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Nunca
mais vi um Lacerdinha.
Nem
ouvi falar. Pensando bem, faz muitos anos, décadas, que não tenho notícia. O Lacerdinha
é um inseto do tamanho de um mosquito pernilongo, só que preto, mais encorpado e sem as pernas longas. E o Lacerdinha não transmitia
doenças.
Não era um mosquito, era um inseto pretinho que infestava o Leblon, principalmente as transversais, numa certa época do ano. Minhas lembranças deles estão ligadas à época em que morava na Rua José Linhares.
No final da tarde, eram cigarras cantando e Lacerdinhas caindo das árvores. Às vezes nos olhos. Ardia e coçava muito! Deixava os olhos inchados e mãe preocupada.
Eles
eram atraídos por roupa clara, principalmente as amarelas. Por vezes, atingia
os olhos e provocavam irritação e ardência intensas.
Esses minúsculos insetos - (mediam poucos milímetros) - eram chamados de Lacerdinha, em referência a um antigo político carioca, Carlos Lacerda, governador no tempo do estado da Guanabara.
Descobrimos que eles ficavam nas folhas mais novas das árvores, que ainda estavam enroladas. A gente as desenrolava e surgiam um monte de Lacerdinhas em seu interior.
Para
mim, os Lacerdinhas despertam uma lembrança marcante. Uma história que me
provoca vergonha até hoje. Eu tinha uns 5/6 anos e era acostumado a brincar na
rua. Havia muitas crianças, tanto no meu prédio quanto nos vizinhos.
Naquele tempo no Leblon, a maioria das casas
tinha uma empregada que morava na favela Praia do Pinto ou na Cruzada São
Sebastião. Quando, por algum motivo, a empregada da minha mãe levava o filho
para o trabalho, no caso a minha casa, ele se tornava um amigo a mais, que
passaria o dia brincando comigo, meu irmão e nossos outros amigos.
Seu apelido era Bilico, o nome era Bernardo, o dia era sábado, 10 de maio de 1969, véspera do Dia das Mães. Dona Celestina e minha mãe estariam ocupadas preparando o almoço comemorativo do dia seguinte.
Bilico era muito gente boa, mais novo que eu, um ano. e mais velho que meu irmão apenas alguns meses. Era negro com os dentes grandes e brancos. Era tímido, mas engraçado, falava de uma maneira diferente que eu achava legal. Quando Bilico passava o dia lá em casa fazia tudo junto comigo e meu irmão; assumia a nossa rotina, almoçava, tomava banho, brincava, lanchava, descia para brincar conosco e era sempre divertido.
Nesse
dia, Bilico chegou cedo tomou café conosco e descemos pra rua pra brincar.
Sábado não tinha aula e o dia era todo nosso.
Era época de Lacerdinha.
Dentre os garotos que brincavam na rua, tinha um que era especialmente assustador para mim e meu irmão. O Arlindo era mais velho, mas não andava com os garotos da idade dele. Andava conosco, dois a três anos a menos. Nessa idade, isso faz uma grande diferença. Gostava de nos intimidar e bater. Ninguém ficava com pena quando o pai dele aparecia chamando-o, sempre gritando e batendo nele. Nós Também tínhamos medo do pai dele.
Nessa
tarde, estávamos catando Lacerdinhas nas árvores. Abríamos as folhas e
ficávamos observando os Lacerdinhas se mexendo lá dentro.
De repente, o Arlindo pega uns Lacerdinhas no dedo e enfia com violência no olho do Bilico, que observava, curioso, bem de pertinho.
− Tá com fome? Toma neguinho!
Arlindo falou aquilo com mais raiva do que lhe era peculiar, todos tomamos um susto. E ele nem conhecia o Bilico...
Bilico
começa a coçar o olho e a chorar com a ardência.
Todos os meninos começaram a rir. Menos eu, meu irmão e o Bilico, que saiu andando e chorando na direção da portaria do nosso prédio.
Lembro que foi um sentimento estranho e desconfortável que eu nunca havia experimentado antes (anos mais tarde eu saberia que o nome era constrangimento), e que nunca me saiu da memória. Eu senti vergonha de alguma coisa que não sabia o que era.
Bilico não subiu para nossa casa, ficou num canto da portaria chorando baixinho. Falou que se chegasse lá em cima chorando e com o olho inchado sua mãe iria brigar com ele. Não queria que ele arrumasse confusão com os "filhos das madames".
Depois de algum tempo, ele parou de chorar e subimos. Pela escada. Naquela época, os empregados e "pessoas de cor" só podiam subir pelo elevador de serviço. Bilico só subia pela escada. Quando chegamos em casa, a primeira coisa que Dona Celestina viu foi o olho do filho inchado e muito vermelho. Não falou nada, mas fechou a cara. Chamou o Bilico para a cozinha e de lá só o vimos quando eles foram embora, bem mais tarde. Lembro bem da cara de choro dele se despedindo da gente.
Aquele sábado me marcou para sempre.
Naquela mesma noite, um misterioso e devastador incêndio irrompeu e tomou conta da favela vizinha. Queimou por toda a madrugada e por muitas horas seguintes, consumindo tudo e deixando centenas e centenas de família sem teto e sem nada. Era dia 11 de maio de 1969, Dia das Mães.
A casa
da Dona Celestina e do Bilico pegou fogo e virou cinzas, junto com toda a
favela da Praia do Pinto.
Não sobrou nenhum barraco de pé.
Dona Celestina nunca mais voltou, e o Bilico nunca mais veio passar o dia conosco.
Tenho
muitas saudades deles e me lembro dos dois com muito carinho. Até hoje...
- Edmir Saint-Clair