O último ano havia sido difícil. Aos 36 anos, divorciado, uma filha de nove anos e um emprego que lhe permitia apenas o básico, havia desistido de seus sonhos. Sua vida estava parada, havia tempo. De tudo, somente a filha valera a pena. Enquanto pensava, caminhando pela av. Afrânio de Mello Franco em direção à Lagoa, às 3 horas da madrugada de uma terça-feira chuvosa, tudo o que sentia era pena de si mesmo.
Caminhava vagarosamente, afinal não estava indo a lugar algum, aliás, nunca ia. A insônia, que há tempos o acompanhava, com certeza o faria chegar atrasado ao trabalho na manhã seguinte e isso lhe renderia mais uma bronca do chefe, e o círculo vicioso mais uma vez se auto-alimentaria, tirando-lhe os sonos futuros.
]Tudo o que desejava, era poder escrever suas estórias. Mas, como e por onde começar?
Tudo o que ele havia escrito até agora, não passava de textos baratos, cheios
de clichês, que quando muito impressionavam alguma moça mais desavisada. No
fundo, ele acreditava que poderia produzir algo bom mas, já não tinha certeza. Sentia-se um velho em fim de carreira nenhuma. Pensou na filha e um nó
subiu-lhe a garganta, soluçou, sem chorar, um suspiro profundo, como se seu
corpo expulsasse o excesso de tristeza que já não comportava. Ele vinha caminhando
e virou na Rua Humberto de Campos e passou pela porta da 14ª Delegacia de Polícia
no piloto automático. A rua estava tão deserta quanto seu espírito. Não via
saída.
A solidão soava como paz.
Para onde seu pensamento fosse lá estava a angústia que aumentava a ansiedade
que aumentava a velocidade com que sua mente lhe aterrorizava com pensamentos
fatalistas. Sentia raiva, ansiedade, angústia e muita pena de si mesmo. Não
tinha para onde correr nem a quem recorrer. A rua deserta estava em perfeita
sintonia e a chuva cessara. Apenas pingos caiam das folhas das árvores encharcadas. Não
estava frio, nem fazia calor. Não estava nada.
Acendeu o baseado e entrou
na Rua José Linhares. O entorpecimento que a maconha lhe causava era um alívio
grande, a sensação do primeiro trago nublava os pensamentos. Os tragos
seguintes realçaram os barulhos da chuva, a iluminação amarelada e parcialmente
coberta pelas árvores encorpadas. O prédio que ocupa a esquina entre as duas
ruas, Humberto de Campos com José Linhares, tem um formato em L, e uma marquise
em frente à entrada da porta de madeira da garagem, uma boa proteção contra a
chuva. E, é escuro. Um canto na rua. Fumando o baseado ali, no canto e
encolhido, estava se sentido o melhor que poderia naquele momento. Percebeu um
vulto chegando quando já bastante próximo e se assustou. Era o porteiro que
parou, fitando-o sem falar. Ele se sentiu intimidado e saiu da entrada da
garagem.
Sentir-se intimidado não era
novidade. Seus pais não o deixavam esquecer esse sentimento. Era um exilado, um
estorvo que ocupava um quarto sempre de portas fechadas. A sensação era de
constante ameaça. Velada, obscura e onipresente. Uma prisão sem grades, uma
tortura sem ferros. Pensou que a única coisa em comum entre aquelas três
pessoas, que poderiam ser uma família, era a crença de que ele não era nada. E
nunca seria. Ele deu errado. Sua vida era um erro.
Caminhou até a metade do
quarteirão e parou em frente a um prédio em construção, onde estava mais escuro
e não tinha porteiro, encostou-se num carro estacionado ao meio fio.
Foi impossível não notar o
carro preto reluzente, de linhas futuristas, os vidros completamente negros
bloqueavam completamente a visão de seu interior. Era o tipo de carro que
gostaria de ter, se pudesse.
Mas não podia. Após o divórcio, havia voltado a
morar com os pais e a probabilidade era de que jamais sairia de lá. Não fosse o
Rivotril, o Dormonid e o santo baseadinho, nem sei como seria, pensou.
E, mais uma vez, pensou em algo que há tempos lhe seduzia: a morte. Dessa vez, a idéia passou a ser plano imediato. Havia acabado de comprar uma caixa de cada um de seus remédios na farmácia, que lhe vendia sem receita, com ágio, é claro. Geralmente, lembrou, esse é um dia razoável do mês. Sentia-se um pouco menos inseguro. Ter seus remédios à mão é o que há de mais próximo da tranquilidade que ele tem experimentado. Sua segurança e consolo eram as pílulas. Lembrou-se do outro lado da moeda, dos dias em que os remédios estavam no fim, e o coquetel de sentimentos e sensações de angústia, ansiedade, insegurança e medo aumentavam, pela simples possibilidade de ficar um dia sequer sem os remédios. Não ter as receitas reduzia sua possibilidade de compra a uma única farmácia. Sem eles era impossível dormir, impossível viver. A simples lembrança daquela sensação passada causou-lhe um pico de angústia que lhe doeu no peito.
Seus olhos choraram o choro
de sempre. A rua estava escura como sua alma.
Aquela angústia e a
lembrança dos remédios lhe remeteram a um pensamento que vinha amadurecendo nas
noites insones.
− Trinta comprimidos de
rivotril mais trinta comprimidos de dormonid vão me livrar de tudo isso...
Pensou. Dormir, a coisa que ele mais gostava e mais fazia. Tudo estaria resolvido.
Enquanto tirava um trago maior, sentiu a porta
do carro abrir. Sua reação automática foi esconder o baseado. Ele vivia escondendo
tudo.
Um homem bem vestido, com um
curioso chapéu preto que lhe cobria o rosto, aproximou-se. O som de sua voz
pareceu-lhe familiar quando o homem lhe pediu para fumar.
A princípio, ele teve
receio, mas algo lhe soava confiável naquele homem. Manteve a cabeça abaixada
para esconder as lágrimas. O estranho pegou o baseado e, enquanto prendia a
fumaça, dirigiu-se a ele, sem mostrar o rosto.
-“Sei exatamente o que você
está sentindo agora...”
Ele levantou a cabeça e
tentou ver o rosto do homem. O estranho continuou.
-“Não se preocupe, você não
irá fazer o que está pensando, eu lhe garanto.”
Puxou mais uma vez o cigarro
fazendo com que a brasa reluzisse e uma cortina de fumaça tornasse ainda mais
difícil a visão de seu rosto.
As palavras daquele homem o
estavam assustando, afinal como poderia ele saber o que estava pensando. Não
poderia, pensou, ele deveria estar apenas se utilizando de clichês, pois não
seria difícil alguém perceber sua angústia. O estranho continuou.
− “Não tenha receio, eu sei
que tudo isso parece e é muito estranho. Mas, esse momento vai mudar
profundamente a sua vida, para melhor. O tempo se encarregará de lhe
confirmar... apenas acredite nisso...”
E continuou a falar-lhe, como se soubesse de cada pensamento que lhe ocorrera naqueles momentos que antecederam aquele inusitado encontro.
O estranho continuou falando calma e pausadamente, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto, incontroláveis. Ele mantinha a cabeça baixa tentando
esconder a profusa emoção. O estranho, de chapéu preto,
facilitava sua tarefa evitando olhar em sua direção, sem parar de falar. Parecia saber exatamente o que fazia ali.
Foram interrompidos por uma
jovem que irrompeu de algum lugar que ele não percebera.
− “Vamos pai?”
A voz feminina, fez com que
ele se virasse a tempo de ver uma mulher de cabelos bem lisos, longos e
castanhos entrando no carro, não pode ver-lhe o rosto, mas o som daquela voz
provocou-lhe uma sensação desconhecida, ele não soube identificar aquela sensação.
O carro arrancou sem que o
homem se despedisse. Não tivera tempo de perguntar-lhe nada. Na verdade não
emitira uma palavra sequer. Realmente, pensou, não falei absolutamente nada e
ele sabia. As lágrimas e o choro haviam parado. Ele estava quase catatônico.
Estático. Sem reação alguma.
Fumou o resto do baseado e,
quando acabou, ainda não conseguia ordenar o raciocínio.
Quem seria aquele estranho
que pareceu conhecê-lo tão bem?
O que estaria ele fazendo
parado ali, em frente a um prédio em construção às 3 horas da madrugada, como
se o estivesse esperando?
Talvez estivesse esperando a
filha, que ele não viu de onde surgira. Essa lhe pareceu uma boa resposta a
essa pergunta, mas e as outras? Sua cabeça começou a rodar, e por pouco ele não
caiu. Após recuperar-se, a primeira coisa que percebeu foi que a angústia havia
desaparecido. Completamente. A idéia do suicídio não fazia mais sentido. De
alguma forma, aquele estranho modificara seu pensamento. Foi para casa
procurando respostas para um monte de perguntas que ele mal conseguia formular
e muito menos responder. Por fim, já em casa adormeceu profundamente, como não
acontecia há anos.
No dia seguinte, passou a manhã toda no trabalho, fazendo
contas e chegou à conclusão que caso fosse mandado embora, o dinheiro que
receberia por conta de indenizações, salário desemprego e etc., o manteria por
uns seis meses, caso reduzisse um pouco os gastos, e poderia, enquanto isso,
tentar alguma coisa que lhe trouxesse maior prazer. De alguma forma, sentia-se
mais motivado, aquele estranho tinha tudo a ver com isso.
Não tinha como negar que as
palavras daquele estranho o haviam influenciado, não conseguia entender porque
elas haviam penetrado tão profundamente em seu espírito.
O Conselheiro Noturno, como
passaria a chamá-lo, demonstrou tanta segurança no que falara que o contagiou
de uma forma definitiva. A cada instante, a partir daquele dia, todas às vezes
que batia o desânimo, pensava no Conselheiro Noturno.
Começou a visitar algumas
agências de publicidade, oferecendo-se como redator, mas a princípio nada
parecia promissor o bastante, por fim conseguiu um estágio, não remunerado,
numa pequena agência. A partir daí, sua vida começou a mudar. Mas, era apenas o
começo de uma longa caminhada.
⸎⸎
Havia-se passado 25 anos e
ele, agora, é diretor de criação de uma grande agência de propaganda, com dois
livros publicados e um terceiro em fase de acabamento. Tem um carro que lhe
parece semelhante ao do Conselheiro Noturno, não igual, afinal, o seu é do ano
e o Conselheiro viera há mais de duas décadas, mas estava satisfeito em ter um que ele achava pelo
menos parecido. De resto, ainda se lembrava perfeitamente de tudo que sentira naquela rua
escura, mesmo passado tanto tempo.
Hoje, é um dia muito
especial. Sua filha acabou de se mudar, para um apartamento comprado por ele e
escolhido por ela. Vão sair juntos para jantar e comemorar o primeiro dia na
casa nova. Uma ocasião única, com a qual sonhara muitas vezes.
Ele chega à agência um pouco
mais cedo que seu costume, não quer se estender nos compromissos do dia. O dia
está cinza e chuvoso, mas lhe parece radiante. Dias de chuva no Rio podem ser
muito bonitos e agradáveis.
Seu celular toca, é sua
filha pedindo o carro emprestado para cumprir algumas tarefas da produção
teatral na qual está trabalhando. Combinam que ela deixará o carro na garagem
dele ao final do dia.
Resolve almoçar sozinho
perto da agência, em Ipanema. O tempo está chuvoso e, depois de comer,
sente vontade de caminhar até a Praça N. Senhora da Paz. O local está molhado e, por isso, deserto. Espana as gotas do banco e senta.
Instantaneamente, lhe vem à cabeça o Conselheiro. Uma estranha sensação lhe
invade, não tem idéia do que seja mas, já sentira uma vez, única.
O Conselheiro.
Já passava das duas da
manhã, quando sua filha lhe telefona dizendo que ficara arrumando algumas coisas e que
por isso perdera a hora. Ela o deixou à vontade para remarcarem, caso achasse que estava muito tarde,
poderiam deixar o jantar para o dia seguinte, mas ele insiste, aquele era
um dia único na vida dos dois, o primeiro em que ela era dona da sua
própria casa.
Ele para em frente ao prédio da filha e fica no carro,
esperando que ela desça. De repente, sente a parte traseira do carro abaixar,
alguém se apoiou. Sente um cheiro de maconha e um arrepio intenso percorre sua
espinha, irradiando-se por todo o corpo. Só então ele percebe que está no mesmo
lugar onde estava há exatos 25 anos. Olha para trás e vê, no banco traseiro,
um chapéu preto que sua filha havia esquecido, quando saíra à tarde com o carro.
Naquele momento ele soube quem era o Conselheiro Noturno e o que tinha que fazer. Abriu a porta do carro, pegou o chapéu e foi cumprir seu destino.
- Edmir Saint-Clair