ORIENTADOR LITERÁRIO

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A ETERNIDADE DE CADA UM

 

“No fim, somos quem acreditamos ser.”

— Edmir Saint-Clair

Todos os dias, ao adormecer, cruzamos uma fronteira invisível entre o real e o imaginário — onde o tempo obedece a outras regras. Geralmente, a transpomos em milionésimos de segundos — um átimo entre estar desperto e adormecido. Uma região no limiar entre a vigília e o sono, outra dimensão, onde nossa consciência se altera; onde não há tempo, há apenas a eternidade. Uma distorção diária da lógica temporal.

Essa experiência cotidiana nos oferece um vislumbre do que proponho como hipótese central deste ensaio: e se, nos momentos finais da vida, nossa mente for capaz de criar sua própria eternidade? Uma realidade subjetiva onde o tempo, liberto das amarras físicas, se dilata até o infinito, permitindo que cada consciência vivencie uma eternidade moldada por suas crenças mais profundas. Esta é a jornada reflexiva que convido você a percorrer — uma investigação sobre como a mente humana, em seu último ato de criação, pode transcender os limites convencionais do tempo e da realidade.

Aquela sensação de estar caindo e despertar no susto é resultado de permanecer tempo demais nesse estado intermediário. É a presença densa de algo que nos puxa de volta e nos faz acordar como se tivéssemos nos perdido pelo caminho.

O sonho com quem já partiu é mais do que sonho: é um reencontro sem tempo, capaz de provocar uma emoção sentida no corpo físico.

A mente humana cria realidades com tal precisão que não podemos afirmar se o mundo como cada um de nós o percebe é real ou apenas uma construção moldada por crenças, memórias e por fatores individuais e imponderáveis.  Isso se torna evidente em fenômenos como alucinações em que pacientes com síndrome de Charles Bonnet podem ver padrões e figuras complexas que não existem; ou em experimentos de privação sensorial, onde após poucas horas em tanques de isolamento, voluntários começam a criar experiências sensoriais completas sem estímulos externos. Talvez o mundo seja apenas uma versão pessoal — moldada pelo conjunto de crenças de cada um. E é bem possível que seja exatamente assim.

É justamente esta extraordinária capacidade da mente de construir realidades alternativas que fundamenta minha teoria sobre os momentos finais da consciência, que propõe enfrentar o tema com a mente aberta. Essa hipótese parte do pressuposto de que a mente cria sua própria realidade — portanto, ela pode criar seu próprio infinito, sua própria eternidade, já que é capaz de criar um tempo próprio.

Nos sonhos, o tempo se comporta de maneira radicalmente distinta da realidade desperta. Sagas inteiras podem ser vividas em poucos minutos. Distâncias geográficas são transpostas sem qualquer lógica física — tudo isso com a nitidez de quem realmente está vivendo aquele universo surreal naquele momento. Essa vivência do tempo subjetivo indica que a mente, em estados alterados, escapa às leis convencionais da temporalidade.

Durante o sono REM, o cérebro cria narrativas não lineares, condensando experiências inteiras em períodos muito breves de tempo real. Esse fenômeno encontra eco na teoria da relatividade de Einstein, que afirma: o tempo não é absoluto, mas relativo ao observador. Dois relógios idênticos, expostos a campos gravitacionais ou velocidades diferentes, marcarão tempos distintos.

Um exemplo notável dessa dilatação temporal aparece no filme Interestelar (2014), em que astronautas visitam um planeta próximo a um buraco negro supermassivo: uma hora ali equivale a sete anos na Terra. A ciência por trás do roteiro, supervisionada pelo físico Kip Thorne, demonstra como o tempo pode ser drasticamente alterado por diferentes contextos físicos. Esta representação cinematográfica não é apenas um exercício de ficção científica, mas uma metáfora poderosa para compreendermos o que pode ocorrer em nossa própria mente nos momentos finais: assim como a gravidade extrema distorce o tempo físico próximo ao buraco negro, as condições neurológicas únicas do cérebro em seus últimos instantes de atividade podem criar uma dilatação subjetiva do tempo, transformando segundos objetivos em uma experiência de eternidade para a consciência que a vivencia.

Sob estresse extremo — como em acidentes graves ou experiências de quase-morte — o cérebro entra em estado de hiperprocessamento, e o tempo, sob a ótica do paciente, desacelera drasticamente. Segundos ganham densidade e podem ser percebidos como longos minutos.

Tudo isso sugere que o tempo, quando entregue exclusivamente ao nosso cérebro e sem referenciais externos, pode ser remodelado — e, nos instantes finais, talvez seja dilatado até se assemelhar a algo como uma eternidade subjetiva. Que só exista dentro da gente.

Há quem afirme que estados alterados de consciência possam acontecer com pessoas que conseguem permanecer nesse espaço entre estados de realidade, onde os contornos do tempo e do eu já não são claros. Nessa outra dimensão onde não existe tempo como o conhecemos. Onde a mente é o último resquício da vida. Onde as conexões neurais criam realidades alternativas.

Se a mente é capaz de gerar uma ilusão tão real a ponto de transgredir a noção de tempo, não seria improvável que pudesse criar sua própria eternidade. Estudos científicos recentes indicam que o cérebro humano pode continuar ativo por um tempo significativo após a morte clínica. Em um caso documentado pela Universidade de Western Ontário, no Canadá, foi detectada atividade cerebral persistente por cerca de dez minutos após a declaração oficial de morte. Nesse intervalo, foram registradas ondas delta — as mesmas que ocorrem durante o sono profundo.

É possível que, sem o apoio dos cinco sentidos e liberta de estímulos externos, a mente proceda uma distorção daqueles últimos dez minutos, transformando-os em uma experiência de “tempo sem fim” — onde suas projeções mais profundas possam, ao menos subjetivamente, parecer absolutamente reais. Trata-se de uma hipótese coerente com o que já sabemos sobre a percepção temporal em estados alterados de consciência.

Estudos sobre experiências de quase-morte (EQMs) revelam que pacientes frequentemente relatam uma “revisão da história de vida” — na qual assistem às próprias cenas, revivem acontecimentos e até os experimentam sob a perspectiva de outras pessoas envolvidas. Essa revisão, que parece abranger uma vida inteira, ocorre em frações mínimas de tempo real. Em pesquisa da Universidade de São Paulo com 350 brasileiros, 51% dos que estiveram em risco de morte relataram EQMs, muitas vezes com intensa distorção da percepção temporal.

Alguns estudos sugerem que, pouco antes da morte, o cérebro entra em um estado de hiperconectividade, onde redes neurais relacionadas à memória e à consciência ficam extremamente ativas. Nesse momento, circuitos neurais que normalmente funcionam de forma isolada começam a interagir de maneiras incomuns, gerando experiências mentais únicas — muitas delas ainda pouco entendidas pela ciência — nas quais a percepção do tempo pode mudar bastante.

 Quando estamos privados de estímulos externos e focados apenas nas nossas experiências internas, é possível que o cérebro vivencie seus últimos minutos como um tempo subjetivamente expandido. Talvez, nesse momento, a pessoa experimente uma espécie de eternidade pessoal, algo único e totalmente particular.

Se, em sua mente, você for fiel ao que acredita — de acordo com suas crenças mais profundas — ela moldará sua eternidade com base nessa visão íntima de si mesmo. Esse será o seu julgamento final — e o juiz será você.

O que mais me encanta nesta hipótese é sua capacidade de acolher a todos. Não importa se a mente for moldada por fé religiosa, por tradições culturais, por dúvidas agnósticas ou pelo ceticismo ateu — todas as crenças encontram nela um lugar legítimo. É uma hipótese inclusiva por essência: cada um viverá a eternidade que foi capaz de imaginar.

Com base nos fenômenos neurológicos pesquisados, proponho a hipótese filosófica de que, se acreditar verdadeiramente que reencontrará um ente querido após a morte, sua mente poderá criar essa experiência subjetiva nos momentos finais de atividade cerebral. E você os reencontrará.

Por isso, é sensato cuidarmos de nossas mentes — das percepções que cultivamos e da autoestima que nos sustenta. É ela quem irá moldar nosso inferno ou nosso paraíso, onde viveremos essa última etapa: a experiência final. O que a mente acredita, as crenças mais enraizadas sobre si mesmo, a forma como avaliamos nossas próprias atitudes ao longo da vida e a coerência com que nos conduzimos pelos diversos aspectos da existência — tudo isso será a matéria-prima da eternidade que cada um experimentará.

Preparar a mente para que, no instante decisivo, ela seja capaz de criar uma realidade subjetiva — íntima, pessoal e intransferível — que nos revele a visão do nosso paraíso ideal talvez seja o mais profundo dos desafios humanos. Esse ‘trabalho’ diário e incansável para nos tornarmos seres humanos melhores, por fim, poderá ser recompensado. Por nós mesmos.

No último momento de vida, será nossa mente que construirá a eternidade que cada um criou para si. Esta hipótese, além de oferecer uma perspectiva sobre os momentos finais da consciência, carrega profundas implicações para como vivemos hoje. Se existir uma experiência post mortem subjetiva, ela será moldada por nossas crenças mais enraizadas e pela forma como avaliamos nossas próprias ações, então cada escolha cotidiana ganha uma dimensão transcendente.

Viver com autenticidade e integridade não seria apenas uma questão de ética social ou realização pessoal, mas um investimento na qualidade da nossa própria eternidade subjetiva. A empatia que demonstramos, as conexões verdadeiras e profundas que estabelecemos, e a honestidade com que enfrentamos nossas falhas – tudo isso está tecendo, fio a fio, o tecido da realidade que iremos viver em nossos momentos finais.

Esta perspectiva representa uma profunda revolução existencial: o julgamento que historicamente sempre veio "de fora" – de deuses, instituições ou da sociedade – passa a ser realizado pelo próprio indivíduo que, para si mesmo, é onipresente e onisciente. Somos, simultaneamente, réus e juízes de nossa própria existência, com acesso privilegiado não apenas aos nossos atos, mas às intenções e circunstâncias que os motivaram.

Esta forma de conceber nossos momentos finais nos convida a viver nosso dia a dia de maneira mais responsável, consciente e plena, e a cultivar tanto a paz interior quanto exterior, assim como a autoaceitação. E se transforma não somente num caminho para uma vida mais significativa, mas numa preparação para a eternidade subjetiva de cada um.

 Se o juiz final de nossas ações seremos nós mesmos, talvez, o verdadeiro desafio não será temer um julgamento externo, mas viver de maneira verdadeiramente digna aos nossos próprios olhos, para que possamos, no final, rever nossa história e encontrar nela nossa essência e motivos para termos orgulho da vida que construímos.

A eternidade de cada um começa muito antes do momento final - ela se constrói em cada instante de consciência, em cada escolha, em cada ato de amor e empatia. E talvez esta seja a sabedoria mais profunda que podemos tirar de tal hipótese: a eternidade não será somente um destino duvidoso, será a hora de cada um colher o que plantou dentro de si mesmo. 

 Edmir Saint-Clair

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BIBLIOGRAFIA

 Estas são as referências (pesquisas, estudos e obras) nas quais minha teoria está ancorada. Abrangem estudos sobre experiências de quase-morte, percepção temporal distorcida, atividade cerebral nos momentos finais, estados de sonho REM e conceitos de física relacionados à relatividade do tempo.

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