Chegávamos ao clube logo
depois que abria e em menos de 15 minutos todos os amigos também já tinham
chegado. Éramos sócios e amigos de todos os funcionários da AABB da Lagoa, que
nos conheciam pelo nome. Nosso dia inteiro era para jogar bola, ping-pong,
tênis, ir à piscina e, em algum momento, almoçar juntos, mais de 10 moleques
cheios de energia e idéias de jerico, fazendo muita bagunça no restaurante do
clube. Sem pais nem responsáveis para olhar nossas irresponsabilidades.
Resumindo, liberdade pra fazer o que quiséssemos o dia inteiro até as 10 da
noite, quando os pais começavam a chegar para nos buscar.
Voltávamos sempre dormindo
no banco de trás do carro. Exaustos. Lembro de acordar sendo carregado por meu
pai até em casa. Com certeza, nessas noites, o pensamento que me vinha a minha
cabeça antes de adormecer era o desejo de que o próximo sábado chegasse rápido.
Domingo sempre acordava mais
tarde e mais preguiçoso. Esse acordou diferente. Meu irmão me balançou avisando
que nossos pais queriam conversar com a gente. Na mesa do café, meu pai nos
avisou que assim que acabassem as aulas do semestre nos mudaríamos para
Uruguaiana, no Rio Grande do Sul.
Foi a primeira vez na vida
que senti o tempo passar mais rápido. Eu não queria que o dia de ir embora
chegasse.
Num dos primeiros dias de
julho minha mãe nos acordou bem cedo, nos arrumamos, tomamos café e descemos para
a garagem. Meu pai já estava dentro do carro nos esperando. Foi a primeira vez
que me lembro de reparar mais atentamente o lugar onde morava. Exatamente
quando estava indo embora. O Leblon, cheio de árvores, e a Lagoa ao amanhecer
me eram familiares, mas dali pra frente tudo seria novidade. Meu irmão começou
a chorar. Lembrei dos sábados, do colégio e da praia, e comecei a chorar
também.
− Isso é saudade...
Revelou-nos minha mãe.
Não gostei de sentir isso.
A viagem de carro foi de
descobertas e encantamentos. Passamos por três estados que não conhecíamos até
chegar ao Rio Grande do Sul, sem pressa. Meus pais eram bem jovens e sabiam
aproveitar uma viagem. Tudo era novo. Os hotéis onde pernoitávamos, os estados,
as cidades, as florestas de pinheiros, os campos enormes e o frio!
Meu pai calculou a viagem de
forma que na última perna a distância nos permitisse chegar no meio do dia a
Uruguaiana.
Meu pai calculava muito bem. Minha primeira
viagem foi por 2.000 km de novidades e foi quando percebi que o mundo era muito
maior e mais bonito do eu imaginava. E olha que eu já era bom imaginador.
Sentia-me o tempo todo fazendo parte de uma aventura. Minha mãe era excelente
explicadora do mundo e, também, do que eu e meu irmão sentíamos. Ela sempre
tinha um nome bonito para o que a gente estava sentindo. Durante a viagem minha
mãe nos contou um monte de coisas que sentíamos, mas não sabíamos o nome. Ela
também previa o futuro e nos disse que ainda tinham muitas coisas legais pela
frente.
Depois de almoçarmos, já no centro de
Uruguaiana, fomos para a Vila Militar, onde ficava nossa nova casa. Nunca
havíamos morado em casa, só em apartamento.
Meu pai parou o carro na
entrada da garagem. Quando ele saltou para abrir o portão eu e meu irmão
pulamos do carro, excitados com tanta novidade. Fiquei olhando, ainda por fora
do muro, àquela casa de dois andares, garagem, quintal grande e duas árvores
frondosas e cheias de galhos bons para subir. Antes que entrássemos pelo
portão, um cão adulto, tipo Collie, só que maior e mais forte, começou a
brincar e entrou junto conosco pela primeira vez na casa. Meus pais nem
repararam ocupados em retirar as malas do carro, eu e meu irmão fomos para o
quintal explorar e brincar com aquele cão dócil, alegre, grande e bonito, mais
bonito que a Lassie.
A vila militar ocupava um
quarteirão inteiro. As casas rodeavam esse quarteirão e tinham duas entradas, a
da frente que dava pra rua e a de trás, que dava direto para a parte interna do
quarteirão, onde havia uma enorme área gramada comum a todas as casas. Esse
centro era um grande espaço aberto com campo de vôlei, futsal, tênis e o
melhor, a maior parte era de grama e árvores. Daquelas que dão pra subir até o
alto. Cheias de galhos. Frondosas. Eu, meu irmão e o cão andamos por todos os
cantos daquele parque particular. Descobrindo um mundo novo, totalmente
diferente do Leblon. Até o jeito de falar das pessoas era outro. Ficamos
imaginando um monte de coisas pra fazer no Campinho. Era assim que era chamado
aquele parque particular.
Quando começou a anoitecer
voltamos para casa, empolgados com aquele espaço enorme que seria nosso quintal
dali pra frente. Nunca tínhamos podido ir tão longe sozinhos. E o cão nos
seguindo o tempo todo, nos sentíamos os donos dele. Brincamos de mudar de
direção enquanto andávamos e o cão mudava também. Quando entramos pelo portão
de casa, o cão entrou conosco, como se aquilo fosse absolutamente rotineiro.
Entramos pela cozinha e fomos até a sala, onde meu pai colocava lenha na
lareira. A casa tinha lareira! E meu pai sabia muito de lareira apesar de nunca
ter tido uma. Meu pai sabia muito de tudo. Fiquei hipnotizado pelo fogo. Meu
pai me olhou sorrindo, ele sabia o que eu estava sentindo. Os pais sempre
sabem. E olhou também para o cão ao meu lado. Fez um aceno com a cabeça na direção
do cão e respondi que não sabia de quem era. Ele chamou o cão que obedeceu e se
derreteu com os afagos dele. Meu pai também gostava de cães. Combinamos que o
cão dormiria fora da casa, dentro do campinho. Ele achava que o cão deveria ser
de alguma outra família dali e durante a noite voltaria para os seus donos. Eu
e meu irmão fomos juntos com ele deixar o cão no portão.
Naquela noite, quando saí do
banho, descobri porque a casa tinha lareira. Tudo parecia um filme. Até o meio
da noite, quando todos acordaram morrendo de frio, os quartos ficavam no
segundo andar e a lareira era na sala de baixo. Fomos todos dormir na sala, em
frente à lareira e abraçados embaixo dos cobertores. Minha mãe fez meu pai
prometer que compraria aquecedores elétricos para todos os cômodos na manhã
seguinte. Sorte dele que a casa não era grande. Adorei o frio. Ele nos fez
dormir abraçados, todos juntos em frente à lareira.
A manhã seguinte nos ensinou
que mais frio que uma noite fria de inverno no sul do Rio Grande do Sul é a manhã
que vem depois dessa noite. Acordei já tremendo, embaixo de uns três cobertores
e abraçado a minha mãe, enquanto meu pai tentava acender novamente a lareira.
Ele tinha calculado mal e o fogo apagara precocemente. Quase congelamos. Mas
meu pai sabia reacender lareiras e em pouco tempo voltamos a dormir. Quando
acordamos de novo, meu pai já havia saído para comprar aquecedores.
Nunca tinha imaginado que
era possível fazer tanto frio. Tínhamos acabado de chegar do Rio de Janeiro e
isso era completamente novo pra gente.
Antes de tomarmos café eu e
meu irmão fomos até o portão que dava para o campinho e lá estava o cão deitado
em frente. Saltou para dentro do quintal e começou a fazer muita festa. Nunca
havíamos tido um cão, muito menos daquele tamanho, nem caberia no apartamento
onde morávamos no Rio. Tomamos café e fomos direto para o campinho, o cão veio
junto. Não saía do nosso lado para nada. Estávamos apaixonados por ele e ele
por nós. Quando voltamos para o almoço, meu pai já havia posicionado um aquecedor
em cada cômodo. Perguntou sobre o cão. Contamos a estória. Ele explicou que o
cão deveria pertencer a alguma família da vila ou das redondezas. Novamente
quando anoiteceu fomos deixá-lo do lado de fora da casa. Só que dessa vez do
lado que dava para a rua e não para o campinho. Fora desse lado que ele
aparecera. O cão saiu e sentou-se na porta do lado de fora.
Essa noite dormimos todos
bem aquecidos, cada um na sua cama. Como bônus pela noite anterior, eu e meu
irmãos fomos dispensados do banho. Antes de dormir ficamos conversando sobre o
cão. Estávamos encantados e começamos a imaginar que ele poderia ser nosso. E
se ele não tivesse dono?
Quando adormecemos o cão já
se chamava Mister.
No dia seguinte, Mister
continuava na porta e entrou assim que abrimos. Meu pai estava tomando café e
nos contou que um segurança noturno da vila lhe dissera que ele tinha dormido a
noite inteira no portão. E aumentou ainda mais nossa esperança de que ele fosse
mesmo nosso quando contou que o vigia também dissera que trabalhava ali há anos
e nunca havia visto aquele cão. Da vila ele garantiu que não era.
Meu pai nos contou isso
enquanto brincava com o Mister. Meu pai adorava cães e tinha uma sensibilidade
especial no trato com eles que sempre o adoravam também. Meu pai sabia muito de
cães.
− Mister é?... Gostei, disse
ele.
E assim o Mister foi
oficialmente batizado.
Nos fins de semana seguintes
fomos os quatro, eu, meu pai, meu irmão e o Mister, passear pelas ruas
próximas. Meu pai nos explicara que se ele fosse de alguma daquelas casas, ou
alguém o reconheceria ou ele reconheceria alguém ou alguma das casas.
Ele era um cão bem tratado,
grande, forte e adulto. Um belo cão. Um ovelheiro, como eles chamam ali na
fronteira gaúcha. Um pastor de ovelhas. Ele tinha os caninos marcados como se
tivessem sido serrados na ponta ou algo parecido. Descobrimos que isso
acontecia para que não machucassem as ovelhas mais novas, informação dada pelas
pessoas com quem meu pai conversara em busca de informação sobre o cão e seus
possíveis donos.
Nosso encantamento pelo
Mister só aumentava. Ele tinha que ser o nosso cão. Um pastor de ovelhas de
verdade. Estava na cara que meu pai também queria.
Ele aceitou depois que eu e
meu irmão prometemos que não íamos ficar frustrados se o dono aparecesse de
repente. Prometemos sem hesitar um segundo, apesar de nenhum dos dois ter a
menor idéia do que significava “frustrados”. Não importava. Depois perguntaríamos
para minha mãe.
A partir desse dia foi
oficializada a entrada na família daquele grande companheiro que marcaria para
sempre nossas vidas.
- Um belo cusco! Segundo
todos que o conheceram.
Descobrimos que lá eles chamam cachorro de cusco. Chamam batida de carros de
“peixada”. Nunca consegui entender o
porquê...
Garoto era guri ou piá. Em
menos de um mês eu já estava falando Bah! Tchê! E chamando os guris da vila pra
brincar. Foi lá que comecei a me aproximar das gurias e a me sentir atraído por
elas.
Em Uruguaiana não tinha televisão nessa época.
No Rio, National Kid era uma das melhores coisas da minha semana, passava todas
as sextas-feiras quando eu voltava do colégio. Mas, não me lembro de ter
sentido falta um dia sequer.
Lá aprendi a gostar de
chimarrão. Tinha 10 anos e, geralmente, criança acha o gosto muito amargo. Eu
gostava. Tinha minha cuia e gostava de ficar no quintal olhando o Mister e
bebendo chimarrão. Nas manhãs frias, ficava na varanda do quarto olhando a
paisagem branquinha coberta com a fina camada de gelo da noite geada. Era tudo
muito diferente, uma grande aventura, como um filme. Para um menino do Rio,
acostumado com o modo de vida de uma cidade cosmopolita, era um mundo
totalmente novo. Entre o Leblon e Uruguaiana, eu descobri que o mundo era muito
maior do que eu jamais imaginara.
Meu pai servia no 8⁰
Regimento de Cavalaria, o que significava que podíamos montar a cavalo com
regularidade. No Rio, meu pai servira no Regimento Andrade Neves, na Vila
Militar, que também é de cavalaria e foi onde eu e meu irmão aprendemos a
montar.
Minha estréia na equitação
gaúcha não foi das melhores. A primeira vez que eu e meu irmão fomos, com o
grupo de filhos de oficiais da vila, para montar no quartel, foi inesquecível e
hilário.
O sargento que dava
treinamento para a gurizada deu, para mim e meu irmão, os dois cavalos mais
mansos do quartel, por precaução, já que era nossa primeira vez em terras da
fronteira. Nem preciso dizer que os guris de lá pareciam que tinham nascido em
cima de um cavalo. Mas, eu e meu irmão, apesar de ainda tímidos, estávamos
acompanhando direitinho. Até que meu cavalo, branco, chamado Kibon, começou a
corcovear do nada. Estávamos no campo de Pólo do quartel, um espaço enorme e
gramado. Consegui me manter em cima do cavalo apesar dos solavancos, e logo ele
parou com a intervenção do sargento. Eu não havia caído, mas com o corcovear eu
saí da cela e fui parar no pescoço do cavalo. Quando ele parou, calmante
abaixou o pescoço e eu desci escorregando de cara no chão. Sorte que era grama.
Saí fisicamente ileso e moralmente arrasado. Pelo menos, consegui conquistar a
gargalhada e a amizade de todos ali. Passei a ser conhecido como o Carioca que
caiu do Kibon, o cavalo mais manso do 8⁰ Regimento de Cavalaria. O Mister
estava lá e foi o primeiro a me socorrer no chão com suas lambidas.
O Mister já estava nos
esperando na porta de nossa casa desde o momento em que chegamos do Rio e
ficaria conosco até o dia em que fomos embora, chorando.
Nunca soubemos de onde ele
veio.
- Edmir Saint-Clair