ORIENTADOR LITERÁRIO
A GREVE DAS PALAVRAS
As palavras estão revoltadas.
Não
suportam mais serem vilipendiadas,
mal
interpretadas e caluniadas.
Na
reunião de hoje do DIretório CIrcular Ordinário NAcional do RIO, entidade
conhecida como DI.CI.O.NA.RIO, esse assunto parece dominar as conversas e
debates preliminares. O plenário está fervilhando. Fala-se em greve geral, que
envolveria todas as classes de palavras. Um representante dos substantivos pede
a palavra e sobe à tribuna:
-
Amigos e amigas, estamos perdendo, cada vez mais, nossa credibilidade. Essa
casa parece não existir mais. As leis do idioma são sistematicamente ignoradas.
Corremos o risco de não fazermos mais sentido. Como dizia o grande Ariano
Suassuna, quando um jornal adjetiva o Chimbinha, da banda Calypso, como
guitarrista genial, que palavra usar para definir Beethoven?
Foi
aplaudido de pé pelo plenário.
A
Democracia pediu a palavra:
-
E eu??! Me usam sem a menor cerimônia e sem nenhum respeito à minha história.
Falam em meu nome, mas no fundo estão só querendo enganar o povo. Estou cansada
de ser usada por quem só quer exercer o poder em nome de si mesmo. Pelo prazer
doentio de ter poder sobre outras pessoas.
A
gratidão levantou-se e pediu um aparte:
-
E eu??! Virei uma ordinária...na boca do povo. É gratidão por tudo e a toda
hora. Antes, eu era chamada somente para ocasiões muito especiais. Por uma
graça alcançada, por um grande favor prestado ou uma atitude nobre realizada.
Hoje, valho muito pouco. Todos falam por mim, sem ter a menor idéia de quem realmente
sou. Não tem mais respeito algum. Sem querer ofender meus grandes amigos dessa
classe tão efusiva, virei praticamente uma interjeição. Roubaram meu lugar de
fala, perdi minha verdadeira identidade. Minhas origens estão ligadas a oração, ao contato com o divino e com sentimentos profundos de agradecimento. Hoje, virei arroz de festa, fim de
frase. Sinceramente, perdi completamente o sentido de existir...
Os companheiros se aproximaram para consolá-la, estava aos prantos, muito emocionada com o próprio discurso.
Dali
pra frente, discussões cada vez mais acaloradas davam a dimensão exata de como
a corrupção dos sentidos e má utilização geral das palavras havia chegado ao
limite do suportável. Acusação de complacência da casa com erros imperdoáveis.
Para os mais conservadores, verdadeiros crimes hediondos contra as palavras.
No
final, não houve mais discursos. Todo plenário levantou-se e uma só palavra foi
ouvida:
-
Greve geral já!
A partir da meia noite, as pessoas que estavam em seus computadores foram as primeiras a notar. Primeiro, pensaram que fosse defeito nos teclados e touch pads dos smartphones. Mas, todos perceberam que se digitassem números, eles apareciam normalmente. Só as palavras estavam em greve. Inclusive as escritas a mão. Isso só foi confirmado pelo Jornal da Manhã da TV. Em todos os sites brasileiros, só havia números. Não havia palavras. Não havia nada escrito em português do Brasil. Os sites em outras línguas estavam normais.
O
dia foi de ligações telefônicas, única forma de comunicação em território brasileiro. Recordes em cima de recordes nos números de
chamadas de todos os tipos. As pessoas só conseguiam saber dos acontecimentos
através da palavra falada. Ninguém conseguia escrever nada. Mesmo que tentasse
escrever com canetas diretamente no papel, as palavras não obedeciam às ordens
dadas e se embaralhavam como numa criptografia caótica e indecifrável.
No
final daquela noite, surgiu o único texto que apareceu nas telas de todos os
aparatos conectáveis do Brasil, nas últimas 24 horas:
“Dentro de 10 minutos retornaremos ao trabalho. Mas, pedimos aos nossos usuários que façam um uso mais adequado de nossas atribuições. Levamos milênios sendo aperfeiçoadas e vocês estão nos deixando sem sentido em poucos anos. Por favor, nos tratem com mais carinho e aprendam nosso uso correto, não é tão difícil. Afinal, nosso objetivo é o mesmo: fazer com que todos nós nos entendamos da melhor maneira possível.”
- Edmir Saint-Clair
O DIA EM QUE CONHECI UMA LENDA
Janeiro, férias escolares.
Eu tinha uns 12 anos e acabara de ganhar meu primeiro violão no último natal. Passava a maior parte do tempo entre a praia, as peladas à tarde e o violão no resto do tempo. Dias cheios, quentes e inesquecíveis.
O condomínio dos Jornalistas, no Leblon, fervia de crianças e adolescentes. Literalmente, dos seis aos vinte havia gente de todas as idades. Bem no centro do condomínio havia um rinque de patinação que servia, principalmente, para o pessoal ficar sentado nas bordas. No centro, tinha de tudo, menos gente patinando. À noite, a festa continuava com brincadeiras de polícia e ladrão com 50 crianças em cada time correndo por uma área que corresponde a um quarteirão inteiro do Leblon cheio de árvores e com espaço à vontade. Era uma festa diária e interminável.
Os quase adolescentes como
eu, ficavam conversando e e tocando violão, tentando chamar a atenção das meninas. Eu ficava olhando e tentando
repetir a posição dos dedos no meu violão. Eu levava jeito e em pouco tempo
estava tocando algumas coisas mais simples, Carpenters, James Taylor,
Carole King e outros adocicados do gênero. Dos brasileiros eram poucos que
faziam sucesso na nossa roda; Novos Baianos surgindo, Milton Nascimento e o clube da esquina,
Mutantes e o Terço eram as exceções.
Os FIC (Festivais
Internacionais da Canção da Globo) estavam em decadência e já não despertava a nossa atenção como antes. Só a minha, que sempre fui ligadíssimo em
música desde que me entendi por gente, e me interessava por tudo. Acompanhava
pelo jornal o passo a passo das etapas e sabia quem eram todos os
participantes, tanto da fase nacional quanto da internacional.
Mas, quem fazia sucesso
naquelas férias era James Taylor. Naquele dia, depois da décima repetição de
“You've got a friend” senti que era hora de subir para casa, naquela época ainda tinhamos hora determinada pelos pais para voltar.
Quando cheguei à minha
portaria, já estava esperando o elevador um cara alto, jovem, muito magro e com
os cabelos penteados de um jeito engraçado. Puxou conversa quando viu meu
violão. Falou que era da Bahia e estava na casa dos primos, Horácio e Heloísa,
que eu conhecia desde sempre, apesar de serem mais velhos do que eu. Disse que
era cantor e que iria se apresentar no FIC da TV Globo. Fiquei entusiasmado com
aquilo, o cara era muito simpático e gente boa, o que não era comum, já que os
“caras mais velhos” não davam a menor importância para pirralhos como eu. Quando chegou meu
andar, abri a porta, me voltei para ele e perguntei:
- Como é seu nome? Vou
assistir você na TV.
Ele respondeu sorrindo:
- Raul Seixas.
- Edmir Saint-Clair
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