Sexta-feira,
saída do metrô, estação Jardim Oceânico, 7h da noite, chove. Ele se maldiz pela
escolha de ter deixado o carro estacionado e ter pegado o metrô para ir ao
centro. Sua reunião não durou nem uma hora e o custo do estacionamento não
compensou a trabalheira das baldeações. Para completar, esqueceu o guarda-chuva
no vagão do trem. Estava aguardando não sabe o que, para iniciar a corrida de
uns 200 metros até o local onde seu carro está estacionado, quando um senhor
grisalho, de uns 70 anos, segura seu braço embaraçosamente e lhe fala com uma
dicção perfeita e expressando-se de forma absolutamente clara e pausada:
— Daqui a exatamente
duas semanas, numa mesma sexta-feira, viaje de carro para Nova Friburgo e vá
até Murí, ao local da entrada da estrada de terra que leva até o lugar onde
você foi mais feliz na sua vida. Você sabe onde fica. Não falte, não haverá outra
chance. Esteja lá no horário que você sabe qual será.
O Senhor acabou de falar e desceu para a estação do metrô,
passando pela roleta e desaparecendo entre a multidão no horário de maior
movimento.
Flávio demorou alguns segundos tentando entender o que fora
aquilo. Olhou para fora e percebeu que a chuva dera uma arrefecida e resolveu
correr para seu carro.
Entrou, ajeitou-se no banco, ligou o carro e só então
começou a perceber o quanto aquele estranho evento o tinha afetado. Sentiu-se
muito estranho. Não havia dúvidas sobre nada do que ocorreu naquele encontro
surreal. Para organizar os pensamentos, refaz passo a passo os momentos, desde
que desceu do vagão do trem e chegou à marquise na saída da estação. Lembrou-se
que aquele Senhor não estava dentro da estação quando o abordou, estava vindo
de fora no sentido de quem vai entrar no local.
Fato número dois; ele jamais havia visto aquele homem na
vida. O homem também não falou o nome dele.
Teria aquele Senhor o confundido com alguém?
O problema é o que aquele estranho falou.
O trajeto até em casa, foi feito pela solitária e deserta
praia da reserva biológica, entre a Barra da Tijuca e o Recreio dos
Bandeirantes.
Quanto mais pensava no que aquele velho havia falado, mais
fazia sentido. Pensou que aquele evento, um tanto sombrio, logo sairia de sua
cabeça e o assunto estaria encerrado.
Nos dias seguintes, aquele encontro não saiu de seus
pensamentos e a cada dia ele ia se lembrando de mais um evento específico que
remontava aqueles lugares em volta de Friburgo. Até que se lembrou que o velho
havia falado especificamente a palavra Murí...
Gelou, por que não havia feito logo a ligação?
A palavra Murí dava significado a tudo que aquele senhor
havia falado. É impressionante até onde uma memória emocional profunda é capaz
de nos remeter...
Negou-se o
quanto conseguiu a fechar aqueles elos que se encaixavam perfeitamente. Mas,
não havia a menor chance de alguém, além dele próprio saber sobre aquele
passado. Não que fosse segredo, era apenas algo muito pessoal e íntimo perdido
no tempo e que ele nunca revelara a ninguém.
Aos 67 anos, não se tem dúvidas de quando se foi feliz.
Ele não tinha, haviam
sido muitas as ocasiões, temporadas longas, outras mais curtas, mas a
felicidade sempre dava o ar e o enchia com suas graças.
Mas, há algum tempo havia perdido a paixão pela paixão.
Preferia o amor pelo amor e, nessa mudança, optara por não aceitar prêmios de
consolação e, também, não se prestar a sê-lo.
Por isso, sentia-se muito bem vivendo sozinho.
Os dias seguintes foram de lembranças, todas cada vez mais
convergentes e direcionadas pelo que o estranho velho anunciou.
Laura voltava, diariamente, aos seus pensamentos, a partir
do momento em que ele aventou a possibilidade de cumprir a estranha missão.
Encontrá-la exatamente naquele lugar era algo absolutamente improvável.
Mas, o que ele deveria encontrar naquele lugar?
Já o identificou como a entrada da estrada de terra que leva
ao local onde ele e Laura tiveram uma casa de campo, por alguns anos. Segundo o
velho, ele deveria ir até lá e ficar esperando.
Esperando o quê?
Laura, com certeza, não seria. Ela estava casada e feliz. Há
mais de vinte anos não tinha notícia alguma dela. E o que adiantaria
encontrá-la, no meio da noite, naquele local ermo e deserto?
Que coisa mais louca... sem sentido...e absurda.
Ele se sentia mal toda vez que chegava nessa parte daquele
pensamento cada vez mais obsessivo e ridículo. Na idade dele, muitos homens já
começam a apresentar algum grau de debilidade senil.
Quem era aquele velho maluco que o deixou tão perturbado? Em
verdade, se deu conta que o encontro no metrô ocorreu entre dois velhos, ou
seja, a probabilidade de um dos dois estar gagá aumentava muito...
A verdade é que não precisaria de nada daquilo para aumentar
a confusão mental em que viveu nos últimos anos. As consequências da pandemia
da Covid-dezenove só não foram mais graves e profundas porque ele ainda estava
vivo. Mas, não tinha certeza se isso havia sido um bem ou um mal. A vida não o
atraía o suficiente para esperar ou desejar qualquer coisa dela.
Entendia perfeitamente como Nietzsche deve ter se sentido
após anos mergulhando nas profundezas da alma humana.
Entretanto, discordava do alemão, o nada era plenamente
suportável após o que ele já havia experimentado. Na verdade, havia minutos tão
insuportáveis que, o simples fato de não haver dor física ou mental, já lhe
gerava prazer. Não é agradável se dar conta de que o nada é o melhor estado em
que podemos nos encontrar. E, o seu nada significava, também, sem ninguém.
Impressiona, como um ser humano é capaz de ir reduzindo suas
necessidades de sobrevivência a ponto de precisar de muito pouco e de ninguém
mais.
Mas, esse esvaziamento externo cria um correspondente vazio
interno. As coisas vão perdendo o valor, a importância e o sentido. Pouco a
pouco nada, nem ninguém, faz falta. As profundezas humanas são traiçoeiras e
solitárias, quem as frequenta com assiduidade perde o contato com o mundo que
vive na superfície.
Não tinha mais dúvida alguma de que iria subir a serra até o
local onde aquele senhor lhe disse que deveria estar.
Finalmente, A NOITE tão esperada chegou.
Saiu do elevador direto na garagem, escura e úmida como
sempre.
Entrou no carro, pareou o smartphone, clicou na playlist
especial que havia preparado para essa viagem com as mesmas músicas que ouvia
quando ele e Laura subiam a serra.
Começava ali sua grande viagem, com as mesmas músicas de 30
anos atrás;
Nova Friburgo tem um grande valor sentimental para ele. Além
das melhores lembranças, sempre teve uma simpatia gratuita por aquela cidade e
suas redondezas. Murí, Lumiar e São Pedro da Serra são cidadezinhas lindas,
pacatas e românticas. O céu de inverno e das frias manhãs de sol esbranquiçado
é de um azul forte, definitivo.
A ele, fala à alma.
Tinha consciência de que se alguém soubesse o verdadeiro
motivo da viagem naquele dia e naquela hora, duvidariam de sua sanidade. Ele
próprio vinha duvidando seriamente desde que encontrou aquele senhor na saída
da estação do metrô, há duas semanas. Às vezes, se perguntava se aquele
encontro teria realmente acontecido.
Quando entrou na ponte Rio-Niterói, o fluxo dos carros já
não sofria reflexo algum do trânsito das sextas-feiras e corre livre como nas
viagens com Laura. O banco do carona é dela, naquele momento ele percebe que
nunca deixou de ser.
Não consegue descrever o que está sentindo. Tantos anos
passados e a sensação do carro correndo na ponte é improvavelmente agradável...
como pôde viver os últimos anos se arrastando na vida...como é bom sentir
alguma coisa, como é bom lembrar de Laura. Quase consegue conferir, de novo,
algum sentido a palavra felicidade. Naquele momento pôde, ao menos, imaginar.
Como é gostoso subir a serra à noite, com esse céu
completamente iluminado pela lua cheia. É mágico.
Para ele não importava mais o que haveria no fim daquela
viagem, o trajeto em si já lhe tirara todo o torpor mórbido que acompanhava
seus dias.
Mas, alguma coisa muito estranha ocorreu e ainda estava
acontecendo até aquela noite. Sente que a cada curva suas energias e
pensamentos se excitam progressivamente e de uma maneira inexplicável. Ele
sente a adrenalina circulando por todo o corpo. Teve medo para onde aquela
estrada o estaria levando. Para onde sua loucura o levaria naquela noite?
A depressão, a infelicidade profunda e a desesperança
poderiam ter fabricado aquele velho na estação do metrô?
Poderiam.
Afinal, o que ele lhe disse não faria sentido para mais
ninguém a não ser a ele mesmo. O que aumentava a chance de ser produto de sua
própria mente. Ele era teimoso e já que chegou até ali, iria até o fim. E, se
fosse loucura, pelo menos não haveria ninguém para testemunhar seu surto.
Quando ultrapassou o posto da polícia rodoviária, no alto da
serra, ele estava quase todo encoberto pela forte neblina sempre presente
naquele horário. Às duas horas da manhã o local está completamente deserto.
Pouco depois de uma grande curva à esquerda ele vislumbra a
entrada de terra no mesmo sentido, pouco antes da entrada para Lumiar. É ali.
Ele para no largo onde a estrada de terra que leva até a
Casa Azul começa.
Desliga o carro e sente seu coração acelerar ainda mais. Não
tem mais idade para suportar aquele ritmo cardíaco por muito tempo. Salta do
carro buscando um pouco mais de ar, as pernas estão formigando depois da
viagem.
O local está completamente deserto, como era de se esperar,
ali não há nada. Volta para o carro e deita o banco, tentando compassar a
respiração e controlar aquelas descargas de adrenalina.
O suor é tão intenso que encharca sua camisa, suas
extremidades estão frias e azuladas. Uma dor aguda percorre todo seu braço
esquerdo, a dor no ombro esquerdo aumenta e paralisa seu braço.
Faz um esforço e consegue alcançar os dois comprimidos que
restam na cartela. Toma-os e se deita no banco reclinado. Após um pico de dor
aguda no ombro, que reflete intensamente no peito, sente um relaxamento
profundo e apaga.
De repente, acorda assustado, ainda no mesmo local, e vê um
vulto saindo da pequena estrada caminhando em sua direção.
É Laura sorrindo, de braços abertos para recebê-lo.