ORIENTADOR LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO - especializado em redação criativa - desperte sua criatividade adormecida.

TODO MUNDO VIU


Noite da Passagem de Ano,

madrugada do dia 01 de janeiro de 1969,

1 e meia da manhã, praia do Leblon.

Naquela década, todas as praias da zona sul eram palco de um espetáculo muito, mas muito diferente dos fogos de Copacabana e das festas sofisticadas dos dias atuais. Naqueles anos, as praias eram tomadas pelos terreiros de umbanda.

A partir do entardecer do dia 31 de dezembro, começavam a chegar as comitivas que vinham para preparar seus altares, e cada grupo iniciava a montagem de seu próprio terreiro na areia.

Cercavam o pedaço escolhido com palmas brancas fincadas na areia que dessa forma, delimitavam o domínio. Cavavam pequenos buracos, no fundo dos quais acendiam as velas que, assim, ficavam protegidas da brisa que sempre sopra à noite, vinda do mar. Eram centenas e centenas de pequenas velas e suas luzes ondulantes, iluminando de forma mágica as areias, de uma praia do Leblon onde a iluminação pública não tinha nem 10 por cento da luminosidade atual. Aquela imagem marcou minha memória de criança, uma mistura entre a realidade e a ficção de um filme sobrenatural.

Os pais e mães de santo, junto com seus cambonos e devotos, enfeitavam e preparavam seus terreiros de forma extremamente caprichosa, e imbuídos de uma devoção profunda e explícita.

O início da arrumação coincidia com o final das tradicionais peladas de futebol de areia, disputadas no Leblon, entre homens vestidos de mulher, sempre acompanhados por uma bateria de samba do próprio pessoal, geralmente, organizada e regida pelo genial percursionista Oscar Bolão, bateria essa, que depois deu origem a Banda do Leblon, que depois passou o bastão para o Bloco Empurra que Pega dos dias atuais.

Esse intermezzo, do início do pôr do sol até umas 8 horas da noite, era muito curioso.

O que acontecia, simultaneamente, durante o lusco fusco deste dia especial, era absurdo e surreal.

Os devotos já estavam finalizando os trabalhos de preparação dos altares, e iniciando as cerimônias que atravessariam as madrugadas e iriam até os primeiros raios de sol do primeiro dia do ano.  Enquanto, ao mesmo tempo, acontecia a maior bagunça que misturava uma caricatura de futebol de areia, másculo-feminino, com muito consumo de álcool e de tudo mais que pode haver de profano; estavam todos ali, lado a lado, convivendo harmoniosamente. O divino e o profano de mãos dadas, comemorando, felizes, cada um do seu jeito.

Naquela época, o réveillon era comemorado como se fosse uma noite de carnaval normal. E não acontecia nas ruas ou nas praias, os bailes aconteciam nos clubes e associações.

Era um carnaval fora de época, com festas concorridíssimas nos clubes, hotéis e danceterias espalhadas por todos os bairros do Rio.

Era muito diferente do que é hoje, no século 21.

As praias eram tranquilas e, era para onde as famílias iam depois de romper à meia-noite em casa. Os Adolescentes e jovens corriam para as festas, e os pais com filhos pequenos iam para a praia, em frente de casa, no Leblon, onde ficávamos passeando e observando os rituais de umbanda que aconteciam nas areias.

Era um terreiro a cada 3 ou 4 metros, todos cheios de gente esperando para tomar passe das pretas e pretos velhos incorporados. Era o sincretismo religioso acontecendo ali na frente de todos. A classe média, em sua maioria católica, buscando a benção de outra religião, ali representada pela classe mais humilde e oprimida da cidade; pobres e pretos. Era a única ocasião que me lembro de ver uma patroa branca abaixando a cabeça humildemente para receber o passe da empregada que morava na favela.

Eu era bem pequeno e estava com meus pais e irmãos passeando e observando toda aquela movimentação tão extraordinária e que se apresentava ainda mais fantástica na imaginação de uma criança.

Fiquei muito impressionado por pessoas que, de repente, do nada, começavam a agir estranhamente, e minha mãe me explicou que aquilo é quando um espírito entra na pessoa em transe. Me deu medo, mas a curiosidade era muito maior. O cheiro de charuto e de defumadores só não era mais forte por causa da brisa marinha. Mas, marcou em minha memória olfativa.

Meus pais compraram algumas palmas brancas e entraram no sincretismo reinante. Meu pai deu uma palma para cada filho e fomos jogá-las no mar, para Iemanjá.  Foi divertido e engraçado molhar os pés pulando sete ondas e jogando as flores no mar. Quando estávamos voltando da beira para a calçada, começou uma confusão. Um homem grande e forte começou a gritar, visivelmente alterado e bêbado.

Ele olhava desafiadoramente para os devotos enquanto gritava ameaçadoramente:

- Tudo isso é palhaçada!! Um monte de gente ignorante... fazendo teatrinho... fingindo "baixar o santo" ... só para enganar os trouxas...

Passou por um terreiro, abaixou-se e pegou uma imagem do local de oferendas e saiu andando de forma provocativa, enquanto os “donos” e fiéis do terreiro apenas o observavam sem esboçar reação ou intenção de revide. Todos apenas olhando fixamente para aquele homem abominável, em absoluto silêncio. E fez-se um silêncio que nunca existira antes...As ondas do mar se calaram por alguns instantes.

Só o arrogante não percebeu que, naquele momento, algo de muito estranho começou a acontecer...

Ele, imaginando ter dominado o ambiente, continuou bradando ainda mais impropérios quando percebeu que a imagem que roubara era exatamente a de Iemanjá.

Ele estava vestido todo de branco, talvez, não soubesse que essa tradição se deve exatamente a Iemanjá.

Todas as pessoas daquele pedaço da praia pararam para ver aquele desequilibrado, arrogante, histérico e com atitudes tão desprezíveis, desafiar a fé de todos. Desafio Iemanjá a fazer alguma coisa para provar que existe... E, foi caminhando em direção ao mar, gritando que ia afogar Iemanjá em suas próprias águas.

Todos pararam e começaram a acompanhar mais atentamente aquele espetáculo bizarro. Aos poucos, o burburinho foi esmaecendo, inclusive os atabaques dos terreiros próximos foram diminuindo o volume à medida em que o homem foi adentrando cada vez mais o mar, em direção a arrebentação, onde as ondas, muito pequenas nessa noite, estouravam sem oferecer risco algum. Um banco de areia fez com que o homem ultrapassasse a arrebentação com água ainda abaixo dos ombros.

De repente, surgiu uma onda do nada, assustadoramente grande e muito forte, e o engoliu. Apenas uma onda foi grande naquela semana inteira e foi, exatamente, aquela.

Quando, mesmo após alguns minutos, o homem não voltou à tona, o burburinho na areia começou a virar gritos cada vez mais intensos e vários homens passaram correndo e mergulharam na água.

Meus pais nos tiraram rapidamente dali e nos levaram de volta para casa, sem que soubéssemos o desfecho. Mas, fiquei com aquilo na cabeça por semanas.

Alguns anos depois, já adolescente, soube que nunca acharam o corpo daquele homem arrogante e desprezível.

Aquele episódio me marcou profundamente.

Eu vi acontecer na minha frente, e me arrepio toda vez que me lembro.

Todo mundo viu.

Edmir Saint-Clair 




--------------------------------------------------

O PÁSSARO QUE DORME COM MEIO CÉREBRO ACORDADO

 

Imagine atravessar oceanos inteiros sem parar, voando por dias, 

e ainda conseguir dormir no meio do caminho. 

Pois é exatamente isso que algumas aves fazem — entre elas, as fragatas e os albatrozes.

Esses viajantes do céu desenvolveram um truque extraordinário: conseguem dormir com apenas metade do cérebro por vez. Enquanto um hemisfério repousa, o outro continua acordado, controlando o voo e mantendo os olhos atentos ao horizonte.

É o chamado sono uni-hemisférico, um tipo de descanso que permite seguir em frente mesmo no meio do nada — um equilíbrio perfeito entre vigilância e entrega.
Durante o voo, essas aves tiram breves cochilos, de poucos segundos, geralmente quando o vento está favorável e as correntes de ar sustentam o corpo sem esforço.

A natureza, com sua sabedoria silenciosa, criou uma solução genial: descansar sem parar, dormir sem cair, confiar sem perder o controle.

Enquanto nós precisamos de cama, silêncio e escuridão, a fragata e o albatroz dormem em pleno voo, embalados pelo vento e pelo som do mar lá embaixo, e podem continuar fazendo isso por muitos dias sem necessidade de pousar.

Edmir Saint-Clair

PLIMPTOM 322 - O ENIGMA DE MILÊNIOS

    Na penumbra controlada de uma sala de museu, repousa uma pequena placa de argila. À primeira vista, nada mais que um fragmento gasto pelo tempo, coberto de símbolos cuneiformes gravados como cicatrizes antigas. Mas basta um olhar atento para perceber: aqueles sinais não são meros vestígios do acaso — são números. E números, quando se alinham com precisão, contam histórias que o tempo não conseguiu apagar.

Chamam-na Plimpton 322. Veio da Babilônia, há quase quatro milênios. Um artefato discreto, que passou despercebido em estantes universitárias até que olhos modernos ousaram decifrá-la. O que parecia uma lista de exercícios revelou-se uma sequência perfeita de relações pitagóricas — mil anos antes de Pitágoras.

É como se uma mente invisível, oculta sob o pó da Mesopotâmia, tivesse deixado um código. Um eco remoto de um conhecimento que não evolui em linha reta, mas em pulsos: desaparece, ressurge, se transforma. O protagonista que se debruça sobre aquelas colunas não encara apenas uma peça de argila — encara uma fenda no tempo, uma rachadura por onde escapa a suspeita perturbadora:
E se a nossa civilização fosse apenas o eco adormecido de um conhecimento antigo, soterrado sob as incontáveis camadas das passagens das eras?


A PLACA QUE NÃO DEVERIA EXISTIR

À primeira vista, nada nela chama atenção: apenas um fragmento de argila, quebrado nos cantos, coberto por fileiras de símbolos que parecem riscos sem sentido. Por décadas, permaneceu esquecida numa prateleira da biblioteca da Universidade Columbia, em Nova York — parte da coleção do bibliófilo George Arthur Plimpton, que lhe daria o nome sem imaginar a dimensão do que havia guardado.

Até que alguém notou o impossível. Aquelas marcas não eram rabiscos — eram números, dispostos com rigor. Seguiam uma ordem precisa, geométrica, impossível de ser acidental. Cada sequência revelava triângulos retângulos perfeitos, relações exatas entre lados e hipotenusas — mil anos antes de Pitágoras formular o que chamamos de Teorema.

Mas o que mais espanta não é a semelhança, e sim a diferença.
Os babilônios não usavam a base decimal, como nós, e sim o sistema sexagesimal (base 60) — o mesmo que sobrevive hoje na medição de ângulos e do tempo. Em vez de frações, utilizavam combinações de números inteiros. Isso significa que, na Plimpton 322, todas as relações pitagóricas aparecem sem restos, sem aproximações: proporções puras, exatas, elegantes.

Enquanto a trigonometria grega se apoiava em ângulos, a babilônica trabalhava com razões numéricas diretas — uma matemática funcional, voltada ao uso prático.
Não há indício de experimentação ou ensaio; o que vemos ali é o produto de um conhecimento já maduro, construído sobre tradições anteriores.

O autor daquela tábua não estava apenas calculando.
Estava registrando. E, talvez sem perceber, deixou no barro a prova de um domínio técnico que parecia impossível para o seu tempo — uma matemática nascida do pó, mas que ainda hoje se sustenta com a precisão de uma máquina.


A MATEMÁTICA DA PEDRA E DO BARRO

A Plimpton 322 não é apenas um objeto curioso. É uma ferramenta. Suas colunas registram proporções que serviam para dividir terras, projetar templos, escavar canais e erguer estruturas com precisão que ainda hoje surpreende engenheiros. Aqueles números não foram escritos para contemplação teórica — eram instrumentos de trabalho, aplicados a problemas concretos do cotidiano de uma civilização que compreendia, com exatidão intuitiva, a linguagem da forma e da medida.

O que mais intriga é a ausência de rascunho.
Não há hesitação, não há traço de tentativa ou erro. A placa não marca o nascimento de uma ciência, mas o auge de uma tradição matemática já amadurecida — o registro final de um conhecimento que vinha sendo aperfeiçoado por gerações.

É como abrir um manual de instruções sem prefácio, onde só resta o miolo do saber. Um vestígio de um sistema completo, cujas origens se perderam sob o pó das civilizações desaparecidas.

Essa constatação leva a uma pergunta inevitável: de onde veio esse domínio?
Terá sido uma criação isolada da Babilônia, ou o eco distante de algo ainda mais antigo, transmitido por vias que o tempo apagou?

Cada linha gravada na argila é uma senha para decifrar a lógica de um mundo desaparecido. Canais de irrigação alinhados como traços sobre a terra, muros que não se desviam um único grau, templos erguidos segundo proporções que continuam harmoniosas milênios depois. Tudo indica o domínio de uma geometria silenciosa, rigorosa, que não deveria existir naquela época — a matemática dos construtores do impossível.

E se esta tábua for apenas a ponta de um corpo de conhecimento que o planeta engoliu?
Se este fragmento sobreviveu por acaso, quantos outros se desfizeram antes mesmo de termos nomes para descrevê-los?


O SILÊNCIO DAS RUÍNAS

Se aquela pequena tábua chegou até nós, foi por puro acaso. Quantas outras, talvez mais completas, não se dissolveram em cinzas, soterradas por enchentes, incêndios ou pelos tremores que fizeram gigantescos pedaços de terra se abrirem, engolindo cidades inteiras e tudo o que nelas se pensou ou sonhou? O esquecimento não foi apenas humano — foi planetário.

Durante milhões de anos, asteroides colidiram com o planeta, alterando sua composição e atmosfera; movimentos tectônicos rasgaram a crosta da Terra, continentes se separaram, e o clima oscilou entre infernos vulcânicos e eras glaciais. O planeta inteiro reescreveu sua própria geografia, apagando as marcas do que veio antes. O que restou das antigas civilizações talvez esteja hoje submerso sob camadas de rocha, gelo e silêncio.

As enchentes do Eufrates, a erosão das margens, a fragilidade da argila diante da água e do fogo — tudo isso foi apenas a superfície visível de um esquecimento muito maior. Um esquecimento que não se mede em séculos, mas em eras.

E se tanto já se perdeu apenas por obra da natureza, imagine o que se extinguiu com o incêndio da Biblioteca de Alexandria, quando séculos de saber acumulado foram consumidos em poucos dias. O maior eclipse da memória humana.

O silêncio que se seguiu não é conspiratório. É geológico, cósmico, inevitável.
O que chamamos de História é apenas o que sobreviveu às catástrofes, o que o acaso poupou. São fragmentos dispersos, restos de um diálogo interrompido entre o homem e o conhecimento.

Durante séculos, arqueólogos e assiriólogos analisaram a tábua sem chegar a conclusões definitivas. Os cálculos eram complexos demais, e o padrão permanecia obscuro.
A situação começou a mudar apenas com o avanço das Inteligências Artificiais.
Com sua capacidade de processar milhões de combinações em segundos, os algoritmos compararam colunas, refizeram proporções e identificaram simetrias invisíveis ao raciocínio humano.

Foi assim que se comprovou o que antes era apenas hipótese: a Plimpton 322 não é uma lista de exercícios, mas um sistema matemático organizado, capaz de gerar triângulos retângulos perfeitos por meio de razões inteiras — algo que a matemática grega só alcançaria muito tempo depois.


O PESO DO ESQUECIMENTO

A redescoberta do conteúdo da Plimpton 322 não resolve o mistério. Apenas o amplia.
Saber que há mais de quatro mil anos já existia um sistema matemático avançado levanta mais perguntas do que respostas. De onde veio esse conhecimento? Como pôde surgir em uma época em que o mundo conhecido ainda tateava entre o mito e a observação empírica?

A explicação mais plausível continua sendo a mais simples: o desaparecimento é a regra, não a exceção.
Civilizações inteiras já foram apagadas por fatores que escapam ao controle humano — erupções, secas, terremotos, variações climáticas, guerras, quedas de asteroides com consequências cataclísmicas. Cada catástrofe reconfigura a história e redefine o que chamamos de “origem”. E isso sem contarmos a possibilidade da autodestruição — a mais sofisticada de todas as forças de aniquilação.

A Plimpton 322, nesse contexto, é menos um objeto arqueológico e mais um lembrete.
Ela mostra que o conhecimento humano é intermitente. Surge, floresce e desaparece, como se o próprio planeta se encarregasse de apagar seus rastros periodicamente. O que hoje chamamos de progresso talvez não seja uma linha ascendente, mas uma sucessão de retomadas — lampejos ocasionais de algo que a Terra insiste em soterrar. Como se, após cada quase extinção, os sobreviventes tivessem que começar tudo de novo.

Mesmo com toda a capacidade de cálculo da era digital, a verdade é que sabemos pouco sobre o que veio antes. O avanço tecnológico não dissolveu o enigma — apenas mudou o ponto de observação.
Agora somos nós que olhamos para o passado como quem observa ruínas através de uma lente de precisão, sem perceber que também seremos ruína.

O que a Plimpton 322 revela não é apenas a sofisticação dos antigos, mas a vulnerabilidade do próprio saber humano.
Tudo o que produzimos — nossos arquivos, bancos de dados, linguagens e máquinas — também depende da estabilidade da matéria, e esta, cedo ou tarde, cede.

No fim, talvez o verdadeiro ensinamento daquela tábua de argila seja este:
não há conhecimento definitivo.
Há apenas tentativas de registrar o que o tempo, invariavelmente, tratará de apagar.


ECOS DE CIVILIZAÇÕES ESQUECIDAS

A Plimpton 322 é apenas um fragmento — uma pista, não uma conclusão. Mas o que ela sugere é difícil de ignorar: a possibilidade de que o conhecimento humano tenha atravessado ciclos, desaparecido e renascido diversas vezes sob novas formas de sociedade.

Cada escavação arqueológica revela vestígios que parecem não se encaixar na linha cronológica oficial: instrumentos, estruturas, mapas ou registros cuja complexidade excede o que se esperava de seu período histórico. Essas anomalias não provam a existência de civilizações avançadas, mas tampouco permitem descartá-la.

A ciência trabalha com evidências, e o que falta são justamente elas — as provas materiais que o tempo se encarregou de destruir.
Se considerarmos os milhões de anos de atividade geológica e o número incontável de catástrofes que remodelaram a crosta terrestre, é racional admitir que boa parte do que existiu simplesmente não deixou rastros acessíveis.
Tudo o que conhecemos é o que restou em uma fina camada arqueológica — uma fração do passado que sobreviveu por acaso.

Em um planeta ativo e instável, a ideia de uma civilização anterior à nossa não é fantasia, mas estatística.
Basta observar a rapidez com que a própria humanidade moderna produz, expande-se e ameaça colapsar.
Se um evento global apagasse a atual infraestrutura — energia, dados, cidades —, em poucas dezenas de milhares de anos quase nada restaria. O que, sob a perspectiva de bilhões de anos, poderia ter acontecido milhares de vezes — sempre a partir do zero.

É plausível, portanto, imaginar que o mesmo possa ter ocorrido antes.
Talvez civilizações anteriores tenham alcançado patamares de conhecimento que não chegaram até nós.
Talvez o que chamamos de “avanço tecnológico” seja apenas o mais recente capítulo de um livro muito mais antigo, escrito e reescrito sob diferentes formas de existência.

A Plimpton 322, nesse cenário, deixa de ser uma curiosidade e passa a ser um vestígio — um eco remoto de uma mente humana que já compreendia, com impressionante clareza, princípios que acreditávamos modernos.

No fim, é possível que estejamos apenas redescobrindo o que já foi descoberto antes.
E que a verdadeira história da civilização não seja uma linha, mas uma espiral que gira sobre o mesmo ponto, a cada era, tentando se lembrar de quem foi.


O ENIGMA DE ARGILA

A Plimpton 322 é, em essência, um lembrete material de algo que o tempo tenta nos ensinar desde o início: o conhecimento não é cumulativo, é cíclico.
Cada geração acredita avançar, mas apenas recupera fragmentos de algo que o planeta já arquivou e apagou inúmeras vezes.

A tábua babilônica prova que a inteligência humana já foi capaz de formular conceitos matemáticos complexos em épocas em que isso parecia impossível.
Ela demonstra que o pensamento racional antecede o registro formal da história e que a mente humana, em qualquer era, tende a buscar padrões, ordem e previsibilidade — os mesmos impulsos que hoje orientam nossas tecnologias.

As Inteligências Artificiais e as novas tecnologias, com certeza, nos trarão muitas novidades em todas as áreas.
A Plimpton 322 é apenas uma pequena peça de um quebra-cabeças que, quem sabe, poderá nos apresentar novas descobertas sobre nossa verdadeira origem.

Edmir Saint-Clair