COACH LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro. Um profissional técnico, especializado em criação, um professor de escrita e um parceiro, ao mesmo tempo. Experimente, é terapêutico e libertador. Perpetue as histórias que só você tem para contar.
Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens

CONTO CURTO


Ele estava bem desanimado, apesar de ter a vida inteira para ficar desanimado. Depois de mais um dia procurando trabalho, chegou em casa cansado e com fome.

Ligou a televisão e foi esquentar café para tomar com o pão que, se ainda não era dormido, já estava bem descansado...fora comprado pela manhã. Uma reportagem chamou sua atenção para o telejornal. Na saída do turno de uma empresa o empregado respondia ao repórter:

- A situação está difícil, nossos salários estão muito defasados. Estamos tendo que tirar leite de pedra.

Enquanto acabava de requentar o café e o pão, resmungou para a televisão:

- E eu, que ainda nem encontrei a pedra?? 

MISTER

Sábado era o dia mais animado da nossa semana. Eu e meu irmão acordávamos ainda mais cedo que nos outros dias. Eu tinha dez anos e ele oito.

 Chegávamos ao clube logo depois que abria e em menos de quinze minutos todos os amigos também já tinham chegado. Éramos sócios e amigos de todos os funcionários da AABB da Lagoa, que nos conheciam pelo nome. Nosso dia inteiro era para jogar futebol, tênis, nadar na piscina e, em algum momento, almoçar juntos, mais de 10 moleques cheios de energia e ideias de jerico, fazendo muita bagunça no restaurante do clube. Sem pais nem responsáveis para olhar nossas irresponsabilidades. Resumindo, liberdade para fazer o que quiséssemos o dia inteiro até as 10 da noite, quando os pais começavam a chegar para nos buscar.

 Voltávamos sempre dormindo no banco de trás do carro. Exaustos. Lembro que sempre acordava sendo carregado por meu pai da garagem do prédio até a minha cama.

Com certeza, nessas noites, o pensamento que me vinha a cabeça antes de adormecer era o desejo de que o próximo sábado chegasse rápido.

 Domingo sempre acordava mais tarde e mais preguiçoso. Esse acordou diferente. Meu irmão me balançou avisando que nossos pais queriam conversar com a gente. Na mesa do café, meu pai nos avisou que assim que acabassem as aulas do semestre nos mudaríamos para Uruguaiana, uma cidade que fica no sul do Rio Grande do Sul.

 Foi a primeira vez na vida que senti o tempo passar mais rápido. Eu não queria que o dia de ir embora chegasse.

 Num dos primeiros dias de junho minha mãe nos acordou bem cedo, nos arrumamos, tomamos café e descemos para a garagem. Meu pai já estava dentro do carro nos esperando. Foi a primeira vez que me lembro de reparar mais atentamente o lugar onde morava. Exatamente quando estava indo embora. O Leblon, cheio de árvores, e a Lagoa ao amanhecer me eram familiares, mas dali para a frente tudo seria novidade. Meu irmão começou a chorar, ele não sabia porquê. Lembrei dos sábados, do colégio e da praia, e comecei a chorar também.

 − Isso é saudade... revelou-nos minha mãe.

 Não gostei de sentir isso.

 A viagem de carro foi de descobertas e encantamentos. Passamos por três estados que não conhecíamos, até chegar ao Rio Grande do Sul, sem pressa. Meus pais eram bem jovens e sabiam aproveitar uma viagem. Tudo era novo. Os hotéis onde pernoitávamos, os estados, as cidades, as florestas de pinheiros, os campos enormes e o frio!

 Meu pai calculou a viagem de forma que na última perna a distância nos permitisse chegar no meio do dia a Uruguaiana.

  Meu pai calculava muito bem. Minha primeira viagem foi por 2.000 km de novidades e foi quando percebi que o mundo era muito maior e mais bonito do que eu imaginava. E olha que eu já era bom imaginador. Sentia-me o tempo todo fazendo parte de uma aventura. Minha mãe era excelente explicadora do mundo e, também, do que eu e meu irmão sentíamos. Ela sempre tinha um nome bonito para o que a gente estava sentindo. Durante a viagem minha mãe nos contou um monte de coisas que sentíamos, mas não sabíamos o nome. Ela também previa o futuro e nos disse que ainda tinham muitas coisas legais pela frente.

  Depois de almoçarmos, já no centro de Uruguaiana, fomos para a Vila Militar, onde ficava nossa nova casa. Nunca havíamos morado em casa, só em apartamento.

 Meu pai parou na entrada da garagem. Quando ele saltou para abrir o portão eu e meu irmão pulamos do carro, excitados com tanta novidade. Fiquei olhando, ainda por fora do muro, àquela casa de dois andares, garagem, quintal grande e duas árvores frondosas e cheias de galhos bons para subir. Antes que entrássemos pelo portão, um cão adulto, tipo Colli, só que maior e mais forte, começou a brincar e entrou junto conosco pela primeira vez na casa. Meus pais nem repararam, ocupados em retirar as malas. Eu e meu irmão fomos para o quintal explorar e brincar com aquele cão dócil, alegre, grande e bonito.

 A vila militar ocupava um quarteirão inteiro. As casas rodeavam esse quarteirão e tinham duas entradas, a da frente que dava para a rua e a de trás, que dava direto para a parte interna do quarteirão, onde havia uma enorme área gramada comum a todas as casas. Esse centro era um grande espaço aberto com campo de vôlei, futsal, tênis e o melhor, a maior parte era de grama e árvores. Daquelas que dão para subir até o alto, cheias de galhos e frondosas. Eu, meu irmão e o cão andamos por todos os cantos daquele enorme parque particular, descobrindo um mundo novo, totalmente diferente do Leblon. Até o jeito de falar das pessoas era outro. Ficamos imaginando um monte de coisas para fazer no Campinho. Era assim que os moradores chamavam aquele parque particular.

 Começou a anoitecer e a esfriar bastante e voltamos para casa, empolgados com aquele espaço enorme que seria nosso quintal dali para a frente. Nunca tínhamos podido ir tão longe sozinhos. E o cão nos seguindo o tempo todo, já nos sentíamos os donos dele. Brincamos de mudar de direção enquanto andávamos e o cão mudava também. Quando entramos pelo portão de casa, o cão entrou conosco, como se aquilo fosse absolutamente rotineiro. Entramos pela cozinha e fomos até a sala, onde meu pai colocava lenha na lareira.

A casa tinha lareira!

E meu pai sabia muito de lareira, apesar de nunca ter tido uma. Meu pai sabia muito de tudo. Fiquei hipnotizado pelo fogo. Meu pai me olhou sorrindo, ele sabia o que eu estava sentindo. Os pais sempre sabem. E olhou também para o cão ao meu lado. Fez um aceno com a cabeça na direção do cão e respondi que não sabia de quem era. Ele chamou o cão que obedeceu e se derreteu com os afagos dele. Meu pai também gostava de cães. Combinamos que o cão dormiria fora da casa, dentro do campinho. Ele achava que o cão deveria ser de alguma outra família dali e durante a noite voltaria para os seus donos. Eu e meu irmão fomos juntos com ele deixar o cão do lado de fora do portão.

 Naquela noite, quando saí do banho, descobri porque a casa tinha lareira. Tudo parecia como num filme. Até o meio da noite... quando todos acordaram morrendo de frio, os quartos ficavam no segundo andar e a lareira era na sala de baixo. Fomos todos dormir na sala, em frente à lareira e abraçados embaixo dos cobertores. Minha mãe fez meu pai prometer que compraria aquecedores elétricos para todos os cômodos na manhã seguinte. Adorei o frio. Ele nos fez dormir abraçados, todos juntos em frente à lareira.

 A manhã seguinte nos ensinou que mais frio que uma noite fria de inverno no sul do Rio Grande do Sul é a manhã que vem depois dessa noite. Acordei já tremendo, embaixo de uns três cobertores e abraçado a minha mãe, enquanto meu pai tentava acender novamente a lareira. Ele tinha calculado mal e o fogo apagara precocemente. Quase congelamos. Mas meu pai sabia reacender lareiras e em pouco tempo voltamos a dormir. Quando acordamos de novo, meu pai já havia saído para comprar aquecedores.

 Nunca tinha imaginado que era possível fazer tanto frio. Tínhamos acabado de chegar do Rio de Janeiro e isso tudo era completamente novo.

 

Antes de tomarmos café, eu e meu irmão fomos até o portão que dava para o campinho e lá estava o cão deitado bem em frente. Abri o portão e ele saltou para dentro do quintal e começou a fazer muita festa. Nunca havíamos tido um cão, muito menos daquele tamanho, nem caberia no apartamento onde morávamos no Rio. Tomamos café e fomos direto para o campinho, o cão veio junto. Não saía do nosso lado para nada. Estávamos apaixonados por ele e ele por nós. Quando voltamos para o almoço, meu pai já havia posicionado um aquecedor em cada cômodo e nos perguntou sobre o cão. Contamos a estória. Ele explicou que o cão deveria pertencer a alguma família da vila ou das redondezas. Novamente quando anoiteceu fomos deixá-lo do lado de fora da casa. Só que dessa vez do lado que dava para a rua e não para o campinho. Fora desse lado que ele aparecera. O cão saiu e sentou-se na porta do lado de fora.

 Essa noite dormimos todos bem aquecidos, cada um na sua cama. Como bônus pela noite anterior, eu e meu irmãos fomos dispensados do banho. Antes de dormir ficamos conversando sobre o cão. Estávamos encantados e começamos a imaginar que ele poderia ser nosso. E se ele não tivesse dono?

 Quando adormecemos o cão já se chamava Mister.

 No dia seguinte, Mister continuava no portão e entrou assim que o abrimos. Meu pai estava tomando café e nos contou que um segurança noturno da vila lhe dissera que o Mister tinha dormido a noite inteira como um sentinela no portão. Isso aumentou ainda mais nossa esperança de que ele fosse mesmo nosso. Quando meu pai nos contou que o vigia também dissera que trabalhava ali há vários anos e que nunca havia visto aquele cão, tive certeza de que ele seria nosso. Da vila militar ou das vizinhanças o vigia garantiu que o cão não era.

 Meu pai nos contou isso enquanto brincava com o Mister. Meu pai adorava cães e tinha uma sensibilidade especial no trato com eles que sempre o adoravam também. Meu pai sabia muito de cães.

 − Mister é?

... gostei, disse ele.

 E assim o Mister foi oficialmente batizado.

 Nos fins de semana seguintes fomos os quatro, eu, meu pai, meu irmão e o Mister, passear pelas ruas próximas. Meu pai nos explicara que se ele fosse de alguma daquelas casas, ou alguém o reconheceria ou ele reconheceria alguém ou alguma das casas.

 Ele era um cão bem tratado, grande, forte e adulto. Um belo cão. Um ovelheiro, como eles chamam ali na fronteira gaúcha. Um pastor de ovelhas. Ele tinha os caninos marcados como se tivessem sido serrados na ponta ou algo parecido. Descobrimos que isso acontecia para que não machucassem as ovelhas mais novas, informação dada pelas pessoas com quem meu pai conversara em busca de informação sobre o cão e seus possíveis donos.

 Nosso encantamento pelo Mister só aumentava. Ele tinha que ser o nosso cão. Um pastor de ovelhas de verdade. Estava na cara que meu pai também queria.

 Ele aceitou depois que eu e meu irmão prometemos que não íamos ficar frustrados se o dono aparecesse de repente. Prometemos sem hesitar um segundo, apesar de nenhum dos dois ter a menor ideia do que significava “frustrados”. Não importava. Depois perguntaríamos para minha mãe.

 A partir desse dia, foi oficializada a entrada na família daquele grande companheiro que marcaria para sempre nossas vidas.

 - Um belo Cusco!

Segundo todos que o conheceram.

 Descobrimos que lá nos pampas eles chamam cachorro de Cuzco.  E Chamam batida de carros de “peixada”.  Nunca consegui entender o porquê...

 Garoto é guri ou piá.

Em menos de um mês eu já estava falando Baaah! Tchêeeee! E chamando os guris da vila para brincar como se fossem velhos amigos.

Crianças fazem amizades com a mesma facilidade com que distribuem sorrisos.

Foi lá que comecei a me aproximar das gurias e a me sentir atraído por elas.

  Em Uruguaiana, não tinha televisão naquela época. No Rio, Nacional Kid era uma das melhores coisas da minha semana, passava todas as sextas-feiras quando eu voltava do colégio. Mas, não me lembro de ter sentido falta um dia sequer da televisão.

 Lá, também aprendi a gostar de chimarrão. Tinha dez anos e, geralmente, criança acha o gosto muito amargo, mas eu gostava. Tinha minha cuia e minha bomba, que é como eles chamam aquela espécie de canudo de metal que eles usam para beber, e gostava de ficar no quintal olhando o Mister e bebendo chimarrão. Nas manhãs frias, ficava na varanda do quarto olhando a paisagem branquinha coberta com a fina camada de gelo da noite geada. Era tudo muito diferente, uma grande aventura, como num filme. Para um menino do Rio de Janeiro, acostumado com o modo de vida de uma cidade cosmopolita, era um mundo totalmente novo. Entre o Leblon e Uruguaiana, eu descobri que o mundo era muito maior do que eu jamais imaginara.

 Meu pai servia no Oitavo Regimento de Cavalaria, o que significava que poderíamos montar a cavalo com a regularidade que desejássemos.

Minha estreia na equitação gaúcha não foi das melhores. A primeira vez que eu e meu irmão fomos, com o grupo de filhos de oficiais da vila, para montar no quartel, foi inesquecível e hilário.

 O sargento que dava treinamento para a gurizada deu, para mim e meu irmão, os dois cavalos mais mansos do quartel, por precaução, já que era nossa primeira vez em terras da fronteira. Nem preciso dizer que os guris de lá pareciam que tinham nascido em cima de um cavalo. Mas, eu e meu irmão, apesar de ainda tímidos, estávamos acompanhando direitinho. Até que meu cavalo branco, chamado Kibon, começou a pular, empinar e a corcovear, do nada. Estávamos no campo de Pólo do quartel, um espaço enorme e gramado, maior do que um campo de futebol. Consegui me manter em cima do cavalo apesar dos solavancos, e logo ele parou com a intervenção do sargento. Eu não havia caído, mas com o corcovear eu saí da cela e fui parar no pescoço do cavalo. Quando ele parou, calmamente abaixou o pescoço e eu desci escorregando de cara no chão. Sorte que era grama. Saí fisicamente ileso e moralmente arrasado. Pelo menos, consegui conquistar a gargalhada e a amizade de todos ali. Passei a ser conhecido como o Carioca que caiu do Kibon, o cavalo mais manso do Oitavo Regimento de Cavalaria. O Mister estava lá e foi o primeiro a me socorrer no chão com suas lambidas.

 O Mister já estava nos esperando na porta de nossa casa desde o momento em que chegamos do Rio e ficaria conosco até o dia em que fomos embora, chorando.

 Quando partimos, ele ficou com nosso vizinho de frente, meu amigo, que o amava e era amado por ele.

 Pensamos muito antes de decidir deixá-lo em Uruguaiana. Mas, confiná-lo ao espaço de um apartamento tendo ao redor a gigantesca e calorenta cidade do Rio de Janeiro, seria muito egoísmo de nossa parte, seria quase uma maldade. Ele era um cão acostumado a espaços amplos como o das estâncias gaúchas, era um cão ovelheiro.

 O Mister nos trouxe, naquele ano inesquecível, muito mais amor e amizade do que qualquer história pode contar.

 Nunca soubemos de onde ele surgiu no mesmo dia em que cheguei, na porta da minha casa, para entrar para sempre na minha vida e no meu coração de menino.

- Edmir Saint-Clair

Esta é a casa da história nos dias atuais, em Uruguaiana, RS.



Gostou?  👇  Compartilhe com seus amigos

O MOMENTO EM QUE A FELICIDADE ACONTECE

 

Uma relação leve e espontânea parecia estar surgindo e  Clara não queria acelerar aquela evolução que acontecia tão naturalmente.  

Era gostoso e divertido toda vez que se encontravam, o que estava se tornando  mais frequente.

Ela adora a liberdade que a solteirice lhe proporciona.

 

Já fizera a felicidade dos pais, da família, das amigas e a sua própria, realizando o casamento que todos esperavam, inclusive ela mesma.

Agora, sentia-se livre.

 A separação foi sem sobressaltos e bem menos tristeza do que ela imaginava.

De lá pra cá, pequenos namoros sazonais a satisfaziam plenamente, acordar ao lado de alguém tornara-se tão raro quanto indesejado, fazendo com que ela percebesse que novos sentimentos estavam nascendo naquele momento, depois de um delicioso café da manhã servido na cama.

 Clara deu-se conta que só conseguia sorver plenamente aquele momento, com a leveza da alma que acorda já descobrindo-se desperta, exatamente pela raridade da ocasião, por uma conjunção do improvável com o aleatório;

... um daqueles momentos que redimem a vida e justificam o caos.

Quando nada se espera e tudo acontece.

O momento onde o nosso desejo se encontra consigo e se realiza com a cumplicidade de alguém especial, numa comunhão harmônica... natural e espontânea.

  É preciso aprender a se deixar levar pela alegria de experimentar a vida dando certo e acertando em cheio.

 É preciso saber se sentir feliz, no momento em que a felicidade está acontecendo.

 E gravar, o mais profundamente possível, cada um desses raros momentos, no infinito da nossa alma eterna .

Edmir Saint-Clair


 Gostou?  👇  Compartilhe com seus amigos

FILHOS DE NARCISISTAS - O CACHORRO MORTO

        Enquanto cresce, o filho de um narcisista não sabe que seus pais são narcisistas, os ama e depende do que eles lhe dizem sobre ele mesmo para construir o mundo em que vai acreditar e viver.

Todos os seres humanos sofrem.

Mas, os filhos de narcisistas sofrem mais, porque sofrem sozinhos e enganados por quem mais deveria amá-los. São aqueles enganados pelos próprios pais e, por toda a sociedade na qual vivem, que lhe dizem, todos os dias, que os pais são sagrados e querem sempre o melhor para seus filhos.

E quando alguém percebe que nada disso foi verdade em sua vida, quando um ser humano percebe que foi manipulado por quem mais amava e confiava, se Vê numa queda violenta num nada... sem fundo.

                                 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Lembro bem que estávamos andando pela avenida para que você espairecêsse e pudesse desabafar comigo, como fizera a vida inteira, segura de que seria acolhida como sempre. Falar mal do meu pai para mim era seguro para você, eu nunca falaria nada sobre o assunto. Você tinha certeza disso. Ao final de sua narrativa ofensiva, respondi de pronto como o cão de Pavlov treinado desde que nasceu, com um complemento que reforçava seu relato, dando-lhe ainda mais impacto e dramaticidade que não cabiam naquela crítica superficial:

- Você diz que ele age como “quem gosta de chutar cachorro morto”, disse eu como o cão treinado reagindo à sineta. No que ela respondeu:

- Frase interessante, nunca tinha ouvido. 

Lembro que a frase a impactou.

Anos depois, a vida me mostrou com todas as suas tintas mais carregadas quem realmente gostava de chutar cachorro morto. E, não se tratava de má interpretação ou qualquer outro equívoco de julgamento, que uma dúzia de eventos ou várias dezenas de anos, podem provocar.

Quando olhei para trás, para a vida inteira, vi que os eventos eram milhares e todos acontecidos na minha frente.

Como eu nunca percebi? Como pode alguém ser tão tapado em todos os seus próprios sentidos? Como é possível alguém ter sido treinado para jamais acreditar sequer no que presencia?

Infelizmente, só percebi após toda uma vida, e da pior maneira possível, quem realmente gostava de chutar cachorro morto: era minha mãe.

E o cachorro morto, era eu.

 Edmir Saint-Clair

OS LACERDINHAS (O INCÊNDIO DA PRAIA DO PINTO)

Versão em podcast está sendo produzida.

Nunca mais vi um Lacerdinha.

Nem ouvi falar. Pensando bem, faz muitos anos, décadas, que não tenho notícia. O Lacerdinha é um inseto do tamanho de um mosquito pernilongo, só que preto, mais encorpado e sem as pernas longas. E o Lacerdinha não transmitia doenças.

Não era um mosquito, era um inseto pretinho que infestava o Leblon, principalmente as transversais, numa certa época do ano. Minhas lembranças deles estão ligadas à época em que morava na Rua José Linhares.

No final da tarde, eram cigarras cantando e Lacerdinhas caindo das árvores. Às vezes nos olhos. Ardia e coçava muito! Deixava os olhos inchados e mãe preocupada.

Eles eram atraídos por roupa clara, principalmente as amarelas. Por vezes, atingia os olhos e provocavam irritação e ardência intensas. 

Esses minúsculos insetos - (mediam poucos milímetros) - eram chamados de Lacerdinha, em referência a um antigo político carioca, Carlos Lacerda, governador no tempo do estado da Guanabara.

Descobrimos que eles ficavam nas folhas mais novas das árvores, que ainda estavam enroladas. A gente as desenrolava e surgiam um monte de Lacerdinhas em seu interior.

Para mim, os Lacerdinhas despertam uma lembrança marcante. Uma história que me provoca vergonha até hoje. Eu tinha uns 5/6 anos e era acostumado a brincar na rua. Havia muitas crianças, tanto no meu prédio quanto nos vizinhos.

 Naquele tempo no Leblon, a maioria das casas tinha uma empregada que morava na favela Praia do Pinto ou na Cruzada São Sebastião. Quando, por algum motivo, a empregada da minha mãe levava o filho para o trabalho, no caso a minha casa, ele se tornava um amigo a mais, que passaria o dia brincando comigo, meu irmão e nossos outros amigos.

Seu apelido era Bilico, o nome era Bernardo, o dia era sábado, 10 de maio de 1969, véspera do Dia das Mães. Dona Celestina e minha mãe estariam ocupadas preparando o almoço comemorativo do dia seguinte.

Bilico era muito gente boa, mais novo que eu, um ano. e mais velho que meu irmão apenas alguns meses. Era negro com os dentes grandes e brancos. Era tímido, mas engraçado, falava de uma maneira diferente que eu achava legal. Quando Bilico passava o dia lá em casa fazia tudo junto comigo e meu irmão; assumia a nossa rotina, almoçava, tomava banho, brincava, lanchava, descia para brincar conosco e era sempre divertido.

Nesse dia, Bilico chegou cedo tomou café conosco e descemos pra rua pra brincar. Sábado não tinha aula e o dia era todo nosso.

Era época de Lacerdinha.

Dentre os garotos que brincavam na rua, tinha um que era especialmente assustador para mim e meu irmão. O Arlindo era mais velho, mas não andava com os garotos da idade dele. Andava conosco, dois a três anos a menos. Nessa idade, isso faz uma grande diferença.  Gostava de nos intimidar e bater. Ninguém ficava com pena quando o pai dele aparecia chamando-o, sempre gritando e batendo nele. Nós Também tínhamos medo do pai dele.

Nessa tarde, estávamos catando Lacerdinhas nas árvores. Abríamos as folhas e ficávamos observando os Lacerdinhas se mexendo lá dentro.

De repente, o Arlindo pega uns Lacerdinhas no dedo e enfia com violência no olho do Bilico, que observava, curioso, bem de pertinho.

−  Tá com fome? Toma neguinho!

Arlindo falou aquilo com mais raiva do que lhe era peculiar, todos tomamos um susto. E ele nem conhecia o Bilico...

Bilico começa a coçar o olho e a chorar com a ardência.

Todos os meninos começaram a rir. Menos eu, meu irmão e o Bilico, que saiu andando e chorando na direção da portaria do nosso prédio.

Lembro que foi um sentimento estranho e desconfortável que eu nunca havia experimentado antes (anos mais tarde eu saberia que o nome era constrangimento), e que nunca me saiu da memória. Eu senti vergonha de alguma coisa que não sabia o que era.

Bilico não subiu para nossa casa, ficou num canto da portaria chorando baixinho. Falou que se chegasse lá em cima chorando e com o olho inchado sua mãe iria brigar com ele. Não queria que ele arrumasse confusão com os "filhos das madames".

Depois de algum tempo, ele parou de chorar e subimos. Pela escada. Naquela época, os empregados e "pessoas de cor" só podiam subir pelo elevador de serviço. Bilico só subia pela escada.  Quando chegamos em casa, a primeira coisa que Dona Celestina viu foi o olho do filho inchado e muito vermelho. Não falou nada, mas fechou a cara. Chamou o Bilico para a cozinha e de lá só o vimos quando eles foram embora, bem mais tarde. Lembro bem da cara de choro dele se despedindo da gente.

Aquele sábado me marcou para sempre.

Naquela mesma noite, um misterioso e devastador incêndio irrompeu e tomou conta da favela vizinha. Queimou por toda a madrugada e por muitas horas seguintes, consumindo tudo e deixando centenas e centenas de família sem teto e sem nada. Era dia 11 de maio de 1969, Dia das Mães.

A casa da Dona Celestina e do Bilico pegou fogo e virou cinzas, junto com toda a favela da Praia do Pinto.

         Não sobrou nenhum barraco de pé.

Dona Celestina nunca mais voltou, e o Bilico nunca mais veio passar o dia conosco.

Tenho muitas saudades deles e me lembro dos dois com muito carinho. Até hoje...

-  Edmir Saint-Clair


A favela banida


A história sobre o incêndio da favela Praia do Pinto.

EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR


***********************************



Gostou?  👇  Compartilhe com seus amigos

A GREVE DAS PALAVRAS

 As palavras estão revoltadas.

Não suportam mais serem vilipendiadas,

mal interpretadas e caluniadas. 

Na reunião de hoje do DIretório CIrcular Ordinário NAcional do RIO, entidade conhecida como DI.CI.O.NA.RIO, esse assunto parece dominar as conversas e debates preliminares. O plenário está fervilhando. Fala-se em greve geral, que envolveria todas as classes de palavras. Um representante dos substantivos pede a palavra e sobe à tribuna:

- Amigos e amigas, estamos perdendo, cada vez mais, nossa credibilidade. Essa casa parece não existir mais. As leis do idioma são sistematicamente ignoradas. Corremos o risco de não fazer mais sentido. Como dizia o grande Ariano Suassuna, quando um jornal adjetiva o Chimbinha, da banda Calypso, como guitarrista genial, que palavra usar para definir Beethoven?

Foi aplaudido de pé pelo plenário.

A Democracia pediu a palavra:

- E eu??! Me usam sem a menor cerimônia e sem nenhum respeito à minha história. Falam em meu nome, mas no fundo estão só querendo enganar o povo. Estou cansada de ser usada por quem só quer exercer o poder em nome de si mesmo. Pelo prazer doentio de ter poder sobre outras pessoas.

A gratidão levantou-se e pediu um aparte:

- E eu??! Virei uma ordinária...na boca do povo. É gratidão por tudo e a toda hora. Antes, eu era chamada somente para ocasiões muito especiais. Por uma graça alcançada, por um grande favor prestado ou uma atitude nobre realizada. Hoje, valho muito pouco. Todos falam por  mim, sem ter a menor idéia de quem realmente sou. Não tem mais respeito algum. Sem querer ofender meus grandes amigos dessa classe tão efusiva, virei praticamente uma interjeição. Roubaram meu lugar de fala, perdi minha verdadeira identidade. Minhas origens estão ligadas a oração, ao contato com o divino e com sentimentos profundos de agradecimento. Hoje, virei arroz de festa, fim de frase. Sinceramente, perdi completamente o sentido de existir...

Os companheiros se aproximaram para consolá-la, estava aos prantos, muito emocionada com o próprio discurso.

Dali pra frente, discussões cada vez mais acaloradas davam a dimensão exata de como a corrupção dos sentidos e má utilização geral das palavras havia chegado ao limite do suportável. Acusação de complacência da casa com erros imperdoáveis. Para os mais conservadores, verdadeiros crimes hediondos contra as palavras.

No final, não houve mais discursos. Todo plenário levantou-se e uma só palavra foi ouvida:

- Greve geral já!

A partir da meia noite, as pessoas que estavam em seus computadores foram as primeiras a notar. Primeiro, pensaram que fosse defeito nos teclados e touch pad dos smartphones. Mas, todos perceberam que se digitassem números, eles apareciam normalmente. As palavras estavam em greve. Inclusive as escritas a mão. Isso só foi confirmado pelo Jornal da Manhã da TV. Em todos os sites brasileiros, só havia números. Não havia palavras. Não havia nada escrito em português do Brasil. Os sites em outras línguas estavam normais.

O dia foi de ligações telefônicas, única forma de comunicação em território brasileiro. Recordes em cima de recordes nos números de chamadas de todos os tipos. As pessoas só conseguiam saber dos acontecimentos através da palavra falada. Ninguém conseguia escrever nada. Mesmo que tentasse escrever com canetas diretamente no papel, as palavras não obedeciam às ordens dadas e se embaralhavam como numa criptografia caótica e indecifrável.

No final daquela noite, surgiu o único texto que apareceu nas telas de todos os aparatos conectáveis do Brasil, nas últimas 24 horas:

“Dentro de 10 minutos retornaremos ao trabalho. Mas, pedimos aos nossos usuários que façam um uso mais adequado de nossas atribuições. Levamos milênios sendo aperfeiçoadas e vocês estão nos deixando sem sentido em poucos anos. Por favor, nos tratem com mais carinho e aprendam nosso uso correto, não é tão difícil.  Afinal, nosso objetivo é o mesmo: fazer com que todos nós nos entendamos da melhor maneira possível.”

- Edmir Saint-Clair


Gostou?  👇  Compartilhe com seus amigos

MISTÉRIO NO LEBLON

 
 Rio de Janeiro - Bairro do Leblon,
início do outono, 20h55m.

Eu acabara de sair da academia Lucinha & Cláudio, atravessara a Rua Humberto de Campos, na direção da Rua José Linhares, que fica a menos de 50 metros. Estava dobrando a esquina, quando vi uma senhora idosa vindo na direção contrária. Ela dá uma topada na calçada, se desequilibra e começa a acelerar o passo descontroladamente. Ela vai cair.
Corro em sua direção para tentar ampará-la mas, antes que chegasse perto o suficiente, surge do nada uma mulher muito esguia de cabelos pretos, curtos, e a segura, colocando-a de pé e sumindo novamente.

Tudo não durou mais do que fugazes 3 segundos.

Fiquei petrificado com a cena. Senti-me muito estranho, um desconforto cerebral extremamente desagradável, como se tivesse levado uma pancada forte na cabeça. Senti uma confusão agoniante, uma perda da noção do que era ou não realidade. Como uma pane inexplicável no meu sistema mental...

Como alguém aparece e desaparece do nada? Sim. Ela não surgiu e foi embora correndo ou sumindo de forma gradual, como é natural acontecer. Ela apareceu e desapareceu, como um flash fotográfico.

A Senhora Idosa estava atônita e tão perplexa quanto eu. Quando conseguimos trocar olhares, foram de puro espanto!

Aproximei-me dela um pouco mais e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Ela me relatou, exatamente, a mesma coisa que eu havia visto. Utilizando, inclusive, as mesmas expressões como “apareceu do nada" e “Desapareceu do nada”.
Ela relatou o que eu tinha presenciado com a mesma precisão de detalhes que eu percebera. Ou seja, quase nenhum, já que a velocidade do evento, foi como se alguém tivesse colocado um vídeo em câmera acelerada.

Logo percebemos que havia uma prova física e inequívoca do ocorrido: a Sra. Idosa estava usando uma blusa branca de mangas compridas e, nela, estavam estampadas visivelmente, duas marcas de mãos onde o “ser” a segurara. Perfeitamente visíveis e brilhantes.
Nós dois olhamos para as marcas e, em seguida, um para o outro, ainda com expressões de absoluta incredulidade.

Percebi que havia testemunhado algo fantástico e extraordinário, e que não haviam palavras que pudessem descrever aquele flash inacreditável.
Ficamos em silêncio, eu e a Senhora Idosa, tomando fôlego e reiniciando os pensamentos. Pouco depois, seguimos caminhando, lentamente, até a entrada do prédio para onde ela estava indo. Ambos no mais absoluto silêncio, em choque.
Despedimo-nos pelo olhar, sem trocar mais nenhuma palavra, ainda visivelmente desconcertados. Não havia nada o que falar. Nossos olhares se acenaram, confirmando a cumplicidade que havia acabado de nascer. Nunca mais a vi e nunca soubemos o nome um do outro. E Nunca entendi o que havia acontecido.

- Edmir Saint-Clair


Gostou?  👇  Compartilhe com seus amigos

INTOCÁVEL

 


Eram jovens em seus últimos momentos da adolescência, quando se viram pela primeira vez. No pôr do sol, no Arpoador, num verão.

A multidão contemplava embevecida aquele show de luz e sombras, enquanto o sol se deitava, aos poucos, aconchegado pelos dois irmãos. O mar, o sol e a montanha reunidos pelo sublime  espetáculo diário da natureza carioca.

Assim que se posicionou na pedra ele a viu pela primeira vez. Ela também.

A partir daquele olhar ele ficou alheio a tudo mais que acontecia em volta. Ela estava fitando-o de forma acintosa, involuntariamente, e ele também. Menos de dez metros de distância, mais as dezenas de pessoas entre eles, os separavam.

Apenas olhavam-se fixamente, e a distância não impedia que fosse evidente que as pupilas de ambos haviam se conectado além de tudo e todos. Além deles mesmos.

Não sorriram, não piscaram, não fizeram menção alguma de se aproximarem, estavam imóveis e absurdamente focados. Em transe profundo.

Enquanto ouve luz suficiente para o olhar humano distinguir traços no escuro, ficaram onde estavam, imóveis, ligados por algo indescritível que nunca haviam sentido antes, até o sol se pôr completamente e a vida virar noite.

Saíram misturados a multidão, sem que se encontrassem.

Passou-se 40 anos.

De novo um Pôr do sol no Arpoador, num verão.

Se reconheceram pelo olhar, apesar das implacáveis marcas do tempo nos rostos, nos corpos e nas almas de cada um. Depois de toda uma vida, eles estavam no mesmo lugar, a mesma distância e num momento tão sublime quanto aquele que jamais haviam esquecido.

Novamente, permaneceram no mesmo transe de antes, enquanto a natureza dava seu mesmo espetáculo de todos os verões.

Permaneceram exatamente como há 40 anos. As pupilas engolidas pelas outras pupilas, à distância, saciando a fome da alma.

Não se aproximaram. Não valia a pena tocar aquela lembrança tão suave, profunda e intensa com as duras e ásperas mãos da realidade. Sabiam que estavam sentindo exatamente a mesma coisa. O mesmo sentimento habitava os dois corpos ao mesmo tempo. O Inexplicável, o etéreo e o sublime novamente se encontraram.

Por algum motivo muito além da razão, eles souberam exatamente o que tinham que fazer.

Então, eles levaram um ao outro consigo para sempre, intocáveis.

Edmir St-Clair

COMPARTILHE COM SEUS AMIGOS