COACH LITERÁRIO
OS LACERDINHAS (O INCÊNDIO DA PRAIA DO PINTO)
Pensando bem, faz muitos anos que nem sequer ouço falar. O Lacerdinha tinha
poucos milímetros e não voava. E o Lacerdinha não transmitia doenças.
Era pretinho e infestava o Leblon, principalmente as transversais, numa
certa época do ano. Minhas lembranças com relação a eles estão ligadas à época
em que eu morava na Rua José Linhares.
No final da tarde, eram cigarras cantando e Lacerdinhas caindo das
árvores. Às vezes nos olhos. Ardia e coçava muito!
Deixava os olhos inchados e nossas mães preocupadas.
Eles eram atraídos por roupa clara, principalmente as amarelas. Por vezes,
atingiam os olhos e provocavam irritação e ardência intensas.
Esses minúsculos insetos eram chamados de Lacerdinhas em referência a um
antigo político carioca, Carlos Lacerda, que fora governador no tempo do estado
da Guanabara.
Descobrimos que os lacerdinhas depositavam suas larvas nas folhas das
árvores, que ainda estavam enroladas e cheias de água da chuva. A gente as
desenrolava e surgiam um monte de Lacerdinhas pequenos em seu interior.
Para mim, os Lacerdinhas despertam uma lembrança muito marcante.
Uma história que me provoca um sentimento muito incômodo até hoje. Eu
tinha uns seis anos de idade e era acostumado a brincar na nossa rua, mas só no
quarteirão, sem atravessar a rua. Havia muitas crianças, tanto no meu prédio
quanto nos prédios vizinhos que faziam parte daquela turminha de meninos da
mesma idade.
Naquele tempo no Leblon, a maioria
das casas tinha uma empregada que morava na favela Praia do Pinto ou na Cruzada
São Sebastião.
Quando, por algum motivo, a empregada da minha mãe levava o filho para o
trabalho, no caso a minha casa, ele se tornava um amigo a mais, que passaria o
dia brincando comigo, meu irmão e nossos outros amigos. No período das férias
escolares isso era bem frequente e, às vezes, a Dona Celestina voltava para a
casa deles na favela da Praia do Pinto e ele ficava e dormia lá em casa com a
gente. Eu e meu irmão adorávamos a presença dele. Era um menino doce, risonho e
engraçado.
Seu apelido era Bilico, o nome era Bernardo, o dia era sábado, dez de
maio de mil novecentos e sessenta e nove, véspera do Dia das Mães.
Dona Celestina e minha mãe estariam ocupadas o dia inteiro preparando o
almoço comemorativo do dia seguinte.
Bilico era mais novo que eu, um ano e mais velho que meu irmão apenas
alguns meses. Era negro com os dentes grandes e muito brancos. Era tímido, mas
engraçado, falava de uma maneira diferente que eu achava legal. Quando Bilico
passava o dia lá em casa fazia tudo junto comigo e meu irmão; assumia a nossa
rotina, almoçava, tomava banho, brincava, lanchava, descia para brincar conosco
e era sempre muito divertido.
Nesse dia, Bilico chegou cedo, tomou café conosco e descemos pra rua pra
brincar. Era época de Lacerdinha.
Dentre os garotos que brincavam na rua, tinha um que era especialmente
assustador para mim e meu irmão. O Arlindo era mais velho, mas não andava com
os garotos da idade dele. Andava conosco, que tínhamos uns dois anos a menos.
Nessa idade, isso faz uma grande diferença.
Gostava de nos intimidar e bater. Ninguém ficava com pena quando o pai
dele aparecia chamando-o, sempre gritando e batendo nele.
Nós também tínhamos medo do pai dele.
Nessa tarde, estávamos catando Lacerdinhas nas árvores. Abríamos as
folhas e ficávamos observando os Lacerdinhas se mexendo lá dentro.
De repente, o Arlindo pega uns Lacerdinhas com o dedo e enfia com
violência no olho do Bilíco, que observava bem de pertinho.
− Tá com fome? Come neguinho
esfomeado!
Arlindo falou aquilo com mais raiva do que lhe era peculiar, todos nós
tomamos um susto. E ele nem conhecia o Bilíco...
Bilíco começa a coçar o olho e a chorar com a ardência intensa.
Todos os meninos começaram a rir. Menos eu, meu irmão e o Bilíco, que
saiu andando e chorando na direção da portaria do nosso prédio.
Lembro que me veio um sentimento estranho e desconfortável que eu nunca
havia experimentado antes - anos mais tarde eu saberia que aquilo se chama
constrangimento - e que nunca me saiu da memória. Eu senti vergonha. Vergonha
de não ter defendido o Bilíco, ele era meu amigo.
Bilíco não subiu para nossa casa, ficou num canto da portaria chorando
baixinho. Falou que se chegasse lá em cima chorando e com o olho inchado sua
mãe iria brigar com ele. Ela recomendava-lhe sempre que não queria que ele arrumasse
confusão com os "filhos das madames".
Depois de algum tempo, ele parou de chorar e subimos. Pela escada. Naquela
época, os empregados e pessoas negras de cor" só podiam subir pelo
elevador de serviço.
Mas o Bilíco só subia pela escada, tinha medo de elevadores.
Quando chegamos em casa, a
primeira coisa que Dona Celestina viu foi o olho do filho inchado e muito
vermelho. Não falou nada, mas fechou a cara. Chamou o Bilíco para a cozinha e
de lá só o vimos de novo quando eles foram embora, bem mais tarde. Lembro-me
bem da expressão de choro dele quando se despediu da gente.
Aquele sábado me marcou para sempre.
Naquela mesma noite, um misterioso e devastador incêndio irrompeu e tomou
conta da favela onde eles moravam. Queimou por toda a madrugada e por muitas
horas seguintes, consumindo tudo e deixando centenas e centenas de famílias sem
teto e sem nada. Era dia onze de maio de mil novecentos e sessenta e nove, Dia
das Mães.
A casa da Dona Celestina e do Bilíco pegou fogo e virou cinzas, junto com
toda a favela da Praia do Pinto, que queimou inteira.
Não sobrou nenhum barraco
de pé.
Dona Celestina nunca mais voltou, e o Bilíco nunca mais veio passar o dia
conosco.
Nunca mais soubemos deles.
- Edmir Saint-Clair
EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR
UMA FÁBULA DE ANO NOVO
Era uma vez um planeta triste no qual morava um homem muito alegre que adorava inventar coisas.
- Edmir Saint-Clair
ONDE TUDO SE ENCONTRA
Andei por muitos lugares, por perto, por longe
e nas metades de caminhos,
Me detive onde havia música, onde havia olhares,
paisagens e carinhos,
Também perdi muito tempo onde não deveria parar,
Onde os sorrisos não cabem não nos devemos demorar,
Encontrei muitos oásis, muitas pousadas amigas,
Também encontrei intrigas onde não deveria encontrar,
Em todas as praças encontrei crianças, encontrei amizades, encontrei esperanças,
Pelos silêncios do mundo busquei por respostas,
busquei por motivos, busquei por razões
que nunca encontrei.
Vi que os lugares são muito diversos,
separados por distâncias infindas,
Todas mais lindas do que onde eu deveria estar,
Descobri o lugar onde tudo existe no mesmo momento
e fazendo todo sentido,
Revelando os amigos, os amores e os sorrisos,
E, por fim, descobri que o final de todas as estradas
onde andei
Se encontram em mim.
Edmir Saint-Clair
O MEDO DA MUDANÇA
"...e a incerteza, a única certeza". Zigmund Bauman - (2.500 anos depois).
O medo está nos rondando o
tempo todo, nos fazendo engolir sapos maiores que a boca. Sem que tenhamos
consciência de quais são seus gatilhos, aparece, de repente, tentando
encaixar as nossas atitudes e, pior, as dos outros também, em modelos que nem
sabemos se servem aos nossos anseios. Tudo para termos a sensação de segurança.
O medo da mudança é uma
força poderosa e vive escondido nas pequenas coisas e, é, na
maioria das vezes, o grande responsável pelos maiores sofrimentos.
Ouvi de um amigo
psicanalista, algo que me ficou na cabeça e que os anos só reforçaram a verdade
que traduz:
− "O ser humano se
sente seguro vivendo uma rotina previsível, mesmo que isso signifique viver em
péssimas situações, aparentemente insustentáveis, se vistas por alguém de fora mas, que
ele já conhece e está acostumado. É péssimo, mas é um péssimo que ele conhece.
Essa força é tão poderosa que a simples idéia de romper com a situação e partir
para algo novo pode causar pânico a algumas pessoas. O ser humano prefere
ficar no sofrimento conhecido a arriscar qualquer outra coisa que ele não
conheça. ”
Não raras vezes, nos
deparamos com essa realidade em vários aspectos. Nas relações
familiares, profissionais, amorosas, fraternas e quantos mais pensarmos.
Admiro as pessoas que
conseguem se desvencilhar rápido de situações incômodas. É claro que tudo tem sua peculiaridade e nada pode ser posto numa mesma sacola. Mas,
existe uma linha, que pode não ser nem um pouco tênue, de onde, a partir dali, qualquer um tem certeza do dano que aquela situação está trazendo a um, ou a
quantos mais estiverem envolvidos.
Seja em que âmbito for,
chega um momento em que o desgaste é tão profundo e incomodo que a mudança é
absolutamente inevitável e urgente. E; isso sempre gera insegurança, que é outro
nome para o medo.
Nas relações amorosas isso é
ainda mais nítido. Do início da descida até se esborrachar no fim, a gente vem
se ralando todo, ladeira abaixo. E, não raras vezes, essa ladeira dura anos.
Imagine quanta ralação, quantos machucados daqueles bem ardidos poderiam ser
evitados.
É bem doloroso. O que
esquecemos é que podemos, a qualquer momento, interromper essa descida e evitar
mais machucados. Saber interrompê-la antes que os traumas se aprofundem demais
é o que decide como estaremos preparados para próximos relacionamentos. Essa decisão é das mais sérias com as
quais nos deparamos na vida: a hora de parar. Há um momento que temos que dar um
fim a uma situação de sofrimento e não olhar mais para trás. Por uma questão de
sobrevivência e sanidade.
Saber a hora de parar de
sofrer é fundamental para não perder a crença em si mesmo. É necessário
acreditar que podemos produzir nossa própria felicidade. E, antes, precisamos crer que somos capazes de nos proteger, de cuidar de nós mesmos, adequadamente. Porque, quantos mais
machucados estivermos, mais tempo esses traumas levarão para cicatrizar. Isso significa que precisaremos de mais tempo para nos recompor até estarmos prontos para uma nova relação. E a vida não
espera. O tempo passa. E, dependendo da intensidade e quantidade dos eventos traumáticos, e dos recursos disponíveis para enfrentá-los (terapias e redes de apoio), essa recomposição pode ser bastante demorada.
É importante sermos sinceros
ao nos respondermos às nossas próprias perguntas. Precisamos saber pelo menos o que
pensamos, de verdade, sobre nossos próprios assuntos e sentimentos. Precisamos estipular nossos
limites. A Tolerância é necessária, sem ela não se vive em sociedade, não se aprende e nem se
evolui. Mas, a partir de um tênue limite, passa a ser submissão, conformismo e
covardia.
Vivemos como se houvesse um modo certo e outro errado de realizarmos nossa vida. Como se houvesse um gabarito. Não há. Ninguém nasce com manual ou destino traçado. Tudo que fazemos é inédito. Algumas vezes, é imprevisível, simplesmente porque ninguém fez daquele jeito antes. Do seu jeito, original é único.
Mudar dá medo. Principalmente, quando a decisão de mudança envolve coisas básicas como mudar de
casa, ficar sozinho, trocar um emprego medíocre, mas que paga as contas,
por um projeto que, se der certo, vai te dar a vida que você deseja (isso não
está ligado a dinheiro necessariamente!). Mas, que, também, pode dar errado.
E daí? Tudo pode dar errado,
principalmente, o que está dando certo. Já que o que está dando errado, se
mudar, só pode mudar para dar certo.
Se der errado é porque não
mudou. Então, vai ter que mudar de novo. Até dar certo. E, pode ter certeza,
uma das coisas que mais ajudam a persistir até que dê certo, é o bom humor. Sem
ele a vida não tem graça. É preciso brincar de ser feliz, pelo menos...
Ou seja, veja-se por que ângulo for, é preciso estar aberto à mudança sempre. Inclusive, para que o que já está dando certo, continue dando.
A PRIMEIRA FORMATURA DA FAMÍLIA
Ele
nunca vira sua mãe tão feliz. A formatura do irmão mais novo rompia uma
histórica limitação familiar que nunca tivera um membro formado na faculdade.
A cerimônia prometia ser emocionante e ninguém da família deixara de ser
convidado.
Na
chegada ao local, estavam todos compenetrados e um tanto constrangidos com o
requinte ao qual não estavam acostumados. O padrinho alugara um terno mais caro
do que o de seu casamento com a madrinha. Tia Lúcia, a costureira da família,
estava orgulhosa do fruto de seu árduo trabalho nos últimos 6 meses. Valera a
pena, todas as mulheres da família estavam chiquérrimas.
Ele se
sentiu leve e pleno quando viu a família ocupar uma fila inteira no enorme auditório
da faculdade. Fora o excesso de perfumes, estavam todos com a alma e o corpo em
vestes de gala, para testemunharem aquele evento que realizava a todos.
Quando
o irmão mais novo caminhou em sua direção, vestido com a beca dos formandos, teve
vontade de soltar o maior grito e abraço que já dera em alguém na vida.
O
abraço silencioso e só não foi mais longo porque a organização requisitava a presença
dos participantes no palco para dar início a cerimônia de formatura.
Ele se
sentou na poltrona ao lado da mãe e, quando as luzes da sala se apagaram, se
deram as mãos frias, trêmulas e fundidas na mesma emoção.
E viveram, a família inteira junta, um dos momentos mais felizes que viveram.
Edmir St-Clair
-----------------------------------------------------------
A MEDALHA DE SÃO JORGE
A ansiedade era grande. Não via o filho há tempo demais. Saudade apertada, mais ainda quando faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quis que Felipe fosse pegá-lo no aeroporto por conta da falta de previsão de tempo nas esperas entre conexões. Estava vindo de Pequim, depois de cinco anos na China.
Felipe resolveu descansar um
pouco, a ansiedade desses últimos dias havia sido desgastante. Deitou-se no
sofá da sala e adormeceu. Passara a noite acordado, ansioso, pensando na volta
do filho. Agora, cedia ao cansaço.
A campainha toca
insistentemente. Ele levanta assustado e, ato reflexo, corre para a porta.
O antigo relógio de pêndulo
da sala, herança do avô, marca 8h e 06m da manhã. Felipe abre a porta.
− Diego... Dá cá um abraço
filhão...
Diego abraça o pai com força
e saudade iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e familiar. Pai e
filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e
cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor na mais pura acepção dessa palavra tão profunda.
Felipe pega uma das malas
enquanto o filho às outras. Pelo volume da bagagem, veio de vez. Tomara,
pensou.
Vôos internacionais sempre
chegam cedo pela manhã. A tempo de aproveitarem e brincar um pouco nas ondas do
final do Leblon. Felipe mostra a Diego a prancha que mandou fazer de presente
para o filho.
Diego fica emocionado com a
recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daquele demorado e saudoso
abraço. Tem orgulho do pai. A felicidade dos dois é transbordante. Aqueles
momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca vai sair. Olhar
para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.
− Ele é meu filho. Pensou.
− Ele é meu pai.
Pensou o
filho no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são
grandes demais, não cabem em palavras.
A felicidade acontecia
explicitamente naquele momento, pai e filho desfrutando a plenitude da presença
do outro.
Combinaram que Diego ia
dormir um pouco, viajara por mais de 30 horas. Estava exausto.
Felipe deu um beijo na testa
do filho e saiu do quarto.
Diego não acordaria antes
das 14h, ele tinha 6 horas pela frente. Seria bom almoçarem em casa para que
Diego pudesse acordar com calma e sem pressa. Lembrou-se da feijoada de sábado
do Degrau que sempre comeram desde que o filho era pequeno. Depois da separação, a feijoada tinha se
tornado programa obrigatório dos dois. É a pedida perfeita para hoje.
Ele volta até a porta do
quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo.
Uma feijoada e depois uma
boa remada no mar de final de tarde de outono. A luz mais bonita do Rio de
Janeiro.
Seria perfeito se tivéssemos
um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fumava. Fumar um baseado com o
filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um
ritual. O preconceito é uma lente mal construída que torna tudo mais feio. Uma
lente de enfeiar o mundo.
Havia algum tempo que Felipe
não comprava maconha, e tinha perdido o contato com os eventuais fornecedores
do bairro. Nessa altura do fim de semana, se quisesse fumar um baseado
antes da praia com o filho, teria que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é
tranqüilo, pensou. Riu sozinho, a última vez que foi na Cruzada comprar um
baseado deve ter sido há, pelo menos, uns 25 anos atrás.
Diego voltou três dias antes
de completar 30 anos. Um adulto, profissional com formação altamente
especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai, só haviam morado juntos nos primeiros dois
anos da vida dele. Época da qual, obviamente, não se lembrava. Depois, eram
fins de semana, férias e feriados, como todo pai separado. Pouco antes de
viajar para a China, passaram onze meses morando juntos. O maior tempo que passaram até
então. Os melhores também.
Felipe mora na Selva de Pedra. A Cruzada fica a um quarteirão. Antes, resolve
passar no Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem, e garantir que nada
saísse errado. A feijoada de sábado do Degrau é concorrida no bairro e costuma
acabar cedo. A idéia é, em vez de saírem para comê-la no restaurante, ele a
servirá em casa, para que Diego acorde com toda calma e a coma na maior
preguiça que conseguir.
• * * *
Diego não conseguia parar de
se mexer na cama, inquieto. Acordou incomodado, achou que fosse o frio do ar
condicionado e se cobriu mais. Olhou a hora no celular, 11 horas da manhã.
Dormira apenas por 3 horas... Isso não costumava acontecer. Geralmente, dormia 6
horas ininterruptas de um sono calmo. Sempre agradecia mentalmente o pai tê-lo
introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribuía a isso sua calma e
equilíbrio. Mas, não naquele momento. Ainda cansado e sem conseguir adormecer
novamente, sentia uma sensação estranha, uma ansiedade incomum. Rolou na cama até o cansaço
vencer. Adormeceu. Mas, o sono não foi
repousante.
Acorda sobressaltado
de um sono rápido e agitado. Olha o celular, meio-dia. É certo que não
conseguiria mais dormir, e ficar na cama seria pior. Atribuiu a angústia à
excitação da chegada, ao fuso horário e a tudo junto, pensou. Não estava
acostumado a sentir aquela inquietação interna remexendo seu estômago. Não
estava acostumado a sentir a sensação de ansiedade, sem motivo, sem sentido.
Detestava se sentir confuso. Havia algo diferente e errado.
• * * *
Felipe atravessou a rua e seguiu na direção da Cruzada. Quando parou no cruzamento com a Av. Afrânio
de Melo Franco, notou que a porta da Delegacia estava movimentada.
O sinal abriu e ele
atravessou. Chegando esquina oposta, viu Adilson acenando e saindo da Igreja
Santos Anjos, ele acenou de volta. São amigos desde pequenos, jogaram juntos no
time de futebol de praia e muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas.
Distanciaram-se quando chegaram à vida adulta. Hoje, Felipe é arquiteto e
Adilson motorista numa empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e continua
a morar na Cruzada, no apartamento que herdara dos pais. Apesar de ter tido
amigos ali, Felipe entrara poucas vezes naquela comunidade. No Leblon,
geralmente, algum desses amigos que moravam lá, pegavam os baseados para os
outros que não moravam. Faziam “um avião pros amigos”. Sempre foi assim.
A certa altura de uma conversa
formal, Felipe pergunta se Adilson poderia comprar um baseado para ele. A reação foi
inesperada.
Adilson mostrou-se
visivelmente contrariado e ofendido.
− Felipe, sempre achei você
um cara legal. Gosto de você... Temos mais de 50 anos, nunca mais me peça isso.
Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo
passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.
O constrangimento mútuo foi
bastante incomodo. Os dois se conheciam desde pequenos. Naquele instante, uma
distância nunca antes percebida deu-lhes um tapa na cara. A distância que
sempre fingimos que não existia, como todos no Leblon, se escancarou ali na
esquina da Igreja Santos Anjos.
Deram-se um aperto de mão e
Adilson pôs-se a caminhar na direção de sua casa, a Cruzada.
Felipe demorou alguns
minutos tentando compreender o que ocorrera. Ficou parado, na esquina, olhando
Adilson que já ia vários metros à frente. Sentiu-se envergonhado. Mas, não
sabia ao certo por que.
Recuperou-se quando lembrou
que Diego o estava esperando. Teria que entrar na Cruzada para comprar. Voltou
a caminhar, cuidando para não ir nem rápido, nem devagar demais. Normal. Não
estava mais acostumado àquela situação. Estava se sentindo agoniado, lamentava ter ofendido o amigo,
mesmo que involuntariamente.
Em
seguida, ouviu dois ou três tiros que ele não soube precisar de que direção
vinham. Não sabia que lado deveria proteger. Ouviu sirenes e barulho de
carros vindos da direção da delegacia, os tiros aumentaram de intensidade. Percebeu que estava no meio do fogo cruzado. Imediatamente, sentiu algo
rasgando e queimando sua barriga, uma dor profunda e o sangue quente jorrando e
molhando-lhe os órgãos genitais e as pernas. Caiu com as mãos na barriga e a
dor arrancou-lhe um gemido alto. Como se uma flecha de aço em brasa o tivesse
penetrado fundo.
• * * *
Diego adorava os requintes
aos quais o pai se dedicava. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de Expresso
Italiano sempre com dezenas de opções e variedades de grãos de café que ele
moía na hora.
Diego salta do elevador e da
portaria já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de quem tem
algo errado é cada vez mais intensa.
• * * *
Felipe tenta manter a
respiração sob controle enquanto pressiona o ferimento que continua sangrando,
empoçando na laje da rua. Felipe sente que está enfraquecendo, sente medo.
Tenta manter a clareza. Pensar. Os tiros parecem que pararam. Adilson é o
primeiro a aparecer na sua frente.
− Puta que pariu! Que merda
meu véio! , gritou Adilson assustado, enquanto digitava o celular chamando o
SAMU. Ali na Cruzada todos tem o número desse telefone. Após a ligação, Adilson
agacha-se ao lado de Felipe que já está bastante pálido. O tiro era de grosso
calibre e atingira o lado direito do abdômen. A hemorragia era intensa.
Felipe falou com a voz enfraquecida:
− Adilson, por favor, avisa
meu filho.
− Você ainda mora no mesmo endereço?
Felipe confirmou com um
movimento de cabeça.
Adilson arrancou um pingente
do pescoço e partiu a medalha em dois:
− Fica com isso na mão e
pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou
dar a outra metade para o Diego.
Apenas percebeu quando os
enfermeiros abriram espaço e o colocaram na maca. Tudo parecia nebuloso e
distante. Os sons e vozes tinham eco. Os paramédicos fizeram alguns
procedimentos ali mesmo. Ainda deu tempo de reforçar o pedido a Adilson.
Felipe apertou a metade da
medalha nas mãos e começou rezar do jeito que ainda se lembrava.
Os solavancos da maca sendo
encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas
um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados.
Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele
tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais
distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos
tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente literalmente a
vida se esvaindo até desfalecer.
• * * *
Em poucos minutos vários
moradores já estavam na rua. A Selva de Pedra tem um jeito próprio de
ser. Diego continuava cada vez mais ansioso e angustiado. Tentando entender
algo daquela agitação, recebe uma explicação do porteiro do seu prédio; Troca
de tiros na Cruzada com um baleado grave.
Diego sentiu um calafrio
percorrer sua coluna como um bisturi gelado cortando suas costas. Percebeu um
homem caminhando a passos rápidos vindo da praça na direção de sua portaria e o
reconhece. É Adilson, amigo do pai que jogou futebol de praia com ele e morava
na... Cruzada São Sebastião!
Sentiu as pernas se curvarem
sem forças. Não podia ser. Mas, quanto mais Adilson chegava perto, mais seu
olhar deixava claro quem era o baleado. Mas, não fazia sentido!
Adilson conhecera Diego
desde que este nascera.
Chegou perto e o tirou da
presença de outras pessoas.
− Diego, seu pai foi
baleado. Está indo para o Hospital Miguel Couto e pediu pra você ir para lá. Mas, antes ele pediu pra você pegar os documentos dele que estão
na mesinha de cabeceira.
Adilson toca o ombro de
Diego antes que ele saísse em direção à portaria para pegar os documentos. Tira
a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a Diego.
− Fica com isso na mão e
pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber rezar. Para São Jorge
de Ogum. A outra metade está com o Felipe. Agora vai, começa a rezar desde
agora.
Diego está em estado de
choque e procede como um robô, agindo mecanicamente. Ele não sabe rezar. Nunca
aprendeu, nunca o ensinaram. Mas, ele pede a São Jorge de Ogum, com todas as forças e com a fé que nunca soubera
ter. O elevador chega. Ele entra, toca o número de seu andar e volta para sua
reza improvisada, mas cheia de fé. Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como
há algumas horas atrás. Consegue sentir na alma o abraço que se deram. Seu espírito se acalmou, estranhamente, se acalmou. Quando abriu os olhos, ainda estava
no segundo de dez andares. Parecia haver passado muito mais tempo. Abriu a mão
e a metade da medalha havia marcado sua palma, tamanha a força com a qual a
apertara.
O elevador chegou ao andar e
ele abriu a porta. Quando saiu da cabine e olhou para a porta do apartamento de
seu pai tomou um sustou que o deixou tonto. Suas malas estavam na porta. Ele
se olhou e estava com a mesma roupa de quando chegou de viagem.
No antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, os ponteiros marcam 8h e 06m da manhã, pela segunda vez no mesmo dia.
- Edmir Saint-Clair
Gostou? 👇 Compartilhe com seus amigos
COMO ENCONTRAR O SEU ANJO – GUIA PRÁTICO
Com
este guia prático você vai ver que isto é possível, basta vencer a barreira do
absurdo. Isso é muito fácil, já que ela não existe mesmo.
Para
começar a procurar seu anjo faça o oposto, identifique seu demônio particular. Esses dias estressantes facilitam bastante essa tarefa, e a toda hora ele se manifesta. Primeiro, perceba
que seu principal antagonista é você mesmo. Somos nossos piores e mais
implacáveis sabotadores e críticos. Se a gente pudesse quebrar a própria cara,
de vez em quando, não seríamos assim.
Por
isso, se não podemos vencê-lo, juntemo-nos a ele, no caso, a nós mesmos. Às vezes, transformamos nossas próprias vidas num verdadeiro inferno, como se estivéssemos com o diabo no corpo, nesses momentos, não vacile, atraque-se com seu capeta e mostre quem manda na porra toda.
A
primeira providência é, numa ocasião propícia, convidar seu crítico para
conversar. Ofereça-lhe um chazinho, todo crítico adora um chazinho. Durante a
conversa, faça-o ver que ele o está se criticando muito severamente e revele a
grande verdade, ele é você. No começo ele pode relutar um pouco, mas depois,
fatalmente terá que concordar. Ou então, se interne logo porque seu caso está
perdido. E, não adianta partir para a agressão, eu garanto que você vai
apanhar.
Passada
esta fase meio insana, vamos para a segunda etapa.
Que é,
ainda, mais insana.
Essa
prática seguinte tem suas vantagens. Você pode praticá-la em casa, sozinho, não
paga dízimo e não tem sermão de ninguém, nem tem que ler nada. E não precisa
ver programa de pastor gritando em canal de televisão.
O
incenso é opcional, não é necessário.
Agora
vamos lá; na sua sala ou quarto, fique o mais relaxado que puder, sente-se no
chão e assuma a posição de Lótus.
Pode
ser também a posição de Ferrari ou McLaren.
Essas
posições importadas geralmente são bastante confortáveis. Mas, tem gente que se
arranja bem até com a posição Fiat Uno. Tem que ter muito mais flexibilidade, é
claro.
Ah,
antes coloque um som instrumental que você goste, porque se deixar para colocar
depois de fazer a posição escolhida, vai dar o dobro do trabalho.
Comece
a pensar em quantos Eus existem em você.
Acesse
as memórias de você quando criança, imagine que está se encontrando com ela,
com a criança cheia de sonhos que você foi, convide ela para brincar, pergunte
o que ela sente, o que ela precisa, o que lhe falta.
Chame seu autocrítico, também, e apresente-o a ele mesmo. Perceba toda a abrangência de sua própria pluralidade.
Desculpe
seus erros, faça um pacto de amizade consigo. Faça a paz entre todos os seus
Eus.
Grande
parte das pessoas esconde sentimentos de si mesma. Ou seja, nem amigos
confidenciais de si mesmos são.
Essa é
a pior solidão, a ausência de si mesmo.
Temos que nos aceitar, ficar do nosso lado, isso é fundamental. Mesmo quando não compreendemos por que fizemos aquela merda colossal! Quanto mais difícil é uma situação, mais fortemente precisamos contar com nosso próprio apoio. Sem o acolhimento e a amizade de si mesmo, não há santo, nem anjo, que aguente viver.
Seu
anjo da guarda existe e está esperando por esse encontro, há tanto tempo quanto
você.
Agora, levante-se e fique bem em frente ao espelho.
Se olhe com toda a atenção, sem
pensar em nada, apenas se olhe, sem pressa, vá se reconhecendo, lentamente, em
cada mínimo detalhe, até se enxergar profundamente, com os olhos de sua própria
alma.
E,
então sorria.
Imediatamente,
você verá o seu anjo lhe sorrindo de volta.
- Edmir Saint-Clair
-
VISITE NOSSO CANAL NO YOUTUBE POD SIM ---------------------------------------------------------------------
-
Desabilite seu anti-vírus para uma experiência sem travamentos ou problemas de acesso. Garantimos a sua segurança, ela é a garantia do seu r...
-
-----------------------------------------------------------------------------------------