COACH LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro. Um profissional técnico, especializado em criação, um professor de escrita e um parceiro, ao mesmo tempo. Experimente, é terapêutico e libertador. Perpetue as histórias que só você tem para contar.
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NOITE DE NATAL

 

Seu pai o despertou dizendo-lhe que era o dia de retirar os pontos. Dia 24 de dezembro, mas ele não tinha a menor ideia, nem de que dia da semana era aquele e muito menos do mês.

 Acordou e permaneceu deitado, tudo estava muito estranho. Ele se sentia estranho demais. Não tinha noção de que dia era aquele, nem de quanto tempo havia "dormido", o que, até aquele momento, pensava ter sido um sono normal. Nunca se sentira daquela forma. O corpo fraco, tremolo, a cabeça não encontrava um ponto de equilíbrio sobre seu pescoço e parecia pender para os lados. Uma intensa coriza começou a lhe escorrer pelo nariz.

Passou a mão no rosto e sentiu o curativo grande no supercílio direito. Lembrou-se do acidente. Um pensamento racional no meio daquele caos mental o fez dar-se conta que havia passado muito mais tempo do que imaginava.

Levantou-se com muita dificuldade.  Quando deu por si já estava deitado no banco de trás do carro do pai. As superquadras de Brasília possuem  quebra molas enormes e sua cabeça explode a cada solavanco. Devia estar resfriado, pensou, ainda bem que trouxe um rolo de papel higiênico para dar conta daquela coriza incomum. Assua o nariz sente uma pontada aguda na cabeça e ouve um barulho vindo de dentro de seu crânio.

Quando o pai para na entrada do Hospital das Forças Armadas, ele mal consegue saltar do carro, no que foi ajudado por não sabe quem.

Apoiando-se no bom samaritano, foi conduzido até a entrada do prédio, enquanto seu pai fora estacionar o carro. Ouvia sua cabeça fazer mais barulhos esquisitos, nunca havia sentido aquilo. Seu nariz escorria numa coriza que nunca tivera antes. De repente, ouve uma voz elevar-se com autoridade:

- Tragam uma maca imediatamente para esse rapaz!

Era um médico e o rapaz era ele.

Deitaram-no na maca, que chegou junto com seu pai que vinha do estacionamento.

Ele não tinha a menor ideia do estava acontecendo, estava confuso e assustado. Sentiu-se frágil e indefeso. Não parecia um pesadelo, ele sabia que era real.

O médico lhe fez algumas perguntas que seu pai o ajudou a responder. Só então se deu conta de que "dormira" mais de uma semana e que não  se lembrava de nada do que acontecera nesse ínterim. A não ser de ter acordado uma  noite,  depois do impacto no rodapé que  lhe rasgou o lado direito frontal da cabeça.

Daquele único dia em que acordou, em casa, depois do acidente, sua leve lembrança era da dor lancinante na cabeça  que o fizera implorar para que seus pais o levassem para o hospital. Eles não o levaram. Porque  não o fizeram?  E ele "dormiu" mais alguns dias.

Não se lembrava de ter acordado nenhuma vez, além daquela. Não se lembrava de como se alimentara, bebera água, como fora ao banheiro ou como fizera qualquer outra coisa. Um ser humano não sobreviveria por uma semana sem cumprir essas necessidades fisiológicas. Era como se aqueles dias não tivessem existido. Mas, se ele estava ali naquele no hospital, vivo, com certeza aqueles dias existiram, pensou. Quando tudo passasse alguém haveria de lhe dar aquelas respostas.

Lembrou-se que, nos momentos seguintes ao acidente que provocara a fratura no crânio, já sentia que havia acontecido alguma coisa mais grave com o seu cérebro e pediu que tirassem um raio-X do local da batida (ano 1975 - século 20). 

Em vez disso, sua mãe ignorou seus pedidos e convenceu os médicos de que ele estava apenas muito “nervoso” e "exagerando" o ocorrido e, em vez do exame, lhe aplicaram um calmante endovenoso que o fez dormir e acordar somente mais de uma semana depois (pelo menos era assim na memória dele). Foram exatos 10 dias que não existiram.

Porque não acreditaram quando ele se queixou da estranha sensação que sentira no cérebro no dia do acidente?

Porque razão sua mãe não acreditara nos graves sintomas dos quais se queixara durante aquele trajeto até o hospital, logo após o violento choque de seu crânio com o chão? 

Quando viu seu pai e o médico que o socorrera na entrada se aproximando pelo imenso corredor, foi percebendo que a expressão de ambos era de tensão.

O pai se antecipou ao médico e falou:

- Você vai ter que ser internado.

- O que eu tenho? Perguntou assustado.

O médico tomou a palavra:

- Está com suspeita de fratura de crânio e ruptura da dura-máter, uma das duas membranas que envolve o cérebro, junto com a meninge. O líquido que estava saindo do seu nariz é o líquido que fica dentro dessa membrana e que envolve, protege e estabiliza o cérebro. A dor que você está sentindo é a pressão do ar que entrou quando o líquido saiu. Da mesma forma que o ar entra numa garrafa quando derramamos o seu conteúdo líquido.

Antes que ele perguntasse ou esboçasse qualquer reação, um enfermeiro começou empurrar sua maca em direção à sala de raios-X.

Ele estava muito assustado, com medo de morrer. Aos 19 anos, a ideia da morte é ainda muito mais aterrorizante. Nunca havia passado por nada tão sério com relação à saúde ou a acidentes graves. Tudo aquilo que o médico acabara de lhe falar soava muito amedrontador.

Os exames foram feitos e confirmou-se o diagnóstico inicial.

Foi levado para o 9° andar, neurologia, do Hospital das Forças Armadas, e instalado em um quarto branco, estéril e modernoso.

O médico regulou sua cama hospitalar para que a inclinação da cabeça ficasse no ângulo exato e devido. Ele não poderia se levantar para nada, absolutamente nada. Tampouco poderia se virar para os lados, na cama. Deitado de barriga para cima, sem poder ver televisão, ler ou qualquer outra atividade que pudesse exigir, mesmo que minimamente, esforço para o seu cérebro dolorido e inchado. Não poderia sair daquela posição nem quando estivesse dormindo.

A noite chegou, 24 de dezembro, véspera de natal. Ele não acreditava no que estava vivendo. A chuva intensa, que começou a cair e a escorrer pelo vidro da janela, parecia tornar aquela noite ainda mais surreal. 

A tempestade fez com que as linhas telefônicas parassem de funcionar, o que não era raro naquele tempo, isolando-o ainda mais da vida, e interrompendo a comunicação com a única pessoa que se importava com ele naquela noite de terror, sua namorada que, por ter apenas 16 anos, não pôde passar a noite com ele no hospital, por ser menor de idade. 

A interrupção aumentou ainda mais aquela profunda tristeza que não conhecia. O manto negro da solidão absoluta começou a tomar conta de tudo, até chegar ao recôndito mais profundo de sua alma.

Naquela noite de Natal suas únicas companhias foram o medo da morte, a solidão, o abandono e a ausência doída de todos que amava. E as lágrimas lhe caíram até que o sono o vencesse.

Nunca entendeu porque sua mãe, seu pai e seus irmãos o  abandonaram, daquela forma, durante um momento tão grave e crítico, quando acabara de saber que corria real e iminente perigo de morte, conforme o neurologista revelou.

Naquele Natal, quando ele mais precisava, todos estavam ausentes, ocupados com os festejos natalinos em família.

Nunca mais gostou do Natal.

Nunca compreendeu porque haviam feito aquilo com ele.

Mesmo décadas depois, ninguém em sua família sequer aceitava tocar naquele assunto, escutá-lo ou respondê-lo. Sempre que ele tentava, obtinha a mesma resposta vazia, impessoal e desprovida de qualquer empatia, carinho ou solidariedade:

- Esquece isso...

Dita sempre de uma forma fria, desinteressada e lacônica.

E ele nunca soube o que aconteceu naqueles 10 dias que não existiram.

 - Edmir Saint-Clair

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SAINDO DA DEPRESSÃO


De repente, ele se deu conta que as coisas começavam a entrar num sincronismo que há muito não existia. Pequenos detalhes se encaixando no momento certo.

O sabonete, que acabava no meio do banho, agora tem outro novinho à mão. A toalha, que ele não se esquecera de pegar, a mesma que só se lembrava de não tê-la pego quando estava fechando o chuveiro. O banho, que sempre lhe trouxe bem estar, ainda mais no verão carioca. A depressão havia lhe tirado todos os prazeres, até o da higiene.

De repente, o encadeamento dos eventos rotineiros parecia entrar em sintonia, um acontecimento não atrapalha mais o outro, agora, todos parecem se complementar.  Ele começou a perceber um aumento na capacidade de tomar pequenas decisões, como a que o fez comprar o sabonete antes que o outro acabasse, como era comum acontecer. A depressão lhe tirara a capacidade de decidir sobre tudo e qualquer coisa.

Seu cérebro estava se curando, buscando a estabilidade, a homeostase, se consertando.

Ele sabe que se não atrapalhar seu cérebro, tudo vai continuar a entrar, cada vez mais, em sintonia.

Sintonia com o quê ou quem?  Consigo mesmo. Com a sensação de se bastar, de não precisar de nada além da água caindo sobre seu corpo para ter aquela sensação de plenitude que sentia naquele agora.

Percebeu que estava fora do inferno. Um profundo alívio, do qual sobreveio uma leveza indescritível.  Perdeu o sentido de urgência, a ansiedade se dissipou.

Não foi mágica, foi ajuda, pedira socorro. Sozinho, teria morrido. Foi terapia, foi neuropsicologia. Foi a ciência que ajudou seu cérebro a se curar, deixando-o ser maravilhosamente fantástico como o de todos os seres humanos, permitindo que se reprocessasse e arrumasse toda a bagunça. A ciência fora capaz de lhe curar, intercedendo, efetivamente, na desensibilização e reprocessamento de traumas que lhe afetavam muito mais do que supunha sua vã filosofia.

Até aquele momento, ele não acreditava que sairia daquele mundo de horror chamado depressão. Ninguém que esteja passando por ela acredita que possa vencê-la, faz parte da doença.

Naquele momento, a água, o sabonete e a toalha lhe mostraram que ele estava de volta à vida.

Sobrevivera.

– Edmir Saint-Clair

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O ROUBO QUE NUNCA ACONTECEU

 

    Tudo dentro do planejado. Com alguma folga. Dá tempo de tomar um coco apreciando esse maravilhoso pôr do sol.

- A meditação tem me feito bem, pensou Jair.

Ele avista seu alvo a uma distância ideal. Levanta-se e mistura-se entre os corredores que passam. Regula seus passos no ritmo dos mais lentos. Quando percebe a aproximação esperada, reduz  mais um pouco seu ritmo, de modo que durante a ultrapassagem pelo alvo possa forçar alguma troca de olhares. Após a ultrapassagem bem sucedida, a distância aumenta apenas um pouco, o suficiente para não despertar suspeitas. E assim, foram e voltaram até o arpoador. Na volta, a distância ficara maior,  ficar muito próximo poderia despertar suspeitas. Jair sabe onde o alvo vai parar. Havia estudado minuciosamente a rotina do jovem deputado estadual.

Nos últimos metros, acelera a marcha e quando para no quiosque está ofegante, como deveria. Não foi difícil surgir assunto entre os dois enquanto tomam água de coco. Quando o alvo se despede, já existe uma certa camaradagem tipicamente carioca entre corredores de praia.

A partir daquele momento, tudo tinha que ter acertividade e rapidez. Assim que o alvo atravessa as duas pistas da praia, na direção da Rua Cupertino Durão, Jair apressa o passo e rapidamente alcança o outro lado da rua, onde o alvo tem de passar, obrigatoriamente. Encosta-se numa das árvores, entre dois carros estacionados, e aguarda. Ninguém vindo de nenhum dos lados.

O alvo passa e é abordado de forma agressiva, não deixando margem para reação alguma.

 - Sérgio, isso aqui é uma arma. Fique quieto e preste atenção. Vamos até a sua casa, andando devagar e conversando como dois velhos amigos. Se você fizer qualquer coisa errada morre. Ouviu? Responde! Ouviu?!

Jair foi bastante agressivo na aproximação, não deixando espaço para argumentações. Sérgio estava paralisado e apenas balbuciou um sim quase inaudível. Sempre foi uma pessoa muito medrosa.

Jair continua.

- Quanto mais nervoso você ficar mais perigoso fica para nós dois. Então fique calmo e tudo vai dar certo. Prometo pra você.

Com a arma dentro do agasalho, mas já devidamente apresentada a Sérgio, os dois continuam a andar na direção do elegante prédio do jovem deputado.

Sobem direto, sem parar na portaria. Morador não precisa se identificar. E, na maioria, nesses prédios, não se dá boa noite a porteiros.

Sérgio mora sozinho.

Na ampla sala, Sérgio não sabe o que estava realmente acontecendo, mas já percebe que um assalto comum não é.

Sérgio nunca fora dos mais corajosos, por isso estava acostumado a ser submisso sem questionar. Jair o manda sentar-se no sofá da sala.

À essa altura, por todo o contexto percebido, Sérgio começa a desconfiar porque Jair está ali. Ainda bastante nervoso tenta amenizar o clima.

- Fique tranqüilo, pode levar tudo o que você quiser. Não vou causar nenhum problema. Só quero não quero violências, por favor.

Sérgio tem a voz trêmula. Seu medo é visível e patético.

- Sérgio, sei que você tem 500 mil dólares em cédulas e cheques de viagem aqui no seu apartamento. Sei a que horas, onde, e a mando de quem você pegou esse dinheiro. Sei que ninguém pode saber que esse dinheiro existe e muito menos que está aqui na sua casa.

Sérgio ficou completamente branco. Pensou que seria roubado, mas aquilo era bem mais do que isso. Definitivamente, não era um simples assalto. Havia algo por trás.

- Você é policial federal? Perguntou Sérgio.

- Sorte sua que não!! Se fosse teria que matá-lo. Respondeu Jair soltando um riso.

Ainda sem entender, Sérgio percebe que Jair já não parece tão violento quanto no início, mesmo assim não consegue parar de tremer. Sempre fora medroso. Era óbvio que não estava lidando com um ladrãozinho pé de chinelo. Pelo linguajar e pela postura, Jair é profissional. Talvez, das forças de segurança. Na verdade, não fazia idéia de quem se tratava e de onde surgira aquele homem.

Jair pega seu celular e começa a filmar Sérgio.

- Você vai gravar? Por quê?! Pergunta Sérgio.

- Se levanta e vai pegar a mala com o dinheiro. Diz Jair apontando o celular.

Sérgio hesita:

- Não está mais aqui... o secretário do senador já pegou...

A voz de Sérgio falha e irrita Jair, que rapidamente troca o celular pela pistola, engatilha e aponta para ele.

O corajoso deputado se transfigura apavorado, e imediatamente revela que a mala está dentro do armário no quarto.

Jair não segura o riso. Os dois se recompõe, Jair volta a falar manso e nota que o deputado havia mijado nas calças.

Sérgio entra em seu quarto, abre o armário, pega a mala, coloca-a sobre a cama e a abre. Jair grava tudo ininterruptamente com o celular. Enquadrando o quarto inteiro, alternando com closes da mala e dos retratos de família no quarto do deputado, para caracterizar, com detalhes, onde estão naquele momento.

A seguir, voltam para a sala e Jair continua gravando a mala aberta sobre a mesa de jantar e a sala inteira ao fundo.

Pronto, aquele vídeo não deixa dúvidas de que aquele dinheiro esteve com o deputado dentro de sua casa.

Jair recolhe a mala cheia de dólares. Diante do atônito e medroso deputado mijado, recoloca seu agasalho esportivo, guarda o celular e a pistola no bolso.

- Sérgio, agora vai ser o seguinte. Daqui a duas horas vou enviar para você, pelo seu whatsApp, o vídeo que fizemos agora. Ou seja, eu tenho a prova de que você estava com 500 mil dólares em dinheiro vivo, e que, obviamente, não tem como explicar porque vieram parar aqui sem comprometer muita gente graúda. 

Mostre esse vídeo para o seu "pessoal”, porque ele também garante que você não pode ser preso para não delatar. Ou seja, não ter acontecido nada aqui, será melhor para todo mundo. 

Se eu souber que tem alguém atrás de mim, jogo esse vídeo na internet na hora, os jornalistas vão adorar e isso vai virar o próximo escândalo nacional da semana.

Sérgio ouviu calado, e calado permaneceu. 

Afinal, oficialmente, aquele dinheiro nunca existiu e ninguém poderia reclamá-lo sem se incriminar. Não tinha nada a dizer. Não podia fazer nada. A não ser aguardar o vídeo para garantir que continuaria vivo e interessante para o poder que representava.

Jair saiu do prédio tranquilamente, não sem antes perguntar ao simpático porteiro quanto estava o jogo do Flamengo contra o Botafogo no Maracanã:

- 4 a Zero pro Mengão, doutor! E ainda tá no primeiro tempo...

Era o que faltava para coroar aquela noite dourada para Jair. Afinal, como diz a sabedoria popular:

- Ladrão...que rouba ladrão...Tá perdoado!

  - Edmir Saint-Clair

Este conto faz parte do Livro "A Casa Encantada - Contos do Leblon"


 
 

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O REENCONTRO




 "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos 
por aqueles que não podiam escutar a música."  Nietzsche

        Sexta-feira, saída do metrô, estação Jardim Oceânico, 7h da noite, chove. Ele se maldiz pela escolha de ter deixado o carro estacionado e ter pegado o metrô para ir ao centro. Sua reunião não durou nem uma hora e o custo do estacionamento não compensou a trabalheira das baldeações. Para completar, esqueceu o guarda-chuva no vagão do trem. Estava aguardando não sabe o que, para iniciar a corrida de uns 200 metros até o local onde seu carro está estacionado, quando um senhor grisalho, de uns 70 anos, segura seu braço embaraçosamente e lhe fala com uma dicção perfeita e expressando-se de forma absolutamente clara e pausada:

  Daqui a exatamente duas semanas, numa mesma sexta-feira, viaje de carro para Nova Friburgo e vá até Murí, ao local da entrada da estrada de terra que leva até o lugar onde você foi mais feliz na sua vida. Você sabe onde fica. Não falte, não haverá outra chance. Esteja lá no horário que você sabe qual será.

 O Senhor acabou de falar e desceu para a estação do metrô, passando pela roleta e desaparecendo entre a multidão no horário de maior movimento.

    Flávio demorou alguns segundos tentando entender o que fora aquilo. Olhou para fora e percebeu que a chuva dera uma arrefecida e resolveu correr para seu carro.

Entrou, ajeitou-se no banco, ligou o carro e só então começou a perceber o quanto aquele estranho evento o tinha afetado. Sentiu-se muito estranho. Não havia dúvidas sobre nada do que ocorreu naquele encontro surreal. Para organizar os pensamentos, refaz passo a passo os momentos, desde que desceu do vagão do trem e chegou à marquise na saída da estação. Lembrou-se que aquele Senhor não estava dentro da estação quando o abordou, estava vindo de fora no sentido de quem vai entrar no local.

Fato número dois; ele jamais havia visto aquele homem na vida. O homem também não falou o nome dele.

Teria aquele Senhor o confundido com alguém?

O problema é o que aquele estranho falou.

O trajeto até em casa, foi feito pela solitária e deserta praia da reserva biológica, entre a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes.

Quanto mais pensava no que aquele velho havia falado, mais fazia sentido. Pensou que aquele evento, um tanto sombrio, logo sairia de sua cabeça e o assunto estaria encerrado.

Nos dias seguintes, aquele encontro não saiu de seus pensamentos e a cada dia ele ia se lembrando de mais um evento específico que remontava aqueles lugares em volta de Friburgo. Até que se lembrou que o velho havia falado especificamente a palavra Murí...

Gelou, por que não havia feito logo a ligação?

A palavra Murí dava significado a tudo que aquele senhor havia falado. É impressionante até onde uma memória emocional profunda é capaz de nos remeter...

         Negou-se o quanto conseguiu a fechar aqueles elos que se encaixavam perfeitamente. Mas, não havia a menor chance de alguém, além dele próprio saber sobre aquele passado. Não que fosse segredo, era apenas algo muito pessoal e íntimo perdido no tempo e que ele nunca revelara a ninguém.

Aos 67 anos, não se tem dúvidas de quando se foi feliz.

 Ele não tinha, haviam sido muitas as ocasiões, temporadas longas, outras mais curtas, mas a felicidade sempre dava o ar e o enchia com suas graças.

Mas, há algum tempo havia perdido a paixão pela paixão. Preferia o amor pelo amor e, nessa mudança, optara por não aceitar prêmios de consolação e, também, não se prestar a sê-lo.  Por isso, sentia-se muito bem vivendo sozinho.

Os dias seguintes foram de lembranças, todas cada vez mais convergentes e direcionadas pelo que o estranho velho anunciou.

Laura voltava, diariamente, aos seus pensamentos, a partir do momento em que ele aventou a possibilidade de cumprir a estranha missão. Encontrá-la exatamente naquele lugar era algo absolutamente improvável.

Mas, o que ele deveria encontrar naquele lugar?

Já o identificou como a entrada da estrada de terra que leva ao local onde ele e Laura tiveram uma casa de campo, por alguns anos. Segundo o velho, ele deveria ir até lá e ficar esperando.

Esperando o quê?

Laura, com certeza, não seria. Ela estava casada e feliz. Há mais de vinte anos não tinha notícia alguma dela. E o que adiantaria encontrá-la, no meio da noite, naquele local ermo e deserto?

Que coisa mais louca... sem sentido...e absurda.

Ele se sentia mal toda vez que chegava nessa parte daquele pensamento cada vez mais obsessivo e ridículo. Na idade dele, muitos homens já começam a apresentar algum grau de debilidade senil.

Quem era aquele velho maluco que o deixou tão perturbado? Em verdade, se deu conta que o encontro no metrô ocorreu entre dois velhos, ou seja, a probabilidade de um dos dois estar gagá aumentava muito...

A verdade é que não precisaria de nada daquilo para aumentar a confusão mental em que viveu nos últimos anos. As consequências da pandemia da Covid-dezenove só não foram mais graves e profundas porque ele ainda estava vivo. Mas, não tinha certeza se isso havia sido um bem ou um mal. A vida não o atraía o suficiente para esperar ou desejar qualquer coisa dela.


Entendia perfeitamente como Nietzsche deve ter se sentido após anos mergulhando nas profundezas da alma humana.

Entretanto, discordava do alemão, o nada era plenamente suportável após o que ele já havia experimentado. Na verdade, havia minutos tão insuportáveis que, o simples fato de não haver dor física ou mental, já lhe gerava prazer. Não é agradável se dar conta de que o nada é o melhor estado em que podemos nos encontrar. E, o seu nada significava, também, sem ninguém.

Impressiona, como um ser humano é capaz de ir reduzindo suas necessidades de sobrevivência a ponto de precisar de muito pouco e de ninguém mais.

Mas, esse esvaziamento externo cria um correspondente vazio interno. As coisas vão perdendo o valor, a importância e o sentido. Pouco a pouco nada, nem ninguém, faz falta. As profundezas humanas são traiçoeiras e solitárias, quem as frequenta com assiduidade perde o contato com o mundo que vive na superfície.

Não tinha mais dúvida alguma de que iria subir a serra até o local onde aquele senhor lhe disse que deveria estar.

Finalmente, A NOITE tão esperada chegou.

Saiu do elevador direto na garagem, escura e úmida como sempre.

Entrou no carro, pareou o smartphone, clicou na playlist especial que havia preparado para essa viagem com as mesmas músicas que ouvia quando ele e Laura subiam a serra.

Começava ali sua grande viagem, com as mesmas músicas de 30 anos atrás;

Nova Friburgo tem um grande valor sentimental para ele. Além das melhores lembranças, sempre teve uma simpatia gratuita por aquela cidade e suas redondezas. Murí, Lumiar e São Pedro da Serra são cidadezinhas lindas, pacatas e românticas. O céu de inverno e das frias manhãs de sol esbranquiçado é de um azul forte, definitivo.


 A ele, fala à alma.


Tinha consciência de que se alguém soubesse o verdadeiro motivo da viagem naquele dia e naquela hora, duvidariam de sua sanidade. Ele próprio vinha duvidando seriamente desde que encontrou aquele senhor na saída da estação do metrô, há duas semanas. Às vezes, se perguntava se aquele encontro teria realmente acontecido.

Quando entrou na ponte Rio-Niterói, o fluxo dos carros já não sofria reflexo algum do trânsito das sextas-feiras e corre livre como nas viagens com Laura. O banco do carona é dela, naquele momento ele percebe que nunca deixou de ser.

Não consegue descrever o que está sentindo. Tantos anos passados e a sensação do carro correndo na ponte é improvavelmente agradável... como pôde viver os últimos anos se arrastando na vida...como é bom sentir alguma coisa, como é bom lembrar de Laura. Quase consegue conferir, de novo, algum sentido a palavra felicidade. Naquele momento pôde, ao menos, imaginar.

Como é gostoso subir a serra à noite, com esse céu completamente iluminado pela lua cheia. É mágico.

Para ele não importava mais o que haveria no fim daquela viagem, o trajeto em si já lhe tirara todo o torpor mórbido que acompanhava seus dias.

Mas, alguma coisa muito estranha ocorreu e ainda estava acontecendo até aquela noite. Sente que a cada curva suas energias e pensamentos se excitam progressivamente e de uma maneira inexplicável. Ele sente a adrenalina circulando por todo o corpo. Teve medo para onde aquela estrada o estaria levando. Para onde sua loucura o levaria naquela noite?

A depressão, a infelicidade profunda e a desesperança poderiam ter fabricado aquele velho na estação do metrô?

Poderiam.

Afinal, o que ele lhe disse não faria sentido para mais ninguém a não ser a ele mesmo. O que aumentava a chance de ser produto de sua própria mente. Ele era teimoso e já que chegou até ali, iria até o fim. E, se fosse loucura, pelo menos não haveria ninguém para testemunhar seu surto.

Quando ultrapassou o posto da polícia rodoviária, no alto da serra, ele estava quase todo encoberto pela forte neblina sempre presente naquele horário. Às duas horas da manhã o local está completamente deserto.

Pouco depois de uma grande curva à esquerda ele vislumbra a entrada de terra no mesmo sentido, pouco antes da entrada para Lumiar. É ali.

Ele para no largo onde a estrada de terra que leva até a Casa Azul começa.

Desliga o carro e sente seu coração acelerar ainda mais. Não tem mais idade para suportar aquele ritmo cardíaco por muito tempo. Salta do carro buscando um pouco mais de ar, as pernas estão formigando depois da viagem.

O local está completamente deserto, como era de se esperar, ali não há nada. Volta para o carro e deita o banco, tentando compassar a respiração e controlar aquelas descargas de adrenalina.

O suor é tão intenso que encharca sua camisa, suas extremidades estão frias e azuladas. Uma dor aguda percorre todo seu braço esquerdo, a dor no ombro esquerdo aumenta e paralisa seu braço.

Faz um esforço e consegue alcançar os dois comprimidos que restam na cartela. Toma-os e se deita no banco reclinado. Após um pico de dor aguda no ombro, que reflete intensamente no peito, sente um relaxamento profundo e apaga.

De repente, acorda assustado, ainda no mesmo local, e vê um vulto saindo da pequena estrada caminhando em sua direção.

É Laura sorrindo, de braços abertos para recebê-lo.

Edmir Saint-Clair

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A VOZ




De repente, ele começou a ouvir uma voz em seus sonhos.

Não eram vozes, no plural, era apenas uma voz específica. 

A lembrança era clara e diferente de tudo que já havia sonhado antes.

Acordou assustado, ainda não havia amanhecido. Sua respiração estava ofegante e demorou até saber onde estava; deitado em seu quarto, em sua cama.

 Não conseguiu mais dormir, estava muito impressionado com aquela voz que não pôde identificar. Não era conhecida, nem familiar, mas era aconchegante.

Foi até a cozinha ferver água para fazer o café. Quando voltou e abriu a torneira da pia para escovar os dentes, a voz já não lhe soava tão clara, tão pouco se lembrava do que lhe dissera.

Quando estava na varanda tomando seu café forte, puxou inutilmente pela memória, que parecia se distanciar como uma gaivota voando em direção ao horizonte.  O nascer do sol estava lindo e meia hora depois já não se lembrava de mais nada. A não ser que uma voz num sonho lhe causara uma impressão profunda que ele não conseguia tirar de seus pensamentos. Esse foi o primeiro dos muitos eventos que estavam por acontecer.

O desenrolar do dia e dos afazeres terminaram por apagar completamente a lembrança. Após o almoço, aquele evento havia fugido completamente de sua memória.

Duas semanas após, o mesmo evento se repetiu com uma fidelidade improvável. Sua angústia foi muito maior do que no despertar da primeira noite. A única diferença, e mais agoniante, é que nessa segunda vez conseguiu reter ainda menos detalhes do que no evento anterior. Apenas o suficiente para se aproximar da certeza de que fora absoluta e estranhamente igual.

Dessa vez, demorou mais tempo para retornar a sua rotina sem sentir aquele incomodo esquisito e inexplicável.

Não demorou para que o evento se repetisse. Apenas alguns dias e dessa vez o impressionou ainda mais, a ponto de atrapalhar uma série de acontecimentos profissionais de sua rotina. Não conseguia se concentrar em mais nada. Naquela noite, tomou dois gramas a mais de ansiolítico e mais um antialérgico para adormecer mais rápido. E foi dormir tentando lembrar-se de qualquer detalhe a mais sobre aquela voz. Sequer conseguia definir se era masculina ou feminina. Menos ainda sobre o que falava.

Na repetição seguinte, a coisa se complicou ainda mais. Quando acordou, após o mesmo sonho, manteve-se parado na mesma posição porque haviam lhe falado que isso facilitava a retenção da lembrança. Passados alguns minutos, não achou que estivesse fazendo algum efeito no seu caso. Até chegar ao banheiro e, enquanto colocava pasta de dentes na escova, resmungou:

— Se essa voz falasse quando estou acordado seria muito mais fácil entender... ô voz zinha burra!

Talvez, por já não estar levando aqueles sonhos tão a sério, acordara de bom humor naquele dia. Até ouvir nitidamente:

— Então está certo. Você se acha capaz de me ouvir conscientemente?  Espero que sim...

Rodrigo foi encontrado desacordado no banheiro pela diarista, que o acordou tão assustada quanto ele.

 Acontece que, daquela manhã em que desmaiara até o dia em que foi encontrado, havia se passado três dias. 

O evento se tornava mais surreal pelo fato de que a diarista havia ido trabalhar na casa de Rodrigo naqueles mesmos três dias e, segundo seu relato, ele não estava em casa. Ela limpara a casa inteira, incluindo o banheiro onde ele foi encontrado e, definitivamente, ele não se encontrava naquela casa durante aqueles dias.

Ela imaginou que ele estivera viajando pois, durante aqueles três dias nada na casa fora mexido. Como se ninguém, além da própria diarista, houvesse estado ali.

Na agência de propaganda onde trabalhava, ele também faltara aos mesmos três dias úteis.

Sua última lembrança era a imagem da expressão aterrorizada de seu próprio rosto no reflexo do espelho.

Ele nunca conseguiu se lembrar de nada do que aconteceu naqueles dias subsequentes.  A única coisa diferente que havia restado daquela experiência surreal eram as manchas de dois filetes de sangue coagulado, uma em cada ouvido. E Nada mais.

Após se alimentar, deitou e demorou algumas horas até se sentir recuperado o suficiente para levantar com um estranha e urgente determinação de ir buscar seu filho no colégio naquele dia. Ele nunca fazia isso, era divorciado e a guarda do filho era compartilhada. O menino já tinha 14 anos e ia e voltava sozinho de ônibus comum, do colégio para a casa da mãe, onde morava.

Ele sabia disso, e o próprio filho não gostava que o pai fosse buscá-lo na porta da escola. Mas, Rodrigo estava agindo como se houvesse sido programado, como um robô, para desempenhar aquela tarefa. Ele não estava pensando, apenas agindo.

Quando parou o carro no ponto de ônibus em frente à escola, viu o filho e mais dois amigos sentados no ponto de ônibus aguardando o coletivo. Abriu a porta do carona, chamou o filho e ofereceu carona aos amigos dele, que entraram no carro rapidamente. Assim que Rodrigo arrancou com seu carro, um caminhão desgovernado invadiu em alta velocidade e bateu violentamente contra o ponto de ônibus, exatamente no lugar onde os três garotos estavam sentados.


DIVINA PROVIDÊNCIA

Tudo que Neyla pensava naquele momento é o que falaria para o filho mais velho quando ele a visse com o olho e os lábios inchados.

Ela sabia o estado em que Maicon ficaria quando visse o que seu pai fizera com ela novamente. Ele crescera presenciando e sofrendo a mesma violência que a mãe desde que se entendia como gente, e não aguentava mais. Desde a última sessão de pancadas, ele prometera a mãe que daria um jeito naquele inferno.

Neyla lembrou-se de cada uma das palavras do filho, e um calafrio percorreu sua espinha de cima a baixo, como se alguém houvesse passado sobre seu túmulo, como diziam na comunidade. A caçulinha Raylane ainda estava com o gesso na perna como consequência da última vez em que Julião estivera na casa deles.

Ele vinha e ia embora quando bem entendia, sem dar satisfação sobre o tempo que passara ausente.

Eles sabiam que eram a segunda família dele, a filial como os vizinhos a chamavam.  Mas, agia como se tudo aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.  Quando voltava era sempre a mesma história. Gastava todo dinheiro que encontrava, dormia quase o tempo inteiro e quando estava acordado bebia até começar a implicar com quem estivesse ao seu alcance, mas só em casa. Na rua era um frouxo.

Era o segundo mês de Maicon como caixa de supermercado. O segundo salário que recebia. O primeiro terminara nas mãos do pai, que achou e confiscou a quantia revirando as coisas da mãe.

Neyla passou o dia inteiro sendo consumida pelo medo do que aconteceria quando o filho chegasse, visse Julião dormindo no quarto e os machucados em seu rosto.

Maicon e a mãe tinham uma relação de amor e confiança profundos. Desde que a irmãzinha nascera, Maicon nunca mais havia se envolvido com o submundo que os rodeava. Tinha voltado aos estudos e, desde então, ajudava a mãe a sustentar a casa. Pagava integralmente a creche em que Raylane passava os dias, enquanto a mãe trabalhava como diarista em casas particulares.

Quando a noite chegou, Neyla deu graças a Deus quando Julião acordou, tomou banho e saiu sem falar nada.

 Ela teria tempo para tentar acalmar o filho e evitar uma tragédia doméstica.

Quando Maicon chegou e viu o rosto da mãe fechou as mãos e socou a própria cabeça com força. Neyla o envolveu num abraço e ambos choraram juntos. Não falaram nada. Maicon tirou a mochila das costas, colocou-a no sofá rasgado, deu um beijo no rosto da mãe e saiu sem dar-lhe o dinheiro do salário. Dessa vez, aquele dinheiro teria outro destino.

Neyla tentou impedir que o filho saísse pela porta naquele estado que ela não conhecia, mas pressentia. Calado, com o olhar crispado e o corpo todo endurecido. Ela sabia o que ele iria fazer e implorou, sem resultado. Ela perdera totalmente qualquer contato com ele, que saiu andando como um corpo sem alma.

Maicon rodou por todo o complexo do alemão, procurando os conhecidos dos tempos em que fora aviãozinho e fogueteiro do tráfico. Precisava de uma arma, qualquer uma, a qualquer preço dentro do dinheiro do salário, que não era muito. E ficou rodando pelas vielas meio desorientado, mas decidido.

Em casa, tudo que Neyla podia fazer era rezar, pedir, implorar, prometer e buscar no fundo de sua fé alguma providência que os livrasse da tragédia anunciada.

Ela rezou com toda a fé que sempre tivera desde muito pequena, acendeu uma vela e ficou ajoelhada durante as 4 horas em que Maicon ficou fora. E, cada minuto dessas horas, ela rezou sentido o pavor de que fosse o último. Ela temia por todo a vida que Maicon perderia fugindo ou preso numa penitenciária, ...caso se tornasse o assassino do pai.

Nem a pancada na porta, anunciando a volta de Julião, bêbado, a tirou de sua concentração santa. O crápula se jogou na cama de casal, sem dizer palavra alguma, apenas emitindo um grunhido animalesco.

Pronto, pensou ela, o cenário da tragédia está montado. A primeira coisa que ela fez foi trancar a porta da casa com todas as voltas que a fechadura podia dar.

 O único jeito era tentar manter Maicon do lado de fora e tentar demovê-lo da ideia de matar o pai. Ela guardou as chaves nos seios e voltou a concentrar-se em suas orações e promessas.

Santa Rita de Cássia não podia abandoná-la agora.

Ficou ajoelhada até ouvir o estrondo da porta sendo arrombada por um chute de Maicon que entrou e foi direto para o quarto empunhando a arma já engatilhada.

Neyla o interceptou na porta e quando os dois olharam para a cama viram o improvável: Julião jazia morto, com a boca e os olhos arregalados, quase fora das órbitas, com a expressão aterrorizada como se sua última visão, houvesse lhe arrancado a vida..

Edmir Saint-Clair

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NO ÚLTIMO MOMENTO


Ele acordou com o barulho de vozes na porta de seu quarto. Morava com os pais, apesar da idade e de não precisar economicamente. Mas, ao contrário do que isso poderia parecer, nunca se dera bem com seu pai. Uma situação bastante estranha.

Olhou o celular para ver às horas, 05h00min da manhã. Há anos seus pais não acordavam a essa hora. Só faziam isso quando iam viajar ou fazer exames médicos. Era janeiro, pouco depois do ano novo, tanto uma coisa quanto a outra eram plenamente viáveis. Voltou a dormir.

Acordou, novamente, às 11 da manhã. Seu trabalho lhe permitia escolher seus horários. Havia um incomodo no ar, algo estranho.

Ainda tomando café, foi até o quarto dos pais. Nada indicava que tivessem viajado. Ao contrário, o desarrumado incomum do quarto não parecia normal.  Seria pouco provável que seu pai viajasse deixando portas de armário abertas e a  cama do casal desfeita. Estranho, mas poderiam estar atrasados e não tiveram opção a não ser deixar tudo do jeito que estava.

A noite chegou e alguma coisa continuava estranha. Pouco depois das 10h da noite, recebeu um telefonema da sobrinha avisando que o avô estava no hospital, internado no CTI. Ficaria lá por alguns dias e não tinha previsão de alta.

A sobrinha lhe contou que avô/pai tivera um acúmulo bastante severo de liquido na cavidade torácica, o que provocou uma violenta compressão no coração e pulmões, pressionando-lhes perigosamente.

− O Senhor deve estar se sentindo muito mal, uma sensação de sufocamento. Seu coração está tão pressionado que mal consegue bater. Vamos resolver isso, fique calmo. Disse a médica visivelmente preocupada. Exclamou a primeira médica que o atendeu.

O pai foi submetido aos cuidados emergenciais necessários, lhe drenaram o líquido descomprimindo os órgãos e aliviando o estado geral. Ficaria no CTI,  visitas somente alguns dias depois.

Os irmãos já haviam chegado de suas cidades atuais e estavam todos aguardando na ante-sala de entrada para os leitos no amplo salão do  centro de tratamento intensivo, onde ficavam os boxes e seus respectivos pacientes. Um Centro de Terapia Intensiva de grande porte. O médico veio conversar com a família, a mãe ficou lá dentro, ao lado do pai, no leito.

 Nesses dias em que o pai está no CTI, a mãe ficou no quarto normal do hospital que está reservado para ele. O evento havia sido gravíssimo e poderia tê-lo morto não fosse pela condição excepcional de saúde que sempre gozara. Se seu coração não fosse tão forte, não teria resistido. Sua saúde sempre fora invejável e motivo de orgulho próprio, mesmo aos 79 anos.

Agora, ali naquele CTI, parecia totalmente abatido. Ele nunca vira o pai daquele jeito, tão fraco e frágil. Pelo lado de fora da janela de vidro que dá acesso aos leitos, ele pode vê-lo sem que o pai pudesse vê-lo de volta. Sentiu uma compaixão intensa, profunda e surpreendente. Também sentiu pena.

Não trocavam palavra há 20 anos. Mas, não se entendiam desde muito antes, do início da adolescência. Na verdade, nunca se deram bem. Ele nem se lembra mais desde quando. Uma relação conflituosa e problemática, que fora piorando,  paulatinamente, conforme o tempo foi passando.

Uma relação pai e filho presume boas experiências juntos, é uma relação que marca e determina profundamente nossos destinos. Nesse caso, essa relação nunca aconteceu. Desde muito cedo, um muro foi se erguendo, tijolo a tijolo, até  parecer intransponível. Uma sucessão de erros mútuos que determinaram o rumo de uma relação que, só começou a parar de piorar, a partir do momento em que ele deixou de dirigir a palavra e de sequer fazer menção de ter ouvido quando o pai se dirigia a ele.

Com o tempo, o pai também não se dirigia mais a ele. Sua mãe era a porta-voz dos dois. Aquilo fora necessário para interromper aquela tensão cada vez mais insuportável. Com a aquiescência da mãe, a partir desse silêncio, a princípio unilateral, hoje reinante, a tensão se dissipara.

 O silêncio e a ausência total de interação entre os dois trouxe uma paz que jamais haviam experimentado na convivência.

Não havia discórdia, não havia cobranças. Não havia nada além das presenças físicas quando transitavam em silêncio pelo longo corredor, eventualmente, na sala ou na cozinha. Silenciosos e ignorando a presença do outro. Há tempos não se respeitavam tanto. Nunca a relação dos dois fora tão pacífica e tranqüila.

A sensação de paz o levou a evitar cada vez mais cruzar com o pai. O amplo apartamento facilitava a missão.  Só saía do quarto pela manhã para o trabalho e voltava pelas dez da noite entrando direto para o quarto. A partir desse horário, era ainda mais tranquilo, o pai era desses que dormem e acordam cedo. Ele, exatamente o oposto. Os horários se encaixavam perfeitamente. Não era raro passarem dias sem que se vissem.

O mais estranho. É que ele voltara a morar na casa dos pais após a última separação, a princípio por algum tempo apenas, já aos quarenta anos. Acontece que o tempo foi passando e prolongou-se por 10 anos até desaguar naquele momento.

Ele sempre se sentira com motivos de sobra para não falar com o pai há tanto tempo. Sua mãe concordava com a atitude, por ela, ele já deveria ter parado de falar até antes. Era estranho que não tivesse saído da casa há tempos. Tinha condições financeiras para isso, não havia porque sustentar aquela situação esdrúxula. 

O fato é que, desde aquele dia até hoje, havia se passado 20 anos.  Imediatamente, ele deteve aquele raciocínio e deixou-se levar apenas pela intuição e pela emoção. Estava confuso. A proximidade da morte de uma pessoa que sempre lhe parecera imortal era muito complicada. Ele não sabia como reagir. Não pensou em perdão ou qualquer coisa parecida. Tinha muitos problemas com essa palavra. Não pensou. Fez.

Em alguns dias, o pai havia ido para um quarto espaçoso e confortável de um bom hospital particular e todos os filhos, inclusive os que moravam fora do Rio, estavam na casa da família onde todos cresceram juntos. O clima era de muita apreensão, mas com muito carinho entre os irmãos que se apoiavam mutuamente.  

Pela manhã, chegou o resultado da biópsia: câncer no pulmão, estágio III de IV.

Quando se viu sozinho, pela primeira vez, desde que soube do resultado, surpreendeu-se com a própria serenidade. Apesar de chocado, impactado pelo inesperado, estava estranhamente sereno. Muito, pelo imponderável da situação. O pai sempre fora forte levava uma vida confortável, sem preocupações e sua única atividade diária obrigatória era jogar vôlei com os amigos na praia. Fazia check-ups periódicos com uma regularidade elogiável.

Ele não tinha dúvidas de que os pais se divertiam quando saíam para fazer exames. Estavam sempre repetindo o programa.

O pai tinha o mesmo bronzeado em qualquer época do ano. Aposentado e com uma vida tranqüila e bem amparada, fruto de seu trabalho, se tornara uma pessoa que mudara o comportamento nos últimos anos. Tornara-se um homem mais sociável, bem humorado e com um círculo de amizades que lhe proporcionava uma vida social com atividades freqüentes e tão intensa quando ele desejasse, já que dos convites que recebia não aceitava grande parte. 

Uma pessoa querida pelos amigos, que promovia churrascos e comemorações. O carinho cada vez mais explícito, dos amigos, durante todo tempo em que a doença evoluía foi comovente. As manifestações e presenças dos amigos e vizinhos só não foram mais freqüentes pela absoluta incapacidade do pai em lidar com os próprios sentimentos. 

Esses fatos, que ele passou a testemunhar, mostravam que o pai era uma pessoa que conquistara a amizade, o carinho e o respeito de muita gente ao seu redor.

Então porque o pai não fora assim com ele?

Estava longe de ser um bom pai. Toda a vida lhe veio à cabeça. Decididamente, sentimento de culpa ele não tinha nenhum. Tinha motivos. Sérios. Decidiu não tentar mais entender os motivos que o estavam levando a agir daquela forma inesperada e surpreendente para ele mesmo. Um carinho que ele não sabia de onde estava brotando. Algo diferente e desconhecido assumira o controle de suas ações.

Passou a se interessar, acompanhar, ajudar e incentivar o pai diariamente, dedicando um carinho que ele não acreditava que ainda pudesse existir naquela relação. O pai lhe devolvia na mesma moeda, do seu jeito. Evitando a emoção. Mas, mostrando amor e carinho como nunca demonstrara.

E foi assim pelos 10 meses seguintes, até aquela noite no quarto do hospital, no qual ele havia sido internado pela última vez, depois de dezenas de indas e vindas.

Estavam todos os filhos e a mãe. Como faziam todos os dias,  desde essa última internação. Antes dos filhos irem embora à noite, se reuniam em volta da cama do pai numa ordem que aconteceu espontaneamente e que se repetia por esses meses: a mãe de mãos dadas com a mão direita do pai deitado, um irmão com a mão postada sobre um tornozelo e o outro irmão no outro. A irmã fechava o círculo segurando a mão esquerda, e dessa forma o envolviam num círculo para rezar o pai nosso que ele gostava.

Nessa noite, a doença avançava para seu desfecho e o pai já não falava. Ele estava ao lado perto da mão esquerda. O pai segurou-lhe a mão, olhou para ele e a apertou. Ele entendeu que o pai queria rezar e chamou os outros. Chamou também a irmã para que ocupasse seu lugar na mão esquerda. 

Nesse momento, o pai levantou levemente o braço e segurou-lhe a mão, apertando-a tão forte quanto pode, deixando claro que queria que ele ficasse ali, de mãos dadas, naquela que seria a sua última reza.

Rezaram juntos, e durante todo aquele intenso momento o pai não afrouxou aquele aperto na mão nem por um segundo.

Ele entendeu com toda a clareza e profundidade aquele último gesto e sentiu-se em paz quando, oito horas depois, presenciou o pai expirar pela última vez.

Ele finalmente compreendeu porque não se mudara daquela casa e, também, porque seu pai nunca o mandara embora: apesar de não terem nenhuma interação, estarem sob o mesmo teto foi a única maneira, intuitiva, que pai e filho encontraram para não se perderem para sempre.

O choro foi triste, mas foi leve.

Houve beleza no final daquela história.

Finalmente, pai e filho estavam em paz.

- Edmir Saint-Clair

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