COACH LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro. Um profissional técnico, especializado em criação, um professor de escrita e um parceiro, ao mesmo tempo. Experimente, é terapêutico e libertador. Perpetue as histórias que só você tem para contar.
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UM SONHO DE NATAL

 

    A bicicleta, no meio daquela grande vitrine natalina, chamou-lhe a atenção. Era vermelha e modelo BMX, parecida com a primeira bicicleta que dera ao filho. Há mais de 30 anos. A lembrança foi automática e dolorida.

Na noite da véspera de Natal, perto do horário de fechar, os shoppings se tornam o maior dos infernos para quem está ali apenas para comprar um sifão da pia, que estourou. Até a loja de materiais de construção se apropriou do Papai Noel e colocou um pobre velhinho fantasiado para vender vasos sanitários e Box blindex em 12 vezes, porque é Natal.

Ele desistira de tentar gostar de Natal havia tempo, na verdade, não suporta a data. Gosta de passá-la como se não houvesse.

De tudo que já havia perdido, o contato com o filho era o que mais lhe doía. Esse seria o décimo ano, o décimo natal desde que haviam rompido. Nem uma troca de palavra sequer durante toda essa eternidade. Tentara uma reaproximação de diversas maneiras, durante todos esses últimos anos, mas nunca obtivera resposta alguma. 

Quando saiu, o shopping já estava praticamente fechado, assim como todo o comércio do bairro. Existe apenas uma noite, no Rio de Janeiro, em que os bares, restaurantes, farmácias e todo o resto do comércio fecha; é na noite de natal.

    Voltando para casa, pelo caminho mais longo, foi vendo o tráfego ir se reduzindo, os pontos de ônibus se esvaziando e pensou que não trocaria o sifão da pia naquela noite. Queria apenas dormir. Definitivamente, o natal não lhe faz bem.

Ele sabe, já passou várias dessas meias-noites na rua, por livre vontade. Saía de casa alguns minutos antes e passava a meia-noite na rua. Apenas para ver sua própria solidão tomar conta de tudo e imperar soberana. Não tinha mais medo de encará-la. Ao contrário, tornaram-se bons companheiros.

Chegou ao seu condomínio, parou na entrada da garagem e, enquanto aguardava que o porteiro lhe abrisse o portão, ouviu A voz inconfundível:

- Feliz Natal pai. Vamos passar juntos?

Era seu filho.

Edmir Saint-Clair

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UM NATAL INESQUECÍVEL

 

           Há alguns anos não festejava o Natal na minha casa encantada, o apartamento 1004 do Amarelo, no Condomínio dos Jornalistas, no Leblon. Apesar de morar no Rio, sempre passava as festas com a família, em Brasília. Naquele ano não fui.

No dia 24 de dezembro, acordei angustiado, era a primeira vez que não sentia a agitação característica desse dia especial acontecendo na casa dos meus pais. A árvore de natal armada na sala com direito a pisca-pisca ligado dia e noite. Esse ano a luzes não estavam piscando nem tinha árvore e eu senti falta. Eu já me achava adulto, mas, com certeza ainda não era. Aquele dia estava sendo uma experiência totalmente nova para mim. Um dia como eu nunca havia vivido antes.

     Para suprir aquela inquietude, resolvi chamar uma galera para levar um som lá em casa, depois das comemorações natalinas familiares. O combinado foi começar por volta de uma hora da manhã.

Desde cedo, a agitação no meu andar começou, como sempre, com as portas abertas dos apartamentos da Dona Letícia e da Dona Élida, exalando cheiros deliciosos de assados e outros quitutes. Logo que saí no corredor fui intimado a comparecer às duas ceias, que, no meio da noite, se fundiam numa só. Prometi que não faltaria, seria a primeira parada depois da ceia na casa da Dona Lila, mãe do Dedé, que já havia me convidado desde que soubera que eu passaria sozinho.

O transcorrer da véspera de Natal no Condomínio dos Jornalistas era uma festa desde que o dia nascia.

Chegavam pessoas de todos os cantos para os encontros familiares. Pessoas que, normalmente, não frequentavam as áreas comuns o faziam nesse dia, e o clima de festa se instalava.

O bar do Seu Antônio e da Dona Maria ficava lotado. Seu Joaquim não parava um minuto no sobe e desce pelos apartamentos do condomínio, abastecendo-os de cerveja e refrigerantes. Até o forno industrial do bar era cedido, gratuitamente, para alguns moradores e ficava lotado de assados.

 Era possível sentir no ar a harmonia que reinava.

 Minhas lembranças são de uma comunhão geral. Não havia quem passasse e não fosse recebido com um Feliz Natal, ao qual sempre retribuía contagiado pelo mesmo entusiasmo. Era dia de desejar felicidades a qualquer pessoa que entrasse no Jornalistas.  

A sensação era de que os corações floresciam. Em nenhum outro dia do ano havia tantos sorrisos.

Passar na casa dos amigos para as felicitações era uma tradição do Jorna e, naquela noite, a comilança foi interminável. Voltei para a minha casa, completamente empanturrado das melhores comidas de Natal que se pode imaginar. Fiz um tour gastronômico por todos os pratos típicos da culinária brasileira. Acho que foi naquele dia que comecei a ter barriga...

Apesar da saudade, naquele primeiro Natal que passei sem minha família, várias outras mães, pais e irmãos me acolheram. Não me senti sozinho um minuto sequer nem naquele dia, nem naquela noite.

Passadas as comemorações familiares, era hora da festa na minha casa encantada, o 1004. O primeiro a chegar foi o Dedé com um digestivo salvador. Logo vieram Abelha, Bode, Mito, Marquinho e a violada começou cada um no seu instrumento e eu com o lendário violão do Sig.

Não demorou para que os astros da noite também chegassem: Babalu, Kássio, Mário Japão, Cláudio Urubu e o Tuca. E foram chegando mais amigos e amigas e mais amigos de amigos e mais amigas de amigas e gente que eu nunca tinha visto antes. Porque era natal.

Fechamos a noite todos cantando e tocando juntos, acompanhando nosso amigo Cláudio Urubu em sua música mais bonita, em parceria com Raul Seixas, declarando ao mundo que íamos todos “... ficar com certeza Malucos Beleza”.

Acho que ficamos.

Edmir Saint-Clair

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O CONSELHEIRO NOTURNO

 



O último ano havia sido difícil. Aos 32 anos, divorciado, uma filha de nove anos e um emprego que lhe permitia apenas o básico, havia desistido de seus sonhos. Sua vida estava parada, havia tempo. De tudo, somente a filha valera a pena. Enquanto pensava, caminhando pela av. Afrânio de Mello Franco em direção à Lagoa, naquela quase 1h da madrugada de uma terça-feira chuvosa, tudo o que sentia era pena de si mesmo.

Caminhava vagarosamente, afinal não estava indo a lugar algum, aliás, nunca ia. A insônia, que há tempos o acompanhava, com certeza o faria chegar atrasado ao trabalho na manhã seguinte e isso lhe renderia mais uma bronca do chefe, e o círculo vicioso mais uma vez se autoalimentaria, tirando-lhe os sonos futuros.

Tudo o que desejava, era poder escrever suas estórias. Mas, como e por onde começar? 

Tudo o que ele havia escrito até agora, não passava de textos baratos, cheios de clichês, que quando muito impressionavam alguma moça mais desavisada. No fundo, ele acreditava que poderia produzir algo bom, mas, já não tinha certeza. Sentia-se um velho em fim de carreira nenhuma. Pensou na filha e um nó subiu-lhe a garganta, soluçou, sem chorar, um suspiro profundo, como se seu corpo expulsasse o excesso de tristeza que já não comportava. Ele vinha caminhando e virou na Rua Humberto de Campos e passou pela porta da 14ª Delegacia de Polícia no piloto automático. A rua estava tão deserta quanto seu espírito. Não via saída.

A solidão soava como paz. Para onde seu pensamento fosse lá estava a angústia que aumentava a ansiedade que aumentava a velocidade com que sua mente lhe aterrorizava com pensamentos fatalistas. Sentia raiva, ansiedade, angústia e muita pena de si mesmo. Não tinha para onde correr nem a quem recorrer. A rua deserta estava em perfeita sintonia e a chuva cessara. Apenas pingos caiam das folhas das árvores encharcadas. Não estava frio, nem fazia calor. Não estava nada.

Acendeu o baseado e entrou na Rua José Linhares. O entorpecimento que a maconha lhe causava era um alívio grande, a sensação do primeiro trago nublava os pensamentos. Os tragos seguintes realçaram os barulhos da chuva, a iluminação amarelada e parcialmente coberta pelas árvores encorpadas. O prédio que ocupa a esquina entre as duas ruas, Humberto de Campos com José Linhares, tem um formato em L, e uma marquise em frente à entrada da porta de madeira da garagem, uma boa proteção contra a chuva. E, é escuro. Um canto na rua. Fumando o baseado ali, no canto e encolhido, estava se sentido o melhor que poderia naquele momento. Percebeu um vulto chegando quando já bastante próximo e se assustou. Era o porteiro que parou, fitando-o sem falar. Ele se sentiu intimidado e saiu da entrada da garagem.

Sentir-se intimidado não era novidade. Seus pais não o deixavam esquecer esse sentimento. Era um exilado, um estorvo que ocupava um quarto sempre de portas fechadas. A sensação era de constante ameaça. Velada, obscura e onipresente. Uma prisão sem grades, uma tortura sem ferros. Pensou que a única coisa em comum entre aquelas três pessoas, que poderiam ser uma família, era a crença de que ele não era nada. E nunca seria. Ele deu errado. Sua vida era um erro.

Caminhou até a metade do quarteirão e parou em frente a um prédio em construção, onde estava mais escuro e não tinha porteiro, encostou-se num carro estacionado ao meio fio. 

Foi impossível não notar o carro preto reluzente, de linhas futuristas, os vidros completamente negros bloqueavam completamente a visão de seu interior. Era o tipo de carro que gostaria de ter, se pudesse.

 Mas não podia. Após o divórcio, havia voltado a morar com os pais e a probabilidade era de que jamais sairia de lá.

E, mais uma vez, pensou em algo que há tempos lhe seduzia: a morte. Desta vez, a ideia passou a ser plano imediato. Havia acabado de comprar uma caixa de cada um de seus ansiolíticos e remédios para dormir, na única farmácia que lhe vendia sem receita, com ágio, é claro. Geralmente, lembrou, esse é um dia razoável do mês. Sentia-se um pouco menos inseguro. Ter seus medicamentos à mão é o que havia de mais próximo de um estado menos tempestuoso. Sua segurança e consolo eram as pílulas. Lembrou-se do outro lado da moeda, dos dias em que os remédios estavam no fim, e o coquetel de sentimentos e sensações de angústia, ansiedade, insegurança e medo aumentavam, pela simples possibilidade de ficar sem os medicamentos. Não ter as receitas reduzia sua possibilidade de compra a uma única farmácia. Sem eles era impossível dormir, impossível viver. A simples lembrança daquela sensação causou-lhe um pico de angústia que lhe rasgou o peito.

Seus olhos choraram o choro de sempre. A rua estava escura como sua alma.

Aquela angústia intransponível lhe remete a um pensamento que vinha amadurecendo nas noites insones.

− Trinta comprimidos de ansiolítico mais trinta comprimidos de soníferos vão me livrar de tudo isso... Pensou. Dormir, a coisa que ele mais gostava e mais fazia. E assim, tudo estaria resolvido.

 Enquanto tirava um trago maior, sentiu a porta do carro em que estava encostado, abrir. Sua reação automática foi esconder o baseado. Ele vivia escondendo tudo de todos.

Um homem bem-vestido, com um curioso chapéu preto que lhe cobria o rosto, aproximou-se. O som de sua voz pareceu-lhe familiar quando o homem lhe pediu para fumar de seu baseado.

A princípio, ele teve receio, mas algo lhe soava confiável naquele homem. Manteve a cabeça abaixada para esconder as lágrimas. O estranho pegou o baseado e, enquanto prendia a fumaça, dirigiu-se a ele, sem mostrar o rosto.

- “Sei exatamente o que você está sentindo agora...”

Ele levantou a cabeça e tentou ver o rosto do homem. O estranho evitou o olhar e continuou.

- “Não se preocupe, você não irá fazer o que está pensando, eu lhe garanto.”

Puxou mais uma vez o cigarro fazendo com que a brasa reluzisse e uma cortina de fumaça tornasse ainda mais difícil a visão de seu rosto.

As palavras daquele homem o estavam assustando, afinal como poderia ele saber o que estava pensando. Não poderia, pensou, ele deveria estar apenas se utilizando de clichês, pois não seria difícil alguém perceber sua angústia. O estranho continuou.

− “Não tenha receio, eu sei que tudo isso parece e é muito estranho. Mas, esse momento vai mudar profundamente a sua vida, para melhor. O tempo se encarregará de lhe confirmar... apenas acredite nisso...

E continuou a falar-lhe, como se soubesse de cada pensamento que lhe ocorrera naqueles momentos que antecederam aquele inusitado encontro.

O estranho continuou falando calma e pausadamente, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto, incontroláveis. Ele mantinha a cabeça baixa tentando esconder a profusa emoção. O estranho, de chapéu preto, facilitava sua tarefa evitando olhar em sua direção, sem parar de falar. Parecia saber exatamente o que fazia ali.

Foram interrompidos por uma jovem que irrompeu de algum lugar que ele não percebera.

− “Vamos pai?”

A voz feminina, fez com que ele se virasse a tempo de ver uma mulher de cabelos bem lisos, longos e castanhos entrando no carro, não pode ver-lhe o rosto, mas o som daquela voz provocou-lhe uma sensação desconhecida, ele não soube identificar aquela sensação.

O carro arrancou sem que o homem se despedisse. Não tivera tempo de perguntar-lhe nada. Na verdade não emitira uma palavra sequer. Realmente, pensou, não falei absolutamente nada e ele sabia tudo. 

As lágrimas e o choro haviam parado. Ele estava quase catatônico. Estático. Sem reação alguma. Fumou o resto do baseado e, quando acabou, ainda não conseguia ordenar o raciocínio.

Quem seria aquele estranho que pareceu conhecê-lo tão bem?

O que estaria ele fazendo parado ali, em frente a um prédio em construção à 1 hora da madrugada, como se o estivesse esperando?

Talvez estivesse esperando a filha, que ele não viu de onde surgira. Essa lhe pareceu uma boa resposta a essa pergunta, mas e as outras? Sua cabeça começou a rodar, e por pouco ele não caiu. Após recuperar-se, a primeira coisa que percebeu foi que a angústia havia desaparecido. Completamente. A ideia do suicídio começou a perder sentido. De alguma forma, aquele estranho modificara seu pensamento. Foi para casa procurando respostas para um monte de perguntas que ele mal conseguia formular e muito menos responder. Por fim, já em casa adormeceu profundamente, como não acontecia há anos.

No dia seguinte, passou a manhã toda no trabalho, fazendo contas e chegou à conclusão que caso fosse demitido, o dinheiro que receberia por conta de indenizações, salário desemprego e etc., o manteria por alguns meses e ele teria algum tempo para para tentar alguma coisa que lhe trouxesse real prazer. Sentia-se mais motivado, e aquele estranho tinha tudo a ver com isso.

As palavras daquele homem o haviam influenciado de uma forma diferente, e ele não conseguia entender por que elas haviam penetrado tão profundamente em seu espírito.

O Conselheiro Noturno, como passaria a chamá-lo, demonstrou tanta segurança no que falara que o contagiou de uma forma definitiva. A cada instante, a partir daquele dia, todas às vezes que batia o desânimo, pensava no Conselheiro Noturno.

Começou a visitar algumas agências de publicidade, oferecendo-se como redator, mas a princípio nada parecia promissor o bastante, por fim conseguiu um estágio, não remunerado, numa pequena agência. A partir daí, sua vida começou a mudar. Mas, era apenas o começo de uma longa caminhada. 

⸎⸎

Havia-se passado 25 anos e ele, agora, é diretor de criação de uma prestigiada agência de propaganda, com dois livros publicados e um terceiro em fase de acabamento. Tem um carro que lhe parece semelhante ao do Conselheiro Noturno, não igual, afinal, o seu é do ano e o Conselheiro viera há mais de duas décadas, mas estava satisfeito em ter um que ele achava pelo menos parecido. De resto, a lembrança daquela noite nunca se desvanecera.

O dia, hoje, é muito especial. Sua filha acabou de se mudar para o apartamento dado por ele e escolhido por ela. Vão sair juntos para jantar e comemorar o primeiro dia dela na casa nova. Uma ocasião única, com a qual sonhara muitas vezes.

Ele chega à agência um pouco mais cedo que seu costume, não quer se estender nos compromissos do dia. O dia está cinza e chuvoso, mas lhe parece radiante. Dias de chuva no Rio podem ser muito bonitos e agradáveis.

Seu celular toca, é sua filha pedindo o carro emprestado para cumprir algumas tarefas da produção teatral na qual está trabalhando. Combinam que ela deixará o carro na garagem dele ao final do dia.

Resolve almoçar sozinho perto da agência, em Ipanema. O tempo está chuvoso e, depois de comer, sente vontade de caminhar até a Praça N. Senhora da Paz. O local está molhado e, por isso, deserto. Espana as gotas do banco e senta. Instantaneamente, lhe vem à cabeça o Conselheiro. Uma estranha sensação lhe invade, não tem ideia do que seja mas, já sentira uma vez, uma única vez. O Conselheiro Noturno parecia rondá-lo.

Já passava da meia-noite, quando sua filha lhe telefona dizendo que ficara arrumando algumas coisas e que por isso perdera a hora. Ela o deixou à vontade para remarcarem, caso achasse que estava muito tarde, poderiam deixar o jantar para o dia seguinte, mas ele insiste, aquele era um dia único na vida dos dois, o primeiro em que ela era dona da sua própria casa. E reconfirmaram o compromisso, ele iria pegá-la em casa.

Ele para em frente ao prédio da filha e fica no carro, esperando que até que ela desça. 

De repente, sente a parte traseira do carro abaixar, alguém se apoiou no veículo. Sente um cheiro de maconha e um arrepio intenso percorre sua espinha, irradiando-se por todo o corpo. 

Só então ele percebe que está no mesmo lugar onde estava há exatos 25 anos. Olha para trás e vê, no banco traseiro, um chapéu preto que sua filha havia esquecido quando saíra à tarde com o carro.

Naquele momento ele soube quem era o Conselheiro Noturno e o que tinha que fazer. 

Abriu a porta do carro, pegou o chapéu e foi cumprir seu destino.  

 - Edmir Saint-Clair


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NOSSOS ENCONTROS

 


Ela sempre me esperava em absoluto silêncio.

 Ao sentir minha presença, sua respiração tornava-se mais intensa. Minha pulsação aumentava, tornava minha respiração quase difícil. A saudade aflorava forte. Me aproximava devagar, me aconchegando em seu corpo, sem tocá-la. Nada mais excitante do que a intenção de tocar sem tocar.

 O toque anterior ao toque. As sutilezas são a essência do prazer.

Não a tocava, apenas contornava seu rosto com o meu, a nano milímetros de sua pele, sem tocá-la, afastava seus cabelos com o nariz, até alcançar o pescoço. Sentir seu hálito fazia meu cérebro funcionar em outra sintonia, sensibilidade muito além da flor da pele.

 As sensações do tato, olfato, paladar e audição se acentuavam, se misturavam e nos transformavam. Cheiros, sons, texturas, sabores. A fome. Muita fome.

 Esse aproximar e tocar dos corpos fazia desaparecer o espaço entre eles, alma engolindo alma, corpo devorando corpo. Só o prazer nos alimentava. Luta feroz. Meu prazer era te levar à pequenas mortes. Sua fome animal dizia que íamos morrer, e morríamos, muitas vezes. E morríamos de novo. Colados como um quebra-cabeças perfeitamente encaixado. 

A vida resolvida para sempre.

Nossos encontros eram assim.

 Edmir Saint-Clair

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A DESPEDIDA


  Eu tinha 17 anos e era feliz. 

O verão dourava a pele e a vida corria fácil. Até o dia em que meu pai chegou do trabalho e falou sem a menor cerimônia:

− Vamos morar em Brasília.

Ouvi claramente, mas a ficha demorou a cair. Ninguém naquela mesa de jantar esboçou reação alguma. O silêncio foi sepulcral, respirei fundo, levantei-me e percorri o caminho até sair pela porta de casa, anestesiado. Estava em choque. O pensamento seguinte foi nos amigos, nas meninas e nos meus planos, e deles não constava morar em Brasília. Não sabia como lidar com aquela enxurrada de emoções e sentimentos que fervilhavam por todo meu corpo.

A partir daquele instante minha vida mudaria para sempre e, por algum motivo, eu percebi isso com uma clareza assustadora.

 Resolvi que não contaria aos amigos. Não por enquanto. De preferência nunca.

Não sabia por quê. Talvez por receio de que eles não sentissem a mesma tristeza que eu estava sentindo.

Mas a notícia terminou se espalhando.

O primeiro a saber me surpreendeu por sua reação, ficou triste e demonstrou. Fiquei mais triste ainda, não esperava essa reação, ele era um gaiato, fazia piada com tudo, mas dessa vez não fez.

As coisas estavam mudando.

Os amigos e amigas foram cúmplices de momentos de tristeza e outras emoções desconcertantes e inéditas que me aconteceriam dali pra frente, típicos daqueles melodramas adolescentes baratos que eu detestaria não ter vivido pessoalmente.

Se por um lado a tristeza era presente, por outro, nunca havia me sentido tão querido por todos.

Na noite véspera de Natal, depois de passarmos a meia-noite cada um em sua respectiva casa dos pais, fomos nos encontrar na casa do Marquinho. Cada um de meus amigos, em separado, me falou alguma coisa carinhosa que marcou aquela noite de forma indelével.

Antes de voltar pra casa, caminhei sozinho pela praia da minha cidade chamada Leblon. Caminhei por minha infância, meus primeiros amigos na Rua José Linhares, na Bartolomeu Mitre, por minha adolescência no Campestre, no Santo Agostinho, no Clipper, no BB lanches, Balada Sucos, Petit Fours, Pizzaria Guanabara... Cada rua com suas muitas histórias. Todas, partes inseparáveis de mim.

O tempo começou a passar mais rápido e nunca mais passaria devagar.

Dia da partida.

Pedi a todos que não fossem ao aeroporto, que se despedissem de mim ali mesmo, na praia. Há semanas eu me despedia, estava cansado, muito cansado. O voo para Brasília estava marcado para o final da tarde.

Acordei cedo e a primeira coisa que pensei foi nos meus óculos escuros. Me demorei na cama, me demorei no banheiro, me demorei na esperança de que o tempo se demorasse também.  

Desde o dia em que soube que iria embora, comecei a prestar mais atenção em tudo e em todos que me rodeavam a vida toda e que até aquele momento eram apenas parte da paisagem diária. Desde o porteiro até os portugueses do bar, Seu Joaquim e Seu Antônio. Não posso esquecer-me da Dona Maria!

Parecem os nomes mais óbvios para personagens caricatos de portugueses donos de Botequim no Rio. Mas, esses são de pessoas absolutamente reais que tinham exatamente esses nomes. E, são ainda mais peculiares do que qualquer personagem fictício já criado. Uma das coisas que eu sempre achei curioso demais neles, era o fato de, durante anos a fio, encontrar com eles tarde da noite, depois de fecharem o bar, andando muito lentamente pela rua principal do Leblon, e sempre na mesma formação; o Seu Antônio na frente carregando uma sacola, seguido pela Dona Maria, a uns dois passos atrás, sempre carregando mais sacolas do que ele. Um hábito curioso e estranho. Eles não andavam juntos. Eles andavam separados, indo para o mesmo lugar. Eram casados e já aparentavam idade.

O terceiro sócio do bar, o Seu Joaquim, era um capítulo à parte. Completamente lesado. Ele era tão confuso que alguns sacanas davam uma nota de cinco para pagar algo de 10 e ainda levavam troco.

O certo é que naqueles dias tudo e todos haviam adquirido um significado especial e já faziam parte da minha saudade. Parei no bar para comprar cigarros e até a atrapalhação do seu Joaquim com o troco, que sempre me irritava, desta vez me provocou ternura. Cheguei à praia mais cedo que o de costume e caminhei pela areia, perto do mar, até o final do Leblon. Como sempre fizera, mas nunca como naquela manhã.

Eu estava começando a trilhar um caminho que ainda não conhecia.

Havia passado toda minha vida naquelas areias sob os olhares dos gigantes de pedra que, agora, pareciam estar tristes por minha partida. Os gigantes eram o 2 Irmãos, meus irmãos...

Olhei, tentando reter aquela imagem, fotografá-la, aprisionar na memória cada detalhe daquelas montanhas sagradas. Fixar-me naquela paisagem, imprimi-las na parte mais profunda do meu ser, me agarrando a elas como se fossem desaparecer no minuto seguinte.

Caminhando de volta, comecei a encontrar os amigos. Ritinha foi a primeira a me encontrar, ela me fizera sentir amado naquele verão, quando o sol dourou nossa pele e nos fez feliz. Meus amigos foram chegando aos poucos e, um a um, sentaram-se ao meu lado, calados. Cada um com suas pranchas de surf, mas ninguém dentro d'água. Uma incomum formação visual de garotos e pranchas de surf coloridas e alinhadas na beira do mar da praia do Leblon. Todos calados ao meu lado.

Despedi-me e fui para casa, estava muito difícil ficar ali.

Chegou à hora. Entrei no carro e fomos para o Aeroporto do Galeão, eu, meus pais e meus irmãos. Ao chegar à entrada, a primeira coisa que vi foram meus amigos, tinham ido de surpresa no carro do Bode e na Kombi lotada do porteiro de um dos prédios do Condomínio dos Jornalistas. Foi um dos momentos mais emocionantes que vivi em toda minha vida. Como foi bom vê-los. Uma emoção profunda. Inesperada, comovente e inesquecível.

Eu sabia que estava vivendo um dos momentos mais marcantes da minha vida. Uma consciência da importância daquele momento, da eternidade daqueles instantes.

 Meu desejo era abraçar todos ao mesmo tempo e nunca mais ir embora dali viver para sempre no saguão do Aeroporto do Galeão. Mas, eu tinha que ir embora.

A vocês, meus amigos e amigas, minha mais profunda gratidão por me fazerem sentir tão querido e tão amado. Vocês, assim como os gigantes de pedra, estarão para sempre em minhas lembranças e em minha alma eternamente.

A você, doce Ritinha, obrigado pelo desmaio no aeroporto, por seu carinho e pelo seu lindo coração. Muito Obrigado pelo amor de todos vocês.

Uma semana depois, eu estava de volta!


- Edmir Saint-Clair




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ANJOS DO FUTURO – 1 - CLARA

       Finalmente ele saiu.

Clara não dormira nem um segundo durante a noite, não mexeu sequer um músculo para que Gustavo não percebesse. Ficou imóvel, até que ouviu a porta da rua bater, já de manhã. Ele, finalmente, saiu.

Sentiu-se aliviada e tudo o que pensava era sair o mais rapidamente possível dali. Foi até o banheiro e, em frente ao espelho, chorou quando viu seu reflexo. Todo o lado esquerdo de seu rosto estava inchado e com um hematoma que quase não a permitia abrir o olho. A primeira coisa em que pensou foi no que falaria para seu filho quando chegasse em casa. O horror diante da própria imagem a deformava ainda mais. Sentou-se no vaso sanitário e chorou, compulsivamente, até cansar. O salgado das lágrimas ardeu-lhe nos olhos e lábios. Tomou um banho, foi até a cozinha, pegou gelo e aplicou no rosto. Sentada no sofá da sala, começou a tentar concatenar seus pensamentos.

Não conseguia parar de pensar no filho, sentia pena dele por ter uma mãe que se deixou chegar aquele ponto. O choro voltou. Mas, ela precisava pensar enquanto o filho ainda estaria no colégio, o que lhe dava algumas horas.

 Pensou na Lei Maria da Penha e sentiu, a princípio, haver uma saída, entretanto, sobreveio-lhe o pavor das repercussões. Se denunciasse não haveria mais como esconder aquilo de sua mãe.  Não era novidade, e ela havia prometido que da próxima vez denunciaria o filho da puta. Tirou a opção da denúncia da cabeça, naquele momento, não tinha estrutura psicológica para suportar o que sobreviria.

Clara ainda tinha três longas horas para pensar no que faria até o horário de saída do colégio do filho, e ficou mais calma.

 Com certeza Gustavo não a encontraria mais ali, aquela era a última vez que ele a havia agredido.

 Pensou de novo no filho. Andou pela casa procurando, mas, além de um biquíni e um despertador, nada mais ali ela queria levar.

              Ligou para a mãe e inventou uma viagem a negócios para São Paulo e que ficaria o resto da semana por lá, e pediu para que a avó pegasse o neto na saída do colégio. Era comum ele passar dias com os avós, eles moravam a 1 quarteirão de sua casa, não haveria problema. Ela só voltaria quando seu rosto estivesse desinchado. Seu filho não a veria naquele estado, esta resolução lhe provocou um grande alívio. Nada era mais importante do que poupar seu filho. A Lei Maria da Penha podia esperar até que ela pensasse um pouco melhor.

 A alegria de não causar um trauma no filho deu-lhe forças para continuar a fuga. Ela precisava arrumar um jeito de ficar sozinha.

 Júlia, era sempre a primeira quando precisava de uma amiga. Quase desistiu quando lembrou que, necessariamente, teria de encontrar-se com ela, que a veria machucada.

Teve muita vergonha.

 Mas afinal, eram amigas. Tomou coragem e ligou para o escritório. A amiga atendeu-a com a mesma alegria de sempre. Clara mal conseguia falar segurando o choro.  Júlia, prontamente, colocou-se, e a sua casa em São Pedro da Serra, à disposição da amiga. Não perguntou nada, não precisava, nada era novidade. Clara ligou para a confecção e deixou instruções para que sua gerente, Carla, cuidasse de tudo. Ela tinha sorte pelo menos com sócias e gerentes.

              Pegou a bolsa e mais uma sacola com poucas coisas e saiu sem olhar para trás. Trancou a porta e jogou a chave por debaixo, disposta a nunca mais voltar.

                                                **************

         São Pedro da Serra fica a 6 Km de Lumiar. A estrada toda é deslumbrante. Principalmente, o trecho de acesso a Lumiar.  Às 5 horas da tarde o clima é sempre ameno na serra de Nova Friburgo, bem diferente do calorão do Rio de Janeiro. Clara sente pena de estar chegando, queria viajar mais, faz muito bem à sua alma ver a estrada ficando para trás, a sensação de estar indo cada vez mais para longe de tudo. Ver o mundo ficando para trás, pelo espelho retrovisor.

 Quando chegou a Lumiar quase parou num bar para comprar mais cigarros e tomar um refrigerante, mas, lembrou-se do rosto inchado e teve vergonha. Seguiu direto para São Pedro da Serra. Chegou em casa, cozinhou um macarrão, fez o prato e chorou quando, na primeira garfada, o sal do queijo parmesão fez arder o corte no lábio. Chorou mais um pouco e depois dormiu, sem jantar.

                                                *****************

      Clara acordou cedo, preparou o café e foi tomá-lo na varanda, sem pressa, sentada na rede.  A varanda da casa de Júlia era voltada para a montanha e uma pequena estrada de terra passava bem em frente.

 Deixou-se hipnotizar pela calma e tranquilidade daquela clara manhã. Ficou olhando fixamente por algum tempo, hipnotizada pela beleza campestre. A brisa soprava fraca e gostosa, e os sons da manhã soavam perfeitos. Fechou os olhos para ouvi-los mais atentamente. Com os olhos fechados reproduziu a paisagem em sua mente. Os sons dos pássaros e da manhã, ela os sentia mais intensamente com os olhos fechados e, ao mesmo tempo, reproduziu, em sua mente, a paisagem que acabara de ver para, em seguida, com os olhos abertos, checar a semelhança com a imagem real.

 A primeira coisa que notou, é que na paisagem com os olhos abertos as cores da manhã tinham mais brilho, mais vida. Fechou novamente os olhos, e a paisagem em sua mente continuava a mesma, sem brilho.

 Enquanto seus olhos estavam fechados, percebeu uma presença física ao seu lado e ouviu com absoluta clareza:

             - O brilho das duas deve ser igual.

 Assustou-se quando abriu os olhos e não havia ninguém.

             Clara ainda não sabia que podia ser eterna.

  A essência do todo tocara-lhe a face, mas ela, ainda, não era capaz de percebê-lo.

 Era o primeiro contato que estava tendo com algo muito maior do que poderia compreender naquele momento.

             Haveria outros sinais.

(Continua...)

Edmir Saint-Clair

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A VOZ – Edmir Saint-Clair


De repente, ele começou a ouvir uma voz em seus sonhos.

Não eram vozes, no plural, era apenas uma voz específica. 

A lembrança era clara e diferente de tudo que já havia sonhado antes.

Acordou assustado, ainda não havia amanhecido. Sua respiração estava ofegante e demorou até saber onde estava; deitado em seu quarto, em sua cama.

 Não conseguiu mais dormir, estava muito impressionado com aquela voz que não pôde identificar. Não era conhecida, nem familiar, mas era aconchegante.

Foi até a cozinha ferver água para fazer o café. Quando voltou e abriu a torneira da pia para escovar os dentes, a voz já não lhe soava tão clara, tão pouco se lembrava do que lhe dissera.

Quando estava na varanda tomando seu café forte, puxou inutilmente pela memória, que parecia se distanciar como uma gaivota voando em direção ao horizonte.  O nascer do sol estava lindo e meia hora depois já não se lembrava de mais nada. A não ser que uma voz num sonho lhe causara uma impressão profunda que ele não conseguia tirar de seus pensamentos. Esse foi o primeiro dos muitos eventos que estavam por acontecer.

O desenrolar do dia e dos afazeres terminaram por apagar completamente a lembrança. Após o almoço, aquele evento havia fugido completamente de sua memória.

Duas semanas após, o mesmo evento se repetiu com uma fidelidade improvável. Sua angústia foi muito maior do que no despertar da primeira noite. A única diferença, e mais agoniante, é que nessa segunda vez conseguiu reter ainda menos detalhes do que no evento anterior. Apenas o suficiente para se aproximar da certeza de que fora absoluta e estranhamente igual.

Dessa vez, demorou mais tempo para retornar a sua rotina sem sentir aquele incomodo esquisito e inexplicável.

Não demorou para que o evento se repetisse. Apenas alguns dias e dessa vez o impressionou ainda mais, a ponto de atrapalhar uma série de acontecimentos profissionais de sua rotina. Não conseguia se concentrar em mais nada. Naquela noite, tomou dois gramas a mais de ansiolítico e mais um antialérgico para adormecer mais rápido. E foi dormir tentando lembrar-se de qualquer detalhe a mais sobre aquela voz. Sequer conseguia definir se era masculina ou feminina. Menos ainda sobre o que falava.

Na repetição seguinte, a coisa se complicou ainda mais. Quando acordou, após o mesmo sonho, manteve-se parado na mesma posição porque haviam lhe falado que isso facilitava a retenção da lembrança. Passados alguns minutos, não achou que estivesse fazendo algum efeito no seu caso. Até chegar ao banheiro e, enquanto colocava pasta de dentes na escova, resmungou:

— Se essa voz falasse quando estou acordado seria muito mais fácil entender... ô voz zinha burra!

Talvez, por já não estar levando aqueles sonhos tão a sério, acordara de bom humor naquele dia. Até ouvir nitidamente:

— Então está certo. Você se acha capaz de me ouvir conscientemente?  Espero que sim...

Rodrigo foi encontrado desacordado no banheiro pela diarista, que o acordou tão assustada quanto ele.

 Acontece que, daquela manhã em que desmaiara até o dia em que foi encontrado, havia se passado três dias. 

O evento se tornava mais surreal pelo fato de que a diarista havia ido trabalhar na casa de Rodrigo naqueles mesmos três dias e, segundo seu relato, ele não estava em casa. Ela limpara a casa inteira, incluindo o banheiro onde ele foi encontrado e, definitivamente, ele não se encontrava naquela casa durante aqueles dias.

Ela imaginou que ele estivera viajando pois, durante aqueles três dias nada na casa fora mexido. Como se ninguém, além da própria diarista, houvesse estado ali.

Na agência de propaganda onde trabalhava, ele também faltara aos mesmos três dias úteis.

Sua última lembrança era a imagem da expressão aterrorizada de seu próprio rosto no reflexo do espelho.

Ele nunca conseguiu se lembrar de nada do que aconteceu naqueles dias subsequentes.  A única coisa diferente que havia restado daquela experiência surreal eram as manchas de dois filetes de sangue coagulado, uma em cada ouvido. E Nada mais.

Após se alimentar, deitou e demorou algumas horas até se sentir recuperado o suficiente para levantar com um estranha e urgente determinação de ir buscar seu filho no colégio naquele dia. Ele nunca fazia isso, era divorciado e a guarda do filho era compartilhada. O menino já tinha 14 anos e ia e voltava sozinho de ônibus comum, do colégio para a casa da mãe, onde morava.

Ele sabia disso, e o próprio filho não gostava que o pai fosse buscá-lo na porta da escola. Mas, Rodrigo estava agindo como se houvesse sido programado, como um robô, para desempenhar aquela tarefa. Ele não estava pensando, apenas agindo.

Quando parou o carro no ponto de ônibus em frente à escola, viu o filho e mais dois amigos sentados no ponto de ônibus aguardando o coletivo. Abriu a porta do carona, chamou o filho e ofereceu carona aos amigos dele, que entraram no carro rapidamente. Assim que Rodrigo arrancou com seu carro, um caminhão desgovernado invadiu em alta velocidade e bateu violentamente contra o ponto de ônibus, exatamente no lugar onde os três garotos estavam sentados.

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O DIA QUE MUDOU O MUNDO

Jorge acordou tarde como seu costume, mas, com certeza dormiria mais se não fossem aqueles ruídos incomuns vindos da janela.

Checou o celular para saber as horas, inutilmente, o aparelho estava sem rede de telefonia móvel. Tentou acessar o WhatsApp quando percebeu que também não estava conectado pelo wi-fi de casa.

Pulou da cama e, antes de ir até o quarto onde o modem da casa fica, foi até a janela e o trânsito na rua era absolutamente inédito, pelo menos nos últimos 10 anos em que morava ali. A primeira coisa que notou ao entrar no quarto de hóspedes foi que as luzes do modem estavam todas desligadas. Ele estava sem conexão alguma. A primeira sensação foi de muito incomodo e estranhamento. Decidiu verificar a eletricidade de casa e estava sem energia.

Ligou seu notebook que, para sua sorte, estava com a bateria cheia. Mas, totalmente sem conexão alguma. O incomodo inicial deu lugar a uma ansiedade maior do que ele estava acostumado a lidar. Abriu a porta do apartamento e o corredor estava escuro, e os elevadores, obviamente, parados. Um silêncio perturbador emprestava um ar lúgubre ao local.

Jorge fechou a porta e deu duas voltas na chave. Enquanto a cafeteira lhe preparava um café ele voltou à janela para olhar mais atentamente. O fluxo de trânsito dos automóveis além de anormal estava mais caótico pela falta dos semáforos sem energia. Tomou seu café, se arrumou e resolveu ir até a portaria de seu prédio. O porteiro haveria de ter mais informações sobre aquela estranha e incômoda manhã. Sentia-se ainda mais perdido por não ter ideia de que horas eram. Mesmo sem o relógio do celular, geralmente, ele seria capaz de calcular o horário pela luz e os sons externos. Mas, tudo parecia estar caoticamente fora dos padrões normais.

Usou a lanterna do celular para iluminar os degraus da escada do prédio e não demorou a chegar na portaria.

“Seu” Cícero segurava a porta enquanto o Célio do quarto andar entrava acompanhado da mulher e dos dois filhos carregados de sacolas de supermercado lotadas. Foi quando se deu conta de que a situação era muito mais séria do que ele imaginava. E, em menos de 5 minutos que ele estava na portaria, 3 outras famílias chegaram igualmente carregadas de mantimentos. Jorge percebeu que estava defasado e desinformado. Naquele dia, ter acordado tarde faria toda a diferença.

Desceu até a garagem para pegar seu carro e ir até o supermercado garantir suprimentos. Ele continuava sem saber sobre o que estava acontecendo, mas algo grave estava acontecendo. O porteiro e os moradores com os quais encontrara também não souberam dizer nada a mais do que o óbvio que todos sabiam por que sentiam a falta. E a cada minuto mais itens eram acrescentados a essa interminável lista.

Demorou minutos inéditos para conseguir sair da garagem e pegar a rua totalmente engarrafada. Motoristas e pedestres portavam a mesma expressão grave e preocupada. Em alguns, a ansiedade se exacerbava de forma mais evidente. Em outras, já chegava a um estágio preocupante. Jorge, apesar de muito ansioso e perdido, ainda conseguia manter a racionalidade em níveis funcionais.

As estações de rádio estavam fora do ar, tudo que dependia de energia elétrica não estava funcionando, exceção aos locais com geradores próprios.  Aos poucos foi percebendo toda a extensão da catástrofe que havia ocorrido. Ele só não sabia extensão. Poderia ser só na sua cidade, só no seu estado, só no seu país ou no mundo inteiro. Lembrou-se de um dos últimos vídeos que assistira no Youtube na noite passada, um podcast sobre ciências, no qual o entrevistado, um astrônomo brasileiro, alertava para uma explosão solar que iria gerar uma onda eletromagnética que poderia, literalmente, torrar todas as instâncias de comunicação do planeta terra, incluindo satélites e instalações terrestres, com consequências incalculáveis. Com um potencial tão avassalador que poderia mudar profundamente o rumo da história humana.

Foi ridicularizado e apontado como mais um seguidor das teorias da conspiração.

Não era.

Era 4 horas da tarde quando, após 3 horas parado no trânsito, Jorge abandonou seu carro no meio da rua caótica e seguiu a pé, a tempo de ver a horda de populares arrebentar as portas e paredes de vidro do imenso supermercado antes de dar início aos saques.

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DIVINA PROVIDÊNCIA

Tudo que Neyla pensava naquele momento é o que falaria para o filho mais velho quando ele a visse com o olho e os lábios inchados.

Ela sabia o estado em que Maicon ficaria quando visse o que seu pai fizera com ela novamente. Ele crescera presenciando e sofrendo a mesma violência que a mãe desde que se entendia como gente, e não aguentava mais. Desde a última sessão de pancadas, ele prometera a mãe que daria um jeito naquele inferno.

Neyla lembrou-se de cada uma das palavras do filho, e um calafrio percorreu sua espinha de cima a baixo, como se alguém houvesse passado sobre seu túmulo, como diziam na comunidade. A caçulinha Raylane ainda estava com o gesso na perna como consequência da última vez em que Julião estivera na casa deles.

Ele vinha e ia embora quando bem entendia, sem dar satisfação sobre o tempo que passara ausente.

Eles sabiam que eram a segunda família dele, a filial como os vizinhos a chamavam.  Mas, agia como se tudo aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.  Quando voltava era sempre a mesma história. Gastava todo dinheiro que encontrava, dormia quase o tempo inteiro e quando estava acordado bebia até começar a implicar com quem estivesse ao seu alcance, mas só em casa. Na rua era um frouxo.

Era o segundo mês de Maicon como caixa de supermercado. O segundo salário que recebia. O primeiro terminara nas mãos do pai, que achou e confiscou a quantia revirando as coisas da mãe.

Neyla passou o dia inteiro sendo consumida pelo medo do que aconteceria quando o filho chegasse, visse Julião dormindo no quarto e os machucados em seu rosto.

Maicon e a mãe tinham uma relação de amor e confiança profundos. Desde que a irmãzinha nascera, Maicon nunca mais havia se envolvido com o submundo que os rodeava. Tinha voltado aos estudos e, desde então, ajudava a mãe a sustentar a casa. Pagava integralmente a creche em que Raylane passava os dias, enquanto a mãe trabalhava como diarista em casas particulares.

Quando a noite chegou, Neyla deu graças a Deus quando Julião acordou, tomou banho e saiu sem falar nada.

 Ela teria tempo para tentar acalmar o filho e evitar uma tragédia doméstica.

Quando Maicon chegou e viu o rosto da mãe fechou as mãos e socou a própria cabeça com força. Neyla o envolveu num abraço e ambos choraram juntos. Não falaram nada. Maicon tirou a mochila das costas, colocou-a no sofá rasgado, deu um beijo no rosto da mãe e saiu sem dar-lhe o dinheiro do salário. Dessa vez, aquele dinheiro teria outro destino.

Neyla tentou impedir que o filho saísse pela porta naquele estado que ela não conhecia, mas pressentia. Calado, com o olhar crispado e o corpo todo endurecido. Ela sabia o que ele iria fazer e implorou, sem resultado. Ela perdera totalmente qualquer contato com ele, que saiu andando como um corpo sem alma.

Maicon rodou por todo o complexo do alemão, procurando os conhecidos dos tempos em que fora aviãozinho e fogueteiro do tráfico. Precisava de uma arma, qualquer uma, a qualquer preço dentro do dinheiro do salário, que não era muito. E ficou rodando pelas vielas meio desorientado, mas decidido.

Em casa, tudo que Neyla podia fazer era rezar, pedir, implorar, prometer e buscar no fundo de sua fé alguma providência que os livrasse da tragédia anunciada.

Ela rezou com toda a fé que sempre tivera desde muito pequena, acendeu uma vela e ficou ajoelhada durante as 4 horas em que Maicon ficou fora. E, cada minuto dessas horas, ela rezou sentido o pavor de que fosse o último. Ela temia por todo a vida que Maicon perderia fugindo ou preso numa penitenciária, ...caso se tornasse o assassino do pai.

Nem a pancada na porta, anunciando a volta de Julião, bêbado, a tirou de sua concentração santa. O crápula se jogou na cama de casal, sem dizer palavra alguma, apenas emitindo um grunhido animalesco.

Pronto, pensou ela, o cenário da tragédia está montado. A primeira coisa que ela fez foi trancar a porta da casa com todas as voltas que a fechadura podia dar.

 O único jeito era tentar manter Maicon do lado de fora e tentar demovê-lo da ideia de matar o pai. Ela guardou as chaves nos seios e voltou a concentrar-se em suas orações e promessas.

Santa Rita de Cássia não podia abandoná-la agora.

Ficou ajoelhada até ouvir o estrondo da porta sendo arrombada por um chute de Maicon que entrou e foi direto para o quarto. Neyla o interceptou na porta e quando os dois olharam para a cama viram o improvável: Julião jazia morto, com a boca e os olhos arregalados, quase fora das órbitas, com a expressão aterrorizada como se sua última visão, houvesse lhe arrancado a vida..

Edmir Saint-Clair

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