanto tempo havia "dormido", o que, até aquele momento, pensava ter sido um sono normal. Nunca se sentira daquela forma. O corpo fraco, tremolo, a cabeça não encontrava um ponto de equilíbrio sobre seu pescoço e parecia pender para os lados. Uma intensa coriza começou a lhe escorrer pelo nariz.

Passou a mão no rosto e sentiu o curativo grande no supercílio direito. Lembrou-se do acidente. Um pensamento racional no meio daquele caos mental o fez dar-se conta que havia passado muito mais tempo do que imaginava.

Levantou-se com muita dificuldade.  Quando deu por si já estava deitado no banco de trás do carro do pai. As superquadras de Brasília possuem  quebra molas enormes e sua cabeça explode a cada solavanco. Devia estar resfriado, pensou, ainda bem que trouxe um rolo de papel higiênico para dar conta daquela coriza incomum. Assua o nariz sente uma pontada aguda na cabeça e ouve um barulho vindo de dentro de seu crânio.

Quando o pai para na entrada do Hospital das Forças Armadas, ele mal consegue saltar do carro, no que foi ajudado por não sabe quem.

Apoiando-se no bom samaritano, foi conduzido até a entrada do prédio, enquanto seu pai fora estacionar o carro. Ouvia sua cabeça fazer mais barulhos esquisitos, nunca havia sentido aquilo. Seu nariz escorria numa coriza que nunca tivera antes. De repente, ouve uma voz elevar-se com autoridade:

- Tragam uma maca imediatamente para esse rapaz!

Era um médico e o rapaz era ele.

Deitaram-no na maca, que chegou junto com seu pai que vinha do estacionamento.

Ele não tinha a menor ideia do estava acontecendo, estava confuso e assustado. Sentiu-se frágil e indefeso. Não parecia um pesadelo, ele sabia que era real.

O médico lhe fez algumas perguntas que seu pai o ajudou a responder. Só então se deu conta de que "dormira" mais de uma semana e que não  se lembrava de nada do que acontecera nesse ínterim. A não ser de ter acordado uma  noite,  depois do impacto no rodapé que  lhe rasgou o lado direito frontal da cabeça.

Daquele único dia em que acordou, em casa, depois do acidente, sua leve lembrança era da dor lancinante na cabeça  que o fizera implorar para que seus pais o levassem para o hospital. Eles não o levaram. Porque  não o fizeram?  E ele "dormiu" mais alguns dias.

Não se lembrava de ter acordado nenhuma vez, além daquela. Não se lembrava de como se alimentara, bebera água, como fora ao banheiro ou como fizera qualquer outra coisa. Um ser humano não sobreviveria por uma semana sem cumprir essas necessidades fisiológicas. Era como se aqueles dias não tivessem existido. Mas, se ele estava ali naquele  hospital, vivo, com certeza aqueles dias existiram, pensou. Quando tudo passasse alguém haveria de lhe dar aquelas respostas.

Lembrou-se que, nos momentos seguintes ao acidente que provocara a fratura no crânio, já sentia que havia acontecido alguma coisa mais grave com o seu cérebro e pediu que tirassem um raio-X do local da batida (ano 1975 - século 20). 

Em vez disso, sua mãe ignorou seus pedidos e convenceu os médicos de que ele estava apenas muito “nervoso” e "exagerando" o ocorrido e, em vez do exame, lhe aplicaram um calmante endovenoso que o fez dormir e acordar somente mais de uma semana depois (pelo menos era assim na memória dele). Foram exatos 10 dias que não existiram para ele.

Porque não acreditaram quando ele se queixou da estranha sensação que sentira no cérebro no dia do acidente?

Porque razão sua mãe não acreditara nos graves sintomas dos quais se queixara durante aquele trajeto até o hospital, logo após o violento choque de seu crânio com o chão? 

Quando viu seu pai e o médico que o socorrera na entrada se aproximando pelo imenso corredor, foi percebendo que a expressão de ambos era de tensão.

O pai se antecipou ao médico e falou:

- Você vai ter que ser internado.

- O que eu tenho? Perguntou assustado.

O médico tomou a palavra:

- Está com suspeita de fratura de crânio e ruptura da dura-máter, uma das três meninges que envolvem o cérebro. O líquido que estava saindo do seu nariz é o líquido que fica dentro dessa membrana e que envolve, protege e estabiliza o cérebro. A dor que você está sentindo é a pressão do ar que entrou quando o líquido saiu. Da mesma forma que o ar entra numa garrafa quando derramamos o seu conteúdo líquido.

Antes que ele perguntasse ou esboçasse qualquer reação, um enfermeiro começou empurrar sua maca em direção à sala de raios-X.

Ele estava muito assustado, com medo de morrer. Aos 19 anos, a ideia da morte é ainda muito mais aterrorizante. Nunca havia passado por nada tão sério com relação à saúde ou a acidentes graves. Tudo aquilo que o médico acabara de lhe falar soava muito amedrontador.

Os exames foram feitos e confirmou-se o diagnóstico inicial.

Foi levado para o 9° andar, neurologia, do Hospital das Forças Armadas, e instalado em um quarto branco, estéril e modernoso.

O médico regulou sua cama hospitalar para que a inclinação da cabeça ficasse no ângulo exato e devido. Ele não poderia se levantar para nada, absolutamente nada. Tampouco poderia se virar para os lados, na cama. Deitado de barriga para cima, sem poder ver televisão, ler ou qualquer outra atividade que pudesse exigir, mesmo que minimamente, esforço para o seu cérebro dolorido e inchado. Não poderia sair daquela posição nem quando estivesse dormindo.

A noite chegou, 24 de dezembro, véspera de natal. Ele não acreditava no que estava vivendo. A chuva intensa, que começou a cair e a escorrer pelo vidro da janela, parecia tornar aquela noite ainda mais surreal. 

A tempestade fez com que as linhas telefônicas parassem de funcionar, o que não era raro naquele tempo, isolando-o ainda mais da vida, e interrompendo a ligação telefônica com a única pessoa que se importava com ele naquela noite de terror, sua namorada que, por ter apenas 16 anos, não pôde passar a noite com ele no hospital, por ser menor de idade. 

A interrupção do telefonema aumentou ainda mais aquela profunda tristeza que não conhecia. O manto negro da solidão absoluta começou a tomar conta de tudo, até chegar ao recôndito mais profundo de sua alma.

Naquela noite de Natal suas únicas companhias foram o medo da morte, a solidão, o abandono e a ausência doída de todos que amava. E as lágrimas lhe caíram até que o sono o vencesse.

Nunca entendeu porque sua mãe, seu pai e seus irmãos o  abandonaram, daquela forma, durante um momento tão grave e crítico, quando acabara de saber que corria real e iminente perigo de morte, conforme o neurologista revelou.

Naquele Natal, quando ele mais precisava, todos estavam ausentes, ocupados com os festejos natalinos em família.

Nunca mais gostou do Natal.

Nunca compreendeu porque haviam feito aquilo com ele.

Mesmo décadas depois, ninguém em sua família sequer aceitava tocar naquele assunto, escutá-lo ou respondê-lo. Sempre que ele tentava, obtinha a mesma resposta vazia, impessoal e desprovida de qualquer empatia, carinho ou solidariedade:

- Esquece isso...

Dita sempre de uma forma fria, desinteressada e lacônica.

E ele nunca soube o que aconteceu naqueles 10 dias que não existiram.

 - Edmir Saint-Clair

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OS LACERDINHAS (O INCÊNDIO DA PRAIA DO PINTO)

 Nunca mais vi um Lacerdinha.

Pensando bem, faz muitos anos que nem sequer ouço falar. O Lacerdinha tinha poucos milímetros e não voava. E o Lacerdinha não transmitia doenças.

Era pretinho e infestava o Leblon, principalmente as transversais, numa certa época do ano. Minhas lembranças com relação a eles estão ligadas à época em que eu morava na Rua José Linhares.

No final da tarde, eram cigarras cantando e Lacerdinhas caindo das árvores. Às vezes nos olhos. Ardia e coçava muito!

Deixava os olhos inchados e nossas mães preocupadas.

Eles eram atraídos por roupa clara, principalmente as amarelas. Por vezes, atingiam os olhos e provocavam irritação e ardência intensas.

Esses minúsculos insetos eram chamados de Lacerdinhas em referência a um antigo político carioca, Carlos Lacerda, que fora governador no tempo do estado da Guanabara.

Descobrimos que os lacerdinhas depositavam suas larvas nas folhas das árvores, que ainda estavam enroladas e cheias de água da chuva. A gente as desenrolava e surgiam um monte de Lacerdinhas pequenos em seu interior.

Para mim, os Lacerdinhas despertam uma lembrança muito marcante.

Uma história que me provoca um sentimento muito incômodo até hoje. Eu tinha uns seis anos de idade e era acostumado a brincar na nossa rua, mas só no quarteirão, sem atravessar a rua. Havia muitas crianças, tanto no meu prédio quanto nos prédios vizinhos que faziam parte daquela turminha de meninos da mesma idade.

 Naquele tempo no Leblon, a maioria das casas tinha uma empregada que morava na favela Praia do Pinto ou na Cruzada São Sebastião.

Quando, por algum motivo, a empregada da minha mãe levava o filho para o trabalho, no caso a minha casa, ele se tornava um amigo a mais, que passaria o dia brincando comigo, meu irmão e nossos outros amigos. No período das férias escolares isso era bem frequente e, às vezes, a Dona Celestina voltava para a casa deles na favela da Praia do Pinto e ele ficava e dormia lá em casa com a gente. Eu e meu irmão adorávamos a presença dele. Era um menino doce, risonho e engraçado.

Seu apelido era Bilico, o nome era Bernardo, o dia era sábado, dez de maio de mil novecentos e sessenta e nove, véspera do Dia das Mães.

Dona Celestina e minha mãe estariam ocupadas o dia inteiro preparando o almoço comemorativo do dia seguinte.

Bilico era mais novo que eu, um ano e mais velho que meu irmão apenas alguns meses. Era negro com os dentes grandes e muito brancos. Era tímido, mas engraçado, falava de uma maneira diferente que eu achava legal. Quando Bilico passava o dia lá em casa fazia tudo junto comigo e meu irmão; assumia a nossa rotina, almoçava, tomava banho, brincava, lanchava, descia para brincar conosco e era sempre muito divertido.

Nesse dia, Bilico chegou cedo, tomou café conosco e descemos pra rua pra brincar. Era época de Lacerdinha.

Dentre os garotos que brincavam na rua, tinha um que era especialmente assustador para mim e meu irmão. O Arlindo era mais velho, mas não andava com os garotos da idade dele. Andava conosco, que tínhamos uns dois anos a menos. Nessa idade, isso faz uma grande diferença.  Gostava de nos intimidar e bater. Ninguém ficava com pena quando o pai dele aparecia chamando-o, sempre gritando e batendo nele.

Nós também tínhamos medo do pai dele.

Nessa tarde, estávamos catando Lacerdinhas nas árvores. Abríamos as folhas e ficávamos observando os Lacerdinhas se mexendo lá dentro.

De repente, o Arlindo pega uns Lacerdinhas com o dedo e enfia com violência no olho do Bilíco, que observava bem de pertinho.

−  Tá com fome? Come neguinho esfomeado!

Arlindo falou aquilo com mais raiva do que lhe era peculiar, todos nós tomamos um susto. E ele nem conhecia o Bilíco...

Bilíco começa a coçar o olho e a chorar com a ardência intensa.

Todos os meninos começaram a rir. Menos eu, meu irmão e o Bilíco, que saiu andando e chorando na direção da portaria do nosso prédio.

Lembro que me veio um sentimento estranho e desconfortável que eu nunca havia experimentado antes - anos mais tarde eu saberia que aquilo se chama constrangimento - e que nunca me saiu da memória. Eu senti vergonha. Vergonha de não ter defendido o Bilíco, ele era meu amigo.

Bilíco não subiu para nossa casa, ficou num canto da portaria chorando baixinho. Falou que se chegasse lá em cima chorando e com o olho inchado sua mãe iria brigar com ele. Ela recomendava-lhe sempre que não queria que ele arrumasse confusão com os "filhos das madames".

Depois de algum tempo, ele parou de chorar e subimos. Pela escada. Naquela época, os empregados e pessoas negras de cor" só podiam subir pelo elevador de serviço.

Mas o Bilíco só subia pela escada, tinha medo de elevadores.

  Quando chegamos em casa, a primeira coisa que Dona Celestina viu foi o olho do filho inchado e muito vermelho. Não falou nada, mas fechou a cara. Chamou o Bilíco para a cozinha e de lá só o vimos de novo quando eles foram embora, bem mais tarde. Lembro-me bem da expressão de choro dele quando se despediu da gente.

Aquele sábado me marcou para sempre.

Naquela mesma noite, um misterioso e devastador incêndio irrompeu e tomou conta da favela onde eles moravam. Queimou por toda a madrugada e por muitas horas seguintes, consumindo tudo e deixando centenas e centenas de famílias sem teto e sem nada. Era dia onze de maio de mil novecentos e sessenta e nove, Dia das Mães.

A casa da Dona Celestina e do Bilíco pegou fogo e virou cinzas, junto com toda a favela da Praia do Pinto, que queimou inteira.

         Não sobrou nenhum barraco de pé.

Dona Celestina nunca mais voltou, e o Bilíco nunca mais veio passar o dia conosco.

Nunca mais soubemos deles.

-  Edmir Saint-Clair


A favela banida


A história sobre o incêndio da favela Praia do Pinto.

EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR


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A MEDALHA DE SÃO JORGE

 


A ansiedade era grande. Não via o filho há tempo demais. Saudade apertada, mais ainda quando faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quis que Felipe fosse pegá-lo no aeroporto por conta da falta de previsão de tempo nas esperas entre conexões. Estava vindo de Pequim, depois de cinco anos na China.

Felipe resolveu descansar um pouco, a ansiedade desses últimos dias havia sido desgastante. Deitou-se no sofá da sala e adormeceu. Passara a noite acordado, ansioso, pensando na volta do filho. Agora, cedia ao cansaço.

A campainha toca insistentemente. Ele levanta assustado e, ato reflexo, corre para a porta.

O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h e 06m da manhã. Felipe abre a porta.

− Diego... Dá cá um abraço filhão...

Diego abraça o pai com força e saudade iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e familiar. Pai e filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor na mais pura acepção dessa palavra tão profunda.

Felipe pega uma das malas enquanto o filho às outras. Pelo volume da bagagem, veio de vez. Tomara, pensou.

Vôos internacionais sempre chegam cedo pela manhã. A tempo de aproveitarem e brincar um pouco nas ondas do final do Leblon. Felipe mostra a Diego a prancha que mandou fazer de presente para o filho.

Diego fica emocionado com a recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daquele demorado e saudoso abraço. Tem orgulho do pai. A felicidade dos dois é transbordante. Aqueles momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca vai sair. Olhar para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.

− Ele é meu filho. Pensou.

− Ele é meu pai. 

Pensou o filho no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são grandes demais, não cabem em palavras.

A felicidade acontecia explicitamente naquele momento, pai e filho desfrutando a plenitude da presença do outro.

Combinaram que Diego ia dormir um pouco, viajara por  mais de 30 horas. Estava exausto.

Felipe deu um beijo na testa do filho e saiu do quarto.

Diego não acordaria antes das 14h, ele tinha 6 horas pela frente. Seria bom almoçarem em casa para que Diego pudesse acordar com calma e sem pressa. Lembrou-se da feijoada de sábado do Degrau que sempre comeram desde que o filho era pequeno.  Depois da separação, a feijoada tinha se tornado programa obrigatório dos dois. É a pedida perfeita para hoje.

Ele volta até a porta do quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo.

Uma feijoada e depois uma boa remada no mar de final de tarde de outono. A luz mais bonita do Rio de Janeiro.

Seria perfeito se tivéssemos um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fumava. Fumar um baseado com o filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um ritual. O preconceito é uma lente mal construída que torna tudo mais feio. Uma lente de enfeiar o mundo.

Havia algum tempo que Felipe não comprava maconha, e tinha perdido o contato com os eventuais fornecedores do bairro. Nessa altura do fim de semana, se quisesse fumar um baseado antes da praia com o filho, teria que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é tranqüilo, pensou. Riu sozinho, a última vez que foi na Cruzada comprar um baseado deve ter sido há, pelo menos, uns 25 anos atrás.

Diego voltou três dias antes de completar 30 anos. Um adulto, profissional com formação altamente especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai, só haviam morado juntos nos primeiros dois anos da vida dele. Época da qual, obviamente, não se lembrava. Depois, eram fins de semana, férias e feriados, como todo pai separado. Pouco antes de viajar para a China, passaram onze meses morando juntos. O maior tempo que passaram até então. Os melhores também.

Felipe mora na Selva de Pedra. A Cruzada fica a um quarteirão. Antes, resolve passar no Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem, e garantir que nada saísse errado. A feijoada de sábado do Degrau é concorrida no bairro e costuma acabar cedo. A idéia é, em vez de saírem para comê-la no restaurante, ele a servirá em casa, para que Diego acorde com toda calma e a coma na maior preguiça que conseguir.

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Diego não conseguia parar de se mexer na cama, inquieto. Acordou incomodado, achou que fosse o frio do ar condicionado e se cobriu mais. Olhou a hora no celular, 11 horas da manhã. Dormira apenas por 3 horas... Isso não costumava acontecer. Geralmente, dormia 6 horas ininterruptas de um sono calmo. Sempre agradecia mentalmente o pai tê-lo introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribuía a isso sua calma e equilíbrio. Mas, não naquele momento. Ainda cansado e sem conseguir adormecer novamente, sentia uma sensação estranha, uma ansiedade incomum. Rolou na cama até o cansaço vencer. Adormeceu.  Mas, o sono não foi repousante.

Acorda sobressaltado de um sono rápido e agitado. Olha o celular, meio-dia. É certo que não conseguiria mais dormir, e ficar na cama seria pior. Atribuiu a angústia à excitação da chegada, ao fuso horário e a tudo junto, pensou. Não estava acostumado a sentir aquela inquietação interna remexendo seu estômago. Não estava acostumado a sentir a sensação de ansiedade, sem motivo, sem sentido. Detestava se sentir confuso. Havia algo diferente e errado.

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Felipe atravessou a rua e seguiu na direção da Cruzada.  Quando parou no cruzamento com a Av. Afrânio de Melo Franco, notou que a porta da Delegacia estava movimentada.

O sinal abriu e ele atravessou. Chegando esquina oposta, viu Adilson acenando e saindo da Igreja Santos Anjos, ele acenou de volta. São amigos desde pequenos, jogaram juntos no time de futebol de praia e muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas. Distanciaram-se quando chegaram à vida adulta. Hoje, Felipe é arquiteto e Adilson motorista numa empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e continua a morar na Cruzada, no apartamento que herdara dos pais. Apesar de ter tido amigos ali, Felipe entrara poucas vezes naquela comunidade. No Leblon, geralmente, algum desses amigos que moravam lá, pegavam os baseados para os outros que não moravam. Faziam “um avião pros amigos”. Sempre foi assim.

A certa altura de uma conversa formal, Felipe pergunta se Adilson poderia comprar um baseado para ele. A reação foi inesperada.

Adilson mostrou-se visivelmente contrariado e ofendido.

− Felipe, sempre achei você um cara legal. Gosto de você... Temos mais de 50 anos, nunca mais me peça isso. Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.

O constrangimento mútuo foi bastante incomodo. Os dois se conheciam desde pequenos. Naquele instante, uma distância nunca antes percebida deu-lhes um tapa na cara. A distância que sempre fingimos que não existia, como todos no Leblon, se escancarou ali na esquina da Igreja Santos Anjos.

Deram-se um aperto de mão e Adilson pôs-se a caminhar na direção de sua casa, a Cruzada.

Felipe demorou alguns minutos tentando compreender o que ocorrera. Ficou parado, na esquina, olhando Adilson que já ia vários metros à frente. Sentiu-se envergonhado. Mas, não sabia ao certo por que.

Recuperou-se quando lembrou que Diego o estava esperando. Teria que entrar na Cruzada para comprar. Voltou a caminhar, cuidando para não ir nem rápido, nem devagar demais. Normal. Não estava mais acostumado àquela situação. Estava se sentindo agoniado, lamentava ter ofendido o amigo, mesmo que involuntariamente.

Em seguida, ouviu dois ou três tiros que ele não soube precisar de que direção vinham. Não sabia que lado deveria proteger. Ouviu sirenes e barulho de carros vindos da direção da delegacia, os tiros aumentaram de intensidade. Percebeu que estava no meio do fogo cruzado. Imediatamente, sentiu algo rasgando e queimando sua barriga, uma dor profunda e o sangue quente jorrando e molhando-lhe os órgãos genitais e as pernas. Caiu com as mãos na barriga e a dor arrancou-lhe um gemido alto. Como se uma flecha de aço em brasa o tivesse penetrado fundo. Arrastou-se até o pilotis mais próximo. Era tudo que podia fazer naquele momento. Era surreal. Gritos vindos de todas as direções. Os tiros continuavam, era desesperador sentir o sangue escorrer e nenhuma possibilidade de socorro imediato. Pensou no filho e doeu-lhe a alma. Não podia morrer ali. Não hoje. Os tiros continuaram.

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Diego adorava os requintes aos quais o pai se dedicava. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de Expresso Italiano sempre com dezenas de opções e variedades de grãos de café que ele moía na hora. O café estava excelente, mas a ansiedade aumentara. Virou a xícara impaciente, sem degustar. Arrumou-se e resolveu descer.

Diego salta do elevador e da portaria já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de quem tem algo errado é cada vez mais intensa.

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Felipe tenta manter a respiração sob controle enquanto pressiona o ferimento que continua sangrando, empoçando na laje da rua. Felipe sente que está enfraquecendo, sente medo. Tenta manter a clareza. Pensar. Os tiros parecem que pararam. Adilson é o primeiro a aparecer na sua frente.

− Puta que pariu! Que merda meu véio! , gritou Adilson assustado, enquanto digitava o celular chamando o SAMU. Ali na Cruzada todos tem o número desse telefone. Após a ligação, Adilson agacha-se ao lado de Felipe que já está bastante pálido. O tiro era de grosso calibre e atingira o lado direito do abdômen. A hemorragia era intensa.

Felipe falou com a voz enfraquecida:

− Adilson, por favor, avisa meu filho.

− Você ainda mora no mesmo endereço?

Felipe confirmou com um movimento de cabeça.

Adilson arrancou um pingente do pescoço e partiu a medalha em dois:

− Fica com isso na mão e pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou dar a outra metade para o Diego.

Apenas percebeu quando os enfermeiros abriram espaço e o colocaram na maca. Tudo parecia nebuloso e distante. Os sons e vozes tinham eco. Os paramédicos fizeram alguns procedimentos ali mesmo. Ainda deu tempo de reforçar o pedido a Adilson.

Felipe apertou a metade da medalha nas mãos e começou rezar do jeito que ainda se lembrava.

Os solavancos da maca sendo encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados. Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente literalmente a vida se esvaindo até desfalecer.

•         * * *

Em poucos minutos vários moradores já estavam na rua. A Selva de Pedra tem um jeito próprio de ser. Diego continuava cada vez mais ansioso e angustiado. Tentando entender algo daquela agitação, recebe uma explicação do porteiro do seu prédio; Troca de tiros na Cruzada com um baleado grave.

Diego sentiu um calafrio percorrer sua coluna como um bisturi gelado cortando suas costas. Percebeu um homem caminhando a passos rápidos vindo da praça na direção de sua portaria e o reconhece. É Adilson, amigo do pai que jogou futebol de praia com ele e morava na... Cruzada São Sebastião!

Sentiu as pernas se curvarem sem forças. Não podia ser. Mas, quanto mais Adilson chegava perto, mais seu olhar deixava claro quem era o baleado. Mas, não fazia sentido!

Adilson conhecera Diego desde que este nascera.

Chegou perto e o tirou da presença de outras pessoas.

− Diego, seu pai foi baleado. Está indo para o Hospital Miguel Couto e pediu pra você ir para lá.  Mas, antes ele pediu pra você pegar os documentos dele que estão na mesinha de cabeceira.

Adilson toca o ombro de Diego antes que ele saísse em direção à portaria para pegar os documentos. Tira a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a Diego.

− Fica com isso na mão e pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber rezar. Para São Jorge de Ogum. A outra metade está com o Felipe. Agora vai, começa a rezar desde agora.

Diego está em estado de choque e procede como um robô, agindo mecanicamente. Ele não sabe rezar. Nunca aprendeu, nunca o ensinaram. Mas, ele pede a São Jorge de Ogum, com todas as forças e com a fé que nunca soubera ter. O elevador chega. Ele entra, toca o número de seu andar e volta para sua reza improvisada, mas cheia de fé. Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como há algumas horas atrás. Consegue sentir na alma o abraço que se deram. Seu espírito se acalmou, estranhamente, se acalmou. Quando abriu os olhos, ainda estava no segundo de dez andares. Parecia haver passado muito mais tempo. Abriu a mão e a metade da medalha havia marcado sua palma, tamanha a força com a qual a apertara.

O elevador chegou ao andar e ele abriu a porta. Quando saiu da cabine e olhou para a porta do apartamento de seu pai tomou um sustou que o deixou tonto. Suas malas estavam na porta. Ele se olhou e estava com a mesma roupa de quando chegou de viagem. Buscou a chave do apartamento no bolso e não a encontrou. Olhou de novo para suas malas ali na porta e aquilo era desconcertante. Não sabia o que pensar. Num impulso repentino, tocou a campainha e ouviu movimentos vindos do outro lado da porta. Tocou de novo. Ouviu o barulho da fechadura sendo aberta e, nesses infinitos milésimos de segundos, desejou o impossível. A porta se abriu e Felipe aparece com a epressão mais apavorada que ele já havia visto na face do pai. Os dois se abraçam e choram. Cada um com a sua metade da medalha de São Jorge de Ogum na mão.

No antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, os ponteiros marcam 8h e 06m da manhã, pela segunda vez no mesmo dia.

Pai e filho abrem as mãos, ao mesmo tempo, e mostram cada um a sua metade da medalha para o outro.

- Edmir Saint-Clair

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