COACH LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro. Um profissional técnico, especializado em criação, um professor de escrita e um parceiro, ao mesmo tempo. Experimente, é terapêutico e libertador. Perpetue as histórias que só você tem para contar.
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UM SONHO DE NATAL

 

    A bicicleta, no meio daquela grande vitrine natalina, chamou-lhe a atenção. Era vermelha e modelo BMX, parecida com a primeira bicicleta que dera ao filho. Há mais de 30 anos. A lembrança foi automática e dolorida.

Na noite da véspera de Natal, perto do horário de fechar, os shoppings se tornam o maior dos infernos para quem está ali apenas para comprar um sifão da pia, que estourou. Até a loja de materiais de construção se apropriou do Papai Noel e colocou um pobre velhinho fantasiado para vender vasos sanitários e Box blindex em 12 vezes, porque é Natal.

Ele desistira de tentar gostar de Natal havia tempo, na verdade, não suporta a data. Gosta de passá-la como se não houvesse.

De tudo que já havia perdido, o contato com o filho era o que mais lhe doía. Esse seria o décimo ano, o décimo natal desde que haviam rompido. Nem uma troca de palavra sequer durante toda essa eternidade. Tentara uma reaproximação de diversas maneiras, durante todos esses últimos anos, mas nunca obtivera resposta alguma. 

Quando saiu, o shopping já estava praticamente fechado, assim como todo o comércio do bairro. Existe apenas uma noite, no Rio de Janeiro, em que os bares, restaurantes, farmácias e todo o resto do comércio fecha; é na noite de natal.

    Voltando para casa, pelo caminho mais longo, foi vendo o tráfego ir se reduzindo, os pontos de ônibus se esvaziando e pensou que não trocaria o sifão da pia naquela noite. Queria apenas dormir. Definitivamente, o natal não lhe faz bem.

Ele sabe, já passou várias dessas meias-noites na rua, por livre vontade. Saía de casa alguns minutos antes e passava a meia-noite na rua. Apenas para ver sua própria solidão tomar conta de tudo e imperar soberana. Não tinha mais medo de encará-la. Ao contrário, tornaram-se bons companheiros.

Chegou ao seu condomínio, parou na entrada da garagem e, enquanto aguardava que o porteiro lhe abrisse o portão, ouviu A voz inconfundível:

- Feliz Natal pai. Vamos passar juntos?

Era seu filho.

Edmir Saint-Clair

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UM NATAL INESQUECÍVEL

 

           Há alguns anos não festejava o Natal na minha casa encantada, o apartamento 1004 do Amarelo, no Condomínio dos Jornalistas, no Leblon. Apesar de morar no Rio, sempre passava as festas com a família, em Brasília. Naquele ano não fui.

No dia 24 de dezembro, acordei angustiado, era a primeira vez que não sentia a agitação característica desse dia especial acontecendo na casa dos meus pais. A árvore de natal armada na sala com direito a pisca-pisca ligado dia e noite. Esse ano a luzes não estavam piscando nem tinha árvore e eu senti falta. Eu já me achava adulto, mas, com certeza ainda não era. Aquele dia estava sendo uma experiência totalmente nova para mim. Um dia como eu nunca havia vivido antes.

     Para suprir aquela inquietude, resolvi chamar uma galera para levar um som lá em casa, depois das comemorações natalinas familiares. O combinado foi começar por volta de uma hora da manhã.

Desde cedo, a agitação no meu andar começou, como sempre, com as portas abertas dos apartamentos da Dona Letícia e da Dona Élida, exalando cheiros deliciosos de assados e outros quitutes. Logo que saí no corredor fui intimado a comparecer às duas ceias, que, no meio da noite, se fundiam numa só. Prometi que não faltaria, seria a primeira parada depois da ceia na casa da Dona Lila, mãe do Dedé, que já havia me convidado desde que soubera que eu passaria sozinho.

O transcorrer da véspera de Natal no Condomínio dos Jornalistas era uma festa desde que o dia nascia.

Chegavam pessoas de todos os cantos para os encontros familiares. Pessoas que, normalmente, não frequentavam as áreas comuns o faziam nesse dia, e o clima de festa se instalava.

O bar do Seu Antônio e da Dona Maria ficava lotado. Seu Joaquim não parava um minuto no sobe e desce pelos apartamentos do condomínio, abastecendo-os de cerveja e refrigerantes. Até o forno industrial do bar era cedido, gratuitamente, para alguns moradores e ficava lotado de assados.

 Era possível sentir no ar a harmonia que reinava.

 Minhas lembranças são de uma comunhão geral. Não havia quem passasse e não fosse recebido com um Feliz Natal, ao qual sempre retribuía contagiado pelo mesmo entusiasmo. Era dia de desejar felicidades a qualquer pessoa que entrasse no Jornalistas.  

A sensação era de que os corações floresciam. Em nenhum outro dia do ano havia tantos sorrisos.

Passar na casa dos amigos para as felicitações era uma tradição do Jorna e, naquela noite, a comilança foi interminável. Voltei para a minha casa, completamente empanturrado das melhores comidas de Natal que se pode imaginar. Fiz um tour gastronômico por todos os pratos típicos da culinária brasileira. Acho que foi naquele dia que comecei a ter barriga...

Apesar da saudade, naquele primeiro Natal que passei sem minha família, várias outras mães, pais e irmãos me acolheram. Não me senti sozinho um minuto sequer nem naquele dia, nem naquela noite.

Passadas as comemorações familiares, era hora da festa na minha casa encantada, o 1004. O primeiro a chegar foi o Dedé com um digestivo salvador. Logo vieram Abelha, Bode, Mito, Marquinho e a violada começou cada um no seu instrumento e eu com o lendário violão do Sig.

Não demorou para que os astros da noite também chegassem: Babalu, Kássio, Mário Japão, Cláudio Urubu e o Tuca. E foram chegando mais amigos e amigas e mais amigos de amigos e mais amigas de amigas e gente que eu nunca tinha visto antes. Porque era natal.

Fechamos a noite todos cantando e tocando juntos, acompanhando nosso amigo Cláudio Urubu em sua música mais bonita, em parceria com Raul Seixas, declarando ao mundo que íamos todos “... ficar com certeza Malucos Beleza”.

Acho que ficamos.

Edmir Saint-Clair

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PLENO - Poesia

 

Me darei inteiro,

Mas só a parte que te cabe, nunca tudo,

Porque sou muitos, tantos que nem sei,

E  você me dará o que quer e eu aceitarei se quiser,

Cobrar não está nesse roteiro, 

O inteiro pode estar numa fração

Só acredito no pleno, que mesmo se dando todo,

Ainda tem muitos todos para dar

Não sou metade, não busco metades,

Não acredito em metades

Porque às vezes até o pouco é demais

Seja o inteiro, a metade ou a fração

Em todos pode haver muitas verdades,

Em todos pode haver muita vontade, muito amor, muito tesão

Busco quem tenha sonhos próprios, os meus já os tenho

Preciso é de outros, para variar, para ter surpresas,

Para me encantar

Na verdade nem procuro, pois só assim poderei achar.


O MELHOR LUGAR DO MUNDO

 O MELHOR LUGAR DO MUNDO

 O melhor lugar do mundo é o colo da mãe,

É no meio dos amigos, é onde nos sentimos em casa,

O melhor lugar do mundo é vencendo desafios,

É conquistando mares nunca d’antes navegados

                                                 com quem nos sentimos felizes,

É andando de bicicleta sem rodinhas,

                                               Com nosso pai nos amparando,

É no campo jogando bola ou búlica,

Ou Pique-bandeira e esconde-esconde,

O melhor lugar do mundo

                                          é numa brincadeira de criança,

É no abraço de um amigo, 

                                                É num beijo de namorados,

É o nosso canto no mundo,

É onde nos sentimentos aceitos e aconchegados.

O melhor lugar do mundo é dentro do coração

E da história de quem amamos.




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UM OUTRO MUNDO – Poesia


 

Enquanto a noite amanhece lenta

Nossos Corpos se reconhecem quentes

Revelando mundos

 Que afinal se entendem

Muito, todo, tudo

Sangue trocando de veia,

Renascendo dentro de um mundo à parte

Construído pela arte que só o amor sabe fazer

Onde a alegria manda, onde o desejo ganha

Onde o tocar das bocas é a fala mais urgente

Um mundo além do mundo

Um mundo além do sonho

Um mundo além da gente

Porque ao sonho faltam

a tua carne, as tuas unhas e os teus dentes.

- Edmir Saint-Clair

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UMA NOVA LISTA DE ANO NOVO

 

Dezembro, o mês mais emocional do ano.  

Parece a chegada de uma gigantesca maratona da qual toda a população participou. A sensação coletiva é de exaustão, de enorme cansaço físico e emocional. Para onde olharmos, veremos a mesma coisa. Uma mistura confusa de afetos e sensações contagiantes que nos coloca, a todos, num mesmo e imenso barco onde juntos navegamos por águas sentimentais que provocam uma fragilização emocional coletiva alimentada freneticamente pelas mídias e toda sorte de propagandas, músicas e decorações natalinas onipresentes até onde a vista e os ouvidos podem alcançar. Não tem como fugir.

Faz parte da nossa cultura essa “emocionalização” potencializada pelas festas natalinas e pelo final do ano. Em suas origens, havia um apelo religioso que, por conseguinte, conduzia as pessoas à reflexão típica da cultura judaico-cristã, que sempre leva todos os "pecadores" a um certo grau de sentimentos de tristeza e culpa. A tradição é pensar em nossos erros, frustrações e ausências.

Mesmo que não tenhamos feito lista alguma de resoluções e planos para o ano novo, o que nos vem à lembrança é uma relação de coisas que pretendíamos ter realizado e não o fizemos. A data que, hoje, tem pouco de suas origens religiosas, foi engolida pelo Marketing que aproveitou essa “emocionalidade” exacerbada, potencializando-a ainda mais, através das ações de publicidade, fazendo transbordar essas emoções de frustração e culpa que são habilmente canalizadas para o aumento do consumo de bens.

Quanto mais o envolvimento, a emoção e a culpa forem despertadas, mais cada um de nós vai gastar dinheiro.

Ao refletir sobre esse movimento anual, me parece que valeria a pena experimentar uma forma de, ao chegarmos ao final do ano, em vez de pensarmos nas besteiras e bobagens que fizemos ou deixamos de fazer, como em todos os anos passados, pudéssemos reconhecer nossos acertos e mudanças positivas.

 Pensando numa maneira leve e produtiva de alcançar esse objetivo, podemos brincar de fazer durante o ano seguinte, uma lista que pode mudar completamente essa sensação desconfortável que a “tristeza de fim de ano” provoca na maioria de nós.

E Se, em vez dos afetos negativos, no próximo ano tenhamos uma relação de afetos positivos para recordarmos?

Pensando nisso, proponho AMA NOVA lista de ano novo.

A diferença, é que não será uma lista de planos e metas sobre entrar na academia segunda-feira, começar um regime ou aprender um novo idioma.

Será uma lista de realizações e não uma lista de desejos.

A nova lista será feita não antes, mas durante o desenrolar do novo ano.

Uma brincadeira diária de registrar nossos eventos rotineiros, mas só as ações que foram efetivamente realizadas, que aconteceram de verdade. Porque de boas intenções o inferno já nos enche diariamente.

E o objetivo maior é aumentar o autoconhecimento de forma leve e nos dar reais motivos para acreditarmos em nós mesmos.

A NOVA lista de ano novo:

1 - Anote tudo que acontecer de bom com você, todos os dias. Por mínimas que sejam.

2 - Registre todas as manifestações culturais as quais tiver acesso e as suas impressões sobre o que sentiu. Seja Um artista de rua, um cantor desconhecido no barzinho, filmes, peças de teatro...e claro, as grandes produções que assistir.

3 - Registre todas as vezes em que perceber um traço em si que não lhe agrada. Escrever potencializa a introjeção e induz a reflexão sem culpa. Na primeira oportunidade tente fazer diferente e anote com destaque quando conseguir.

4 - Anote todas as vezes que conseguir se conter e evitar uma briga na qual, normalmente, você se envolveria.

5 - Anote todas as vezes em que conseguir trocar a competitividade pelo companheirismo.

6 - Registre as vezes em que estiver sozinho e sentir uma sensação gostosa de alegria e bem-estar.

7 - Anote, com destaque, todas as vezes em que conseguir AGIR exatamente como você gostaria.

 Dessa forma simples e acessível a qualquer pessoa, no final do ano seguinte, teremos inaugurado um caminho totalmente novo, através do autoconhecimento, para nos orgulharmos de nós mesmos por motivos concretos e determinantes. 

E estaremos alimentando a crença mais importante e positiva que existe: a crença de cada um em si e de que, todos, temos o poder de modificar a nós mesmos.

FELIZ 2024!




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O CONSELHEIRO NOTURNO

 



O último ano havia sido difícil. Aos 32 anos, divorciado, uma filha de nove anos e um emprego que lhe permitia apenas o básico, havia desistido de seus sonhos. Sua vida estava parada, havia tempo. De tudo, somente a filha valera a pena. Enquanto pensava, caminhando pela av. Afrânio de Mello Franco em direção à Lagoa, naquela quase 1h da madrugada de uma terça-feira chuvosa, tudo o que sentia era pena de si mesmo.

Caminhava vagarosamente, afinal não estava indo a lugar algum, aliás, nunca ia. A insônia, que há tempos o acompanhava, com certeza o faria chegar atrasado ao trabalho na manhã seguinte e isso lhe renderia mais uma bronca do chefe, e o círculo vicioso mais uma vez se autoalimentaria, tirando-lhe os sonos futuros.

Tudo o que desejava, era poder escrever suas estórias. Mas, como e por onde começar? 

Tudo o que ele havia escrito até agora, não passava de textos baratos, cheios de clichês, que quando muito impressionavam alguma moça mais desavisada. No fundo, ele acreditava que poderia produzir algo bom, mas, já não tinha certeza. Sentia-se um velho em fim de carreira nenhuma. Pensou na filha e um nó subiu-lhe a garganta, soluçou, sem chorar, um suspiro profundo, como se seu corpo expulsasse o excesso de tristeza que já não comportava. Ele vinha caminhando e virou na Rua Humberto de Campos e passou pela porta da 14ª Delegacia de Polícia no piloto automático. A rua estava tão deserta quanto seu espírito. Não via saída.

A solidão soava como paz. Para onde seu pensamento fosse lá estava a angústia que aumentava a ansiedade que aumentava a velocidade com que sua mente lhe aterrorizava com pensamentos fatalistas. Sentia raiva, ansiedade, angústia e muita pena de si mesmo. Não tinha para onde correr nem a quem recorrer. A rua deserta estava em perfeita sintonia e a chuva cessara. Apenas pingos caiam das folhas das árvores encharcadas. Não estava frio, nem fazia calor. Não estava nada.

Acendeu o baseado e entrou na Rua José Linhares. O entorpecimento que a maconha lhe causava era um alívio grande, a sensação do primeiro trago nublava os pensamentos. Os tragos seguintes realçaram os barulhos da chuva, a iluminação amarelada e parcialmente coberta pelas árvores encorpadas. O prédio que ocupa a esquina entre as duas ruas, Humberto de Campos com José Linhares, tem um formato em L, e uma marquise em frente à entrada da porta de madeira da garagem, uma boa proteção contra a chuva. E, é escuro. Um canto na rua. Fumando o baseado ali, no canto e encolhido, estava se sentido o melhor que poderia naquele momento. Percebeu um vulto chegando quando já bastante próximo e se assustou. Era o porteiro que parou, fitando-o sem falar. Ele se sentiu intimidado e saiu da entrada da garagem.

Sentir-se intimidado não era novidade. Seus pais não o deixavam esquecer esse sentimento. Era um exilado, um estorvo que ocupava um quarto sempre de portas fechadas. A sensação era de constante ameaça. Velada, obscura e onipresente. Uma prisão sem grades, uma tortura sem ferros. Pensou que a única coisa em comum entre aquelas três pessoas, que poderiam ser uma família, era a crença de que ele não era nada. E nunca seria. Ele deu errado. Sua vida era um erro.

Caminhou até a metade do quarteirão e parou em frente a um prédio em construção, onde estava mais escuro e não tinha porteiro, encostou-se num carro estacionado ao meio fio. 

Foi impossível não notar o carro preto reluzente, de linhas futuristas, os vidros completamente negros bloqueavam completamente a visão de seu interior. Era o tipo de carro que gostaria de ter, se pudesse.

 Mas não podia. Após o divórcio, havia voltado a morar com os pais e a probabilidade era de que jamais sairia de lá.

E, mais uma vez, pensou em algo que há tempos lhe seduzia: a morte. Desta vez, a ideia passou a ser plano imediato. Havia acabado de comprar uma caixa de cada um de seus ansiolíticos e remédios para dormir, na única farmácia que lhe vendia sem receita, com ágio, é claro. Geralmente, lembrou, esse é um dia razoável do mês. Sentia-se um pouco menos inseguro. Ter seus medicamentos à mão é o que havia de mais próximo de um estado menos tempestuoso. Sua segurança e consolo eram as pílulas. Lembrou-se do outro lado da moeda, dos dias em que os remédios estavam no fim, e o coquetel de sentimentos e sensações de angústia, ansiedade, insegurança e medo aumentavam, pela simples possibilidade de ficar sem os medicamentos. Não ter as receitas reduzia sua possibilidade de compra a uma única farmácia. Sem eles era impossível dormir, impossível viver. A simples lembrança daquela sensação causou-lhe um pico de angústia que lhe rasgou o peito.

Seus olhos choraram o choro de sempre. A rua estava escura como sua alma.

Aquela angústia intransponível lhe remete a um pensamento que vinha amadurecendo nas noites insones.

− Trinta comprimidos de ansiolítico mais trinta comprimidos de soníferos vão me livrar de tudo isso... Pensou. Dormir, a coisa que ele mais gostava e mais fazia. E assim, tudo estaria resolvido.

 Enquanto tirava um trago maior, sentiu a porta do carro em que estava encostado, abrir. Sua reação automática foi esconder o baseado. Ele vivia escondendo tudo de todos.

Um homem bem-vestido, com um curioso chapéu preto que lhe cobria o rosto, aproximou-se. O som de sua voz pareceu-lhe familiar quando o homem lhe pediu para fumar de seu baseado.

A princípio, ele teve receio, mas algo lhe soava confiável naquele homem. Manteve a cabeça abaixada para esconder as lágrimas. O estranho pegou o baseado e, enquanto prendia a fumaça, dirigiu-se a ele, sem mostrar o rosto.

- “Sei exatamente o que você está sentindo agora...”

Ele levantou a cabeça e tentou ver o rosto do homem. O estranho evitou o olhar e continuou.

- “Não se preocupe, você não irá fazer o que está pensando, eu lhe garanto.”

Puxou mais uma vez o cigarro fazendo com que a brasa reluzisse e uma cortina de fumaça tornasse ainda mais difícil a visão de seu rosto.

As palavras daquele homem o estavam assustando, afinal como poderia ele saber o que estava pensando. Não poderia, pensou, ele deveria estar apenas se utilizando de clichês, pois não seria difícil alguém perceber sua angústia. O estranho continuou.

− “Não tenha receio, eu sei que tudo isso parece e é muito estranho. Mas, esse momento vai mudar profundamente a sua vida, para melhor. O tempo se encarregará de lhe confirmar... apenas acredite nisso...

E continuou a falar-lhe, como se soubesse de cada pensamento que lhe ocorrera naqueles momentos que antecederam aquele inusitado encontro.

O estranho continuou falando calma e pausadamente, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto, incontroláveis. Ele mantinha a cabeça baixa tentando esconder a profusa emoção. O estranho, de chapéu preto, facilitava sua tarefa evitando olhar em sua direção, sem parar de falar. Parecia saber exatamente o que fazia ali.

Foram interrompidos por uma jovem que irrompeu de algum lugar que ele não percebera.

− “Vamos pai?”

A voz feminina, fez com que ele se virasse a tempo de ver uma mulher de cabelos bem lisos, longos e castanhos entrando no carro, não pode ver-lhe o rosto, mas o som daquela voz provocou-lhe uma sensação desconhecida, ele não soube identificar aquela sensação.

O carro arrancou sem que o homem se despedisse. Não tivera tempo de perguntar-lhe nada. Na verdade não emitira uma palavra sequer. Realmente, pensou, não falei absolutamente nada e ele sabia tudo. 

As lágrimas e o choro haviam parado. Ele estava quase catatônico. Estático. Sem reação alguma. Fumou o resto do baseado e, quando acabou, ainda não conseguia ordenar o raciocínio.

Quem seria aquele estranho que pareceu conhecê-lo tão bem?

O que estaria ele fazendo parado ali, em frente a um prédio em construção à 1 hora da madrugada, como se o estivesse esperando?

Talvez estivesse esperando a filha, que ele não viu de onde surgira. Essa lhe pareceu uma boa resposta a essa pergunta, mas e as outras? Sua cabeça começou a rodar, e por pouco ele não caiu. Após recuperar-se, a primeira coisa que percebeu foi que a angústia havia desaparecido. Completamente. A ideia do suicídio começou a perder sentido. De alguma forma, aquele estranho modificara seu pensamento. Foi para casa procurando respostas para um monte de perguntas que ele mal conseguia formular e muito menos responder. Por fim, já em casa adormeceu profundamente, como não acontecia há anos.

No dia seguinte, passou a manhã toda no trabalho, fazendo contas e chegou à conclusão que caso fosse demitido, o dinheiro que receberia por conta de indenizações, salário desemprego e etc., o manteria por alguns meses e ele teria algum tempo para para tentar alguma coisa que lhe trouxesse real prazer. Sentia-se mais motivado, e aquele estranho tinha tudo a ver com isso.

As palavras daquele homem o haviam influenciado de uma forma diferente, e ele não conseguia entender por que elas haviam penetrado tão profundamente em seu espírito.

O Conselheiro Noturno, como passaria a chamá-lo, demonstrou tanta segurança no que falara que o contagiou de uma forma definitiva. A cada instante, a partir daquele dia, todas às vezes que batia o desânimo, pensava no Conselheiro Noturno.

Começou a visitar algumas agências de publicidade, oferecendo-se como redator, mas a princípio nada parecia promissor o bastante, por fim conseguiu um estágio, não remunerado, numa pequena agência. A partir daí, sua vida começou a mudar. Mas, era apenas o começo de uma longa caminhada. 

⸎⸎

Havia-se passado 25 anos e ele, agora, é diretor de criação de uma prestigiada agência de propaganda, com dois livros publicados e um terceiro em fase de acabamento. Tem um carro que lhe parece semelhante ao do Conselheiro Noturno, não igual, afinal, o seu é do ano e o Conselheiro viera há mais de duas décadas, mas estava satisfeito em ter um que ele achava pelo menos parecido. De resto, a lembrança daquela noite nunca se desvanecera.

O dia, hoje, é muito especial. Sua filha acabou de se mudar para o apartamento dado por ele e escolhido por ela. Vão sair juntos para jantar e comemorar o primeiro dia dela na casa nova. Uma ocasião única, com a qual sonhara muitas vezes.

Ele chega à agência um pouco mais cedo que seu costume, não quer se estender nos compromissos do dia. O dia está cinza e chuvoso, mas lhe parece radiante. Dias de chuva no Rio podem ser muito bonitos e agradáveis.

Seu celular toca, é sua filha pedindo o carro emprestado para cumprir algumas tarefas da produção teatral na qual está trabalhando. Combinam que ela deixará o carro na garagem dele ao final do dia.

Resolve almoçar sozinho perto da agência, em Ipanema. O tempo está chuvoso e, depois de comer, sente vontade de caminhar até a Praça N. Senhora da Paz. O local está molhado e, por isso, deserto. Espana as gotas do banco e senta. Instantaneamente, lhe vem à cabeça o Conselheiro. Uma estranha sensação lhe invade, não tem ideia do que seja mas, já sentira uma vez, uma única vez. O Conselheiro Noturno parecia rondá-lo.

Já passava da meia-noite, quando sua filha lhe telefona dizendo que ficara arrumando algumas coisas e que por isso perdera a hora. Ela o deixou à vontade para remarcarem, caso achasse que estava muito tarde, poderiam deixar o jantar para o dia seguinte, mas ele insiste, aquele era um dia único na vida dos dois, o primeiro em que ela era dona da sua própria casa. E reconfirmaram o compromisso, ele iria pegá-la em casa.

Ele para em frente ao prédio da filha e fica no carro, esperando que até que ela desça. 

De repente, sente a parte traseira do carro abaixar, alguém se apoiou no veículo. Sente um cheiro de maconha e um arrepio intenso percorre sua espinha, irradiando-se por todo o corpo. 

Só então ele percebe que está no mesmo lugar onde estava há exatos 25 anos. Olha para trás e vê, no banco traseiro, um chapéu preto que sua filha havia esquecido quando saíra à tarde com o carro.

Naquele momento ele soube quem era o Conselheiro Noturno e o que tinha que fazer. 

Abriu a porta do carro, pegou o chapéu e foi cumprir seu destino.  

 - Edmir Saint-Clair


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ÁGUAS DE MARÇO EM LONDRES

 

A última coisa que se espera, quando estamos em outro país, no caso a Inglaterra, é que um inglês saiba uma letra de Tom Jobim melhor do que a gente, que é brasileiro e carioca.

Estava vivendo um tempo em Londres, maravilhado com aquela mágica atmosfera londrina da segunda metade dos anos 80. Uma das coisas me levou até lá foi a música.

Uma das características mais fascinantes da cidade é a quantidade de lugares onde se pode ouvir música ao vivo. Nos parques, estações de metrô e restaurantes, na hora do almoço. A partir do entardecer a oferta aumenta e não existe lugar no mundo com mais estabelecimentos com música ao vivo.

Os pubs londrinos são famosos, não se precisa acrescentar nada ao que já foi dito quanto a isso.

Tive vontade de tocar num pub londrino. Uma apresentação solo. Voz e violão, como nunca havia feito ou sequer cogitado até aquele momento. Um pocket show de bossa-nova. Nunca fui bom em decorar nem as minhas próprias letras, mas como eram todas em português, mesmo que eu errasse ninguém perceberia. A vida inteira participei de bandas, nunca havia feito uma apresentação solo.

Meus amigos ingleses se encarregaram de conseguir o lugar para que eu realizasse minha fantasia musical.

Era um restaurante bastante agradável e espaçoso. Claro e arejado, nem parecia ser londrino. O pequeno palco era baixo e a altura do som era regulada como música ambiente. Não incomodaria quem estivesse conversando. Perfeito para mim.

Uma experiência similar a dos músicos de churrascaria, mas em Londres. Pelo menos, não tinha ninguém conhecido se o fiasco acontecesse. Isso me trazia calma.

Depois de desfilar um monte de Djavan, Toquinho, Gil, Tom e Vinícius, resolvi finalizar o set cantando Águas de Março.

Durante toda a apresentação, uma mesa próxima demonstrara estar gostando. Das sete ou oitos pessoas, um homem em particular estava bastante entusiasmado. Inclusive, me pareceu cantar algumas em português. Pelo tipo físico, era inglês com certeza.

Quando iniciei o primeiro “é pau, é pedra...”, do que seria a última musica, ele se levantou, subiu o pequeno degrau do palco e fiz-lhe um gesto encorajando-o a se aproximar. Parei de tocar, ele se apresentou gentilmente e disse que sabia a letra da música, em português...

Quase lhe respondi:

- Que bom, porque eu mesmo não sei...

Mas, achei melhor não.

O inglês pegou o microfone auxiliar e começamos o dueto mais surreal da minha vida. Como eu sabia que aquele restaurante era freqüentado quase que exclusivamente por ingleses, e eles não tem o costume de decorar a letra de Águas de março, não me preocupara com minha amnésia musical até aquele momento.

Mas, o desgraçado sabia a letra todinha... E, a partir da segunda estrofe , eu comecei a misturar pau com pedra, com toco, com fim do caminho, com chuva e o inglês tentando ir atrás do que eu falava...

Claro, afinal o brasileiro ali era eu. Se tinha alguém errando a letra em português só poderia ser ele!

Logo após soar o último acorde daquele desastroso dueto internacional, o pobre inglês aproximou-se, nitidamente constrangido, e ficou se desculpando por um bom tempo por ter se atrapalhado com letra. Afinal, disse ele, o português é uma língua muito difícil... No que eu concordei prontamente.

 Ele ficou tão inconformado que quase confessei que quem errara a letra inteira fora eu. Ele acertara tudo. 

Mas, achei melhor deixar quieto.

– Edmir Saint-Clair

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NOSSOS ENCONTROS

 


Ela sempre me esperava em absoluto silêncio.

 Ao sentir minha presença, sua respiração tornava-se mais intensa. Minha pulsação aumentava, tornava minha respiração quase difícil. A saudade aflorava forte. Me aproximava devagar, me aconchegando em seu corpo, sem tocá-la. Nada mais excitante do que a intenção de tocar sem tocar.

 O toque anterior ao toque. As sutilezas são a essência do prazer.

Não a tocava, apenas contornava seu rosto com o meu, a nano milímetros de sua pele, sem tocá-la, afastava seus cabelos com o nariz, até alcançar o pescoço. Sentir seu hálito fazia meu cérebro funcionar em outra sintonia, sensibilidade muito além da flor da pele.

 As sensações do tato, olfato, paladar e audição se acentuavam, se misturavam e nos transformavam. Cheiros, sons, texturas, sabores. A fome. Muita fome.

 Esse aproximar e tocar dos corpos fazia desaparecer o espaço entre eles, alma engolindo alma, corpo devorando corpo. Só o prazer nos alimentava. Luta feroz. Meu prazer era te levar à pequenas mortes. Sua fome animal dizia que íamos morrer, e morríamos, muitas vezes. E morríamos de novo. Colados como um quebra-cabeças perfeitamente encaixado. 

A vida resolvida para sempre.

Nossos encontros eram assim.

 Edmir Saint-Clair

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IMAGINAÇÃO: UMA FACA DE DOIS GUMES

 

Criatividade x Fantasia?

As duas nascem no plano da imaginação e se confundem, a princípio. Mas, A criatividade é ativa e a fantasia é passiva, é o sonhar acordado recreativo.

Ambas fazem parte do plano das idéias e são derivadas da nossa faculdade de imaginar coisas e situações que não existem.

Elas São as duas faces de uma mesma moeda, mas com uma diferença fundamental: não tem o mesmo valor quando se trata de produzir, efetivamente, algo de concreto, no mundo real.

O lado positivo da imaginação produz a criatividade, que se manifesta acompanhada da ânsia de transformar em realidade aquilo que foi imaginado, resultando em sua realização efetiva.

A criatividade pressupõe um projeto de amanhã. Tende a Evoluir, tornar- se um projeto e realizar-se.

O sonhar acordado recreativo, apesar de muito valorizado, tem um aspecto bastante negativo; nem sempre evolui para ser um projeto de construção de um amanhã e pode ir direto para um estado de prazer imediato que a fantasia, também é capaz de proporcionar.

No sonho não há limites, podemos tudo. Inclusive sonhar com os resultados mais fantásticos para algo que só existe em nossas mentes. Para quem se encontra fragilizado, não acreditando em seu próprio potencial de realização, a fantasia pode se tornar tudo que resta. A fantasia busca o prazer imediato, busca apenas um alívio, um caminho fácil. Como uma droga.

 Ela não pensa em construir sua própria realização, apenas sonha inconsequente.

A fantasia, quando é levada apenas como brincadeira, como um recreio da mente, é muito saudável. As fantasias sexuais, por exemplo, são os mais poderosos afrodisíacos que existem e produzem momentos de extremo prazer, intimidade e felicidade legítimas.

 É normal fantasiarmos, por exemplo, ser um pop-star ou um ídolo famoso. Quem nunca se apresentou para um estádio lotado e foi aplaudido de pé, enquanto cantava em dueto com o seu maior ídolo embaixo do chuveiro de casa?

Enquanto, ficar só embaixo do chuveiro, essa fantasia não passará de uma brincadeira deliciosa e inconsequente. Enquanto ficar no plano da diversão e do prazer, ela servirá plena e saudavelmente à sua natureza, que é realizar-se em si mesma.

Mas, sozinha ela não atende às nossas necessidades básicas de sobrevivência. Ela não resiste a realidade do dia a dia.

Nossa mente é palco constante desse tipo de  ambigüidades traiçoeiras.

 A partir do poder de sonhar acordado, tanto podemos evoluir na direção da imaginação criativa quanto para a fantasia paralisante.

Normalmente, desenvolvemos as duas vertentes, de modo que, no início do processo imaginativo, fica muito difícil prever para que direção aquele pensamento irá pender.

No nascedouro das idéias, elas não tem diferença alguma, são a mesma coisa: nossa mente abstraindo e projetando. Somos capazes de imaginar eventos bastante complexos.

O destino que damos a nossa fantasia é o que faz toda a diferença. O prazer de fantasiar também produz dopamina e, é aí que está o perigo. Pode se tornar uma válvula de escape tão perigosa quanto qualquer droga e realizar-se em si mesma, não gerando ou produzindo nada para o mundo real.

Sempre temos a opção entre arregaçar as mangas e tentar produzir o que fantasiamos ou nos sentarmos e continuar fantasiando, também, as consequências. Fantasiando como seria bom se aquilo se realizasse e, entrando numa viagemno de "sentir-se" famoso, bonito, rico e tudo mais que um sonho consegue, ou seja, tudo.

A fantasia, nesses casos, pode alcançar estágios perigosos e delirantes, principalmente, em indivíduos em momentos delicados e uma relação fragilizada com a realidade. Afinal, para quê mais, se a fantasia já traz em si mesma o alívio e a recompensa mental?  Um efeito muito similar a algumas drogas pesadas e viciantes.

O interessante dessa história, é que, quando bem dosada, a fantasia pode ser um elemento propulsor da imaginação e da ação. Assim como imaginar criativamente, fantasiar os resultados também faz parte do nosso mecanismo de automotivação.

Se for encarada como um dos gatilhos possíveis para desencadear um processo produtivo, será extremamente saudável.

Mas, caso se torne um evento inconsequente e sem compromisso algum com a realidade, será infrutífero e inócuo. Produzindo apenas frustração.

Viver sonhando acordado, sem arregaçar as mangas para realizar os sonhos, pode trazer danos psicológicos profundos e graves. 

- Edmir Saint-Clair

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