1 e meia da manhã, praia do Leblon.
No início da década de 1970 , todas as
praias da zona sul eram palco de um espetáculo muito, mas muito diferente dos
fogos de Copacabana e das festas sofisticadas dos dias atuais. Naqueles anos,
as praias eram tomadas pelos terreiros de umbanda.
A partir do entardecer do dia
31 de dezembro, começavam a chegar as comitivas que vinham para preparar seus
altares, e cada grupo iniciava a montagem de seu próprio terreiro na areia.
Cercavam o pedaço escolhido
com palmas brancas fincadas na areia que dessa forma, delimitavam o domínio.
Cavavam pequenos buracos, no fundo dos quais acendiam as velas que, assim,
ficavam protegidas da brisa que sempre sopra à noite, vinda do mar. Eram
centenas e centenas de pequenas velas e suas luzes ondulantes, iluminando de
forma mágica as areias, de uma praia do Leblon onde a iluminação pública amarelada não
tinha nem 10 por cento da luminosidade atual. Aquela imagem marcou minha
memória de criança, uma mistura entre a realidade e a ficção de um filme
sobrenatural.
Os pais e mães de santo, junto com seus cambonos e devotos, enfeitavam e preparavam seus terreiros de forma extremamente caprichosa, e imbuídos de uma devoção profunda e explícita.
O início da arrumação coincidia com o final das tradicionais peladas de futebol de areia, disputadas no Leblon, entre homens alcoolizados, vestidos com roupas íntimas de mulher, sob o batuque animado de uma bateria de samba organizada e regida pelo genial percursionista Oscar Bolão, bateria essa, que pouco depois deu origem a Banda do Leblon, que, por sua vez, passou o bastão para o Bloco Empurra que Pega dos dias atuais.
Esse intermezzo, do início do
pôr do sol até umas 8 horas da noite, era muito curioso.
O que acontecia, simultaneamente,
durante o lusco fusco deste dia especial, era absurdo e surreal.
Os devotos já estavam finalizando
os trabalhos de preparação dos altares, e iniciando as cerimônias que
atravessariam as madrugadas e iriam até os primeiros raios de sol do primeiro
dia do ano. Enquanto, ao mesmo tempo,
acontecia a maior bagunça da pelada de futebol de areia,
másculo-feminino, com muito consumo de álcool e de tudo mais que pode haver de
profano; estavam todos ali, lado a lado, convivendo harmoniosamente. O divino e
o profano de mãos dadas, comemorando, felizes, cada um ao seu jeito.
Naquela época, o réveillon era comemorado como se fosse uma noite de carnaval normal. E não acontecia nas ruas ou nas praias. Os bailes concorridíssimos aconteciam nos clubes, hotéis e danceterias espalhadas por todos os bairros do Rio.
Era muito diferente do que é
hoje, no século 21.
As praias eram tranquilas, era para onde as famílias iam depois de romper à meia-noite em casa.
Enquanto os adultos corriam para as festas, os pais com filhos pequenos iam passear na praia em frente de casa mesmo, a da Leblon no nosso caso, onde ficávamos caminhando e observando os rituais de umbanda e candomblé que aconteciam nas areias.
Era um terreiro a cada 3 ou 4 metros, todos cheios de gente esperando para tomar passe das pretas e pretos velhos incorporados. Era o sincretismo religioso acontecendo ali na frente de todos. A classe média, em sua maioria católica, buscava bênçãos em outra religião, ali representada pela classe mais humilde e oprimida da cidade; os pobres e pretos. Era a única ocasião que me lembro de ver pessoas brancas abaixando a cabeça humildemente para receber o passe da doméstica que trabalhava em sua casa. Ali, os papéis se invertiam.
Eu era bem pequeno e toda aquela movimentação tão extraordinária se apresentava ainda mais fantástica para a imaginação fértil de uma criança.
Fiquei muito impressionado com as pessoas que, de repente, do nada, mudavam de voz e começavam a agir estranhamente, minha mãe me explicou que aquilo é quando um espírito entra numa pessoa em transe. Me deu medo, mas a curiosidade era muito maior. O cheiro de charuto e de defumadores só não era mais forte por causa da brisa marinha. Mas, marcou em minha memória olfativa.
Meus pais compraram algumas
palmas brancas e entraram no sincretismo reinante. Meu pai deu uma palma para
cada filho e fomos jogá-las no mar, para Iemanjá. Foi divertido molhar os pés
pulando sete ondas e jogando as flores no mar. Quando estávamos voltando da
beira para a calçada, começou uma confusão. Um homem grande e forte começou a
gritar, visivelmente alterado e bêbado.
Ele olhava de forma desafiadora para os devotos dos terreiros enquanto gritava ameaçadoramente:
- Tudo isso é palhaçada!! Um monte de gente ignorante... fazendo teatrinho... fingindo "baixar o santo" ... só para enganar os trouxas...
Passou por um terreiro,
abaixou-se e pegou uma imagem do local de oferendas e saiu andando de forma
provocativa, enquanto os fiéis dos terreiros apenas o observavam sem
esboçar reação ou intenção de revide. Apenas olhavam fixamente para aquele homem abominável. E fez-se um silêncio que eu nunca ouvira antes...As ondas do mar se calaram.
Só o arrogante não percebeu
que, naquele momento, algo de muito estranho começava a acontecer...
Ele, imaginando ter dominado o ambiente, continuou bradando ainda mais impropérios quando percebeu que a imagem que roubara era exatamente a de Iemanjá.
Ele estava vestido todo de branco e talvez não soubesse que essa tradição se deve exatamente a Iemanjá.
Todas as pessoas daquele pedaço da praia pararam para ver aquele desequilibrado, arrogante, histérico e com atitudes tão desprezíveis, desafiar a fé de todos bradando em voz alta:
- Desafio Iemanjá a fazer alguma coisa para provar que existe...
E foi caminhando em direção ao mar, gritando que ia afogar Iemanjá em suas próprias águas.
Todos em volta estavam parados, acompanhando atentamente aquele espetáculo bizarro. Aos poucos, o burburinho foi silenciando, os atabaques dos terreiros parando, enquanto o homem adentrava o mar em direção à arrebentação, onde as ondas, muito pequenas naquela noite, estouravam sem oferecer risco algum. Um banco de areia fez com que o homem ultrapassasse a arrebentação ainda com água abaixo dos ombros.
De repente, surgiu uma onda do nada, assustadoramente grande e forte, e o engoliu. Apenas uma onda foi grande naquela semana inteira e foi, exatamente, aquela.
Quando após alguns minutos, o homem não voltou à tona, o burburinho na areia começou a virar gritos cada vez mais intensos e vários homens passaram correndo e mergulharam na água para socorrê-lo.
Meus pais não aguardaram o desfecho e nos tiraram
rapidamente dali, nos levando de volta para casa. Mas, fiquei com aquilo na cabeça por dias.
Pouco tempo depois, soube que não haviam achado o corpo daquele homem arrogante e
desprezível.
Aquele episódio me marcou
profundamente.
Aconteceu bem na minha
frente e me arrepio toda vez que me lembro.
Eu vi e todo mundo viu.
Edmir Saint-Clair


