Éramos uma turma grande quando chegamos ao restaurante japonês na Av. Niemeyer, em frente ao colégio Stella Maris. Uma noite quente de sábado estava começando.
Nesse verão, a Casa
encantada tinha hóspedes ingleses; Geoff, Dave, Katrina e Helen. Amigos e
músicos londrinos muito queridos, ingleses com alma carioca, que vieram
conhecer o Brasil. Nenhum lugar é melhor para isso, no Leblon, do que o
Condomínio dos Jornalistas.
Dentre os amigos que foram
se acomodando no “reservado” (era charme da época esses espaços reservados nos
restaurantes japoneses do Rio) estava meu amigo Bode. Bode não, Carlinhos. Que
Carlinhos? O Bode.
Para entrar no reservado é
necessário tirar os sapatos e deixá-los do lado de fora da porta. Todos acomodados, saquê já pedido, a conversa
foi ficando cada vez mais animada e divertida.
Os ingleses não falavam uma
palavra de português e os brasileiros nenhuma de inglês. Claro que alguns de
nós falávamos as duas. Mas, no correr da noite e dos saquês isso se mostrou não
ser importante.
O Bode era dos que arranhava
um inglês sofrível e, a despeito disso, passaria a noite inteira em altos papos
com o Geoff, que apesar de não entender português se defendia bem na mímica. O
Bode era um cara que se pode chamar de “safo”. Se virava, nem sempre com
sucesso, na maioria das situações perigosas. Tinha uma coragem de aventureiro,
era um desbravador nato. E, trapalhão... Era o único da galera com coragem para
saltar de qualquer altura, às vezes a aterrissagem é que não era o que se pode
chamar de sucesso. Mas, do chão nunca passou. Não foi à toa que sua vocação o
transformou num voador profissional algum tempo depois.
Todos ali dentro daquele
reservado interagiam como amigos de infância. Alguns eram. Impressionante como
saquê melhora a fluência em inglês e português. Os ingleses estavam rindo como
se entendessem as piadas, e os brasileiros também!
Em mim, a sensação era que a
cidade inteira estava sorrindo. Eu estava morando em Londres desde o ano
anterior e vim passar o carnaval no Rio de Janeiro trazendo os ingleses.
O Mito, meu parceiro musical
e amigo de infância do Leblon, também morava em Londres e veio no mesmo bonde.
Olhei em volta e todos ali
naquele reservado me eram muito queridos. Minha irmã estava ali, rindo e
transbordando alegria como sempre. Meu compadre Dedé, Mito, Tuca e nosso
querido Bode. Amigos importantes uns para os outros. O tempo se encarregaria de
me mostrar que aquele se tratava de um momento raríssimo e, por isso,
inesquecível.
Fartos de comida e saquê
pedimos a conta para partir para outra etapa da noite. Conta paga abrimos a
porta do reservado, nos sentamos nuns degraus para calçar os respectivos
sapatos. Todos calçados, de pé. Menos o Bode que, com um dos pés do tênis na
mão, andava pra lá e pra cá procurando o outro pé. A princípio ninguém se deu
conta, mas com o passar do tempo, e da procura, nada foi achado... O Bode foi
ficando nervoso e revirava tudo em volta, em busca do tênis Reebok importado de
cano alto, última moda no Rio em 1986.
O gerente do restaurante
mobilizou outros funcionários e a procura foi caprichada. E, nada foi achado. O
gerente não sabia o que fazer ou falar, a gente ria de sentir dor na barriga e
o Bode revoltado com o roubo do pé do tênis dele. Quando mais ele e os
funcionários se movimentavam pelo restaurante mais engraçada a cena ficava.
O gerente chegou a perguntar
para ele:
− O Senhor Tem certeza que
chegou com o tênis aqui?
− Não Senhor, eu saí de casa
calçando só um pé do tênis, olha como fica bonito!
O gerente e todos tiveram
que concordar que não fazia sentido. E rimos mais ainda, e até ele mesmo riu
quando respondeu. Era tão surreal a situação que o gerente ficou amigo e riu
junto.
Por fim, o gerente deu-lhe um cartão e prometeu que se o tênis não fosse encontrado o restaurante o reembolsaria. O Bode era um cara do bem e da paz, e quando estávamos nos dirigindo aos carros estacionados ele já estava de bom humor e rindo junto com a gente. A imagem dele, naquela noite, caminhando com um pé calçado e o outro descalço é inesquecível. Coisas que só aconteciam com o Bode. Bode não, Carlinhos. Que Carlinhos? O Bode.
- Edmir Saint-Clair
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