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esse é o teu corre,
Não pára, sem descanso, sem remanso, corre,
esse é o teu corre,
Não dorme no ponto, só no transporte, perdeu o horário,
Não volta pra casa,
Esse é o teu corre,
Não come mosca, não come carne, não come a fruta,
Não come nada, mas tem que engolir de tudo
Não olha pro lado, não reclama,
Tem que correr mais,
Pra sair dessa lama,
Esquece da vida, esquece de tudo
Correndo de si, já nem sabe quem é,
Batendo cabeça, caçando um rumo,
Até que esse corre,
Chamado de vida,
Se acabe debaixo da linha do trem.
- Edmir Saint-Clair
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Ninguém o convidava mais para nenhum evento social do condomínio de alto luxo em que morava há pouco mais de quatro meses, na Barra da Tijuca. Era arquiteto e andava ganhando concorrências públicas aos montes, graças aos conhecimentos do pai e do sogro que, juntos, lhe garantiam trabalhos. Ele era talentoso e sempre se dedicara aos estudos, nem precisaria das mamatas. Mas, nunca saberia disso, uma pena para sua autoestima. Esses trabalhos, ainda lhe garantiam boa mídia, que lhe garantia novos trabalhos, que lhe pagavam cada vez mais. Ou seja, ele estava mais do que garantido, numa espiral ascendente. Um perfeito produto das capitanias hereditárias cariocas.
Mas,
de nada adiantava seu sucesso naquele reduto de iguais. Parecia que ninguém
gostava de sua presença. Até que sua esposa lhe jogou na cara com todas as letras:
- A
mulher do Dantas me falou que ninguém te aguenta porque você ganha todas.
-
Como assim?
-
Ela disse que em todas as dúvidas nas conversas você está sempre certo...ninguém aguenta mais.
Então,
o problema era esse! Por isso, em tão poucos meses, ninguém comentava mais nada
na frente dele...
Aquele condomínio era composto por moradores absolutamente iguais e qualquer um que apresente uma diferença perceptível é rejeitado. Se for escamoteado, tudo bem, todo mundo finge que não sabe. Tipo; todo mundo é, mas todo mundo finge que não é, e todo mundo finge que acredita. Sinceridade, nem pensar, é feio.
O grande pecado de Felinto era raciocinar e ter uma certa cultura e, por isso, nunca tinha dúvidas e estava sempre certo sobre a maioria os temas nas conversas. Não que fosse um gênio, os outros é que deixavam muito a desejar...e não se importavam com isso.
No
meio daqueles $abichõe$, e em tempos de Google, uma dúvida não leva mais que 15
segundos para ser sanada. E fosse qual fosse o assunto não tinha erro, o
Felinto estava sempre certo. Um belo sábado, em que ele chegou no bar dos tenistas,
onde o pessoal se reunia, apesar de ninguém jogar tênis, uma
discussão acalorada sobre em que ano foi lançado o Chevette acontecia. Felinto não teve dúvida e falou:
-Dia
24 de abril de 1973.
Todos ficaram em silêncio. Sabiam que Felinto estava certo, ele sempre estava. E, na milésima vez, ninguém mais ousou contestar-lhe. Nem naquele dia, nem em qualquer outro. Havia sido a gota d'água. A partir dali, sempre que Felinto chegava num ambiente onde uma conversa acontecia, o silêncio baixava. Ninguém queria correr o risco de falar algo errado e passar a vergonha de ser corrigido em público pelo Felinto. Ficou conhecido como o "desmancha bolinho" do condomínio, onde ele chegava o grupo se dispersava rapidamente.
Até que aquele dia, sua esposa teve a ideia que salvaria suas vidas
comunitárias. Combinaram a estratégia e a esposa ficou de conseguir uma
oportunidade para que pudessem colocá-la em prática.
Com
pena do casal, as esposas do condomínio (esposa em condomínio da Barra não tem
nome, é só esposa) resolveram ajudar a pobre da Marilda, esposa do Felinto.
Elas
organizariam uma festa e não avisariam aos maridos que o casal Felinto e
Marilda seria convidado. Quando todos já tivessem chegado, o casal rejeitado
apareceria de surpresa, não dando opção de fuga aos convidados.
Na
ocasião, uma das esposas louras do condomínio combinou com Marilda que faria perguntas
ao Felinto, e este teria que responder errado. Ela faria uma segunda, e de novo
ele deveria errar. E assim por diante, até que sua fama estivesse
completamente arruinada. Não seria difícil, os $abichõe$ de condomínios da
Barra não são muito espertos para coisas que exijam raciocínio.
Chegada
a grande noite, o casal esperou ansioso o horário combinado. Eles deveriam
chegar apenas após os últimos convidados. Seguiram a risca as instruções. Como
sempre, assim que entraram no deck da piscina onde se realizava o evento, o
silêncio foi tomando conta do local. Quando eles já começavam a se sentir por
demais incomodados, a anfitrião brada:
-
Felinto, duvido que você saiba em que ano foi lançado o forno de micro-ondas?
Silêncio
total. Além do inusitado daquela pergunta completamente aleatória e sem sentido, a anfitriã ousara mais do que qualquer um jamais se atreveria.
Felinto
quase responde na bucha, mas sua mulher consegue dar-lhe um beliscão a tempo.
Convicto como sempre, Felinto responde:
-
1957!
Seguem-se
os 15 segundos mais torturantes da vida de Marilda. Felinto parece tranquilo
enquanto todos os presentes consultam seus iPhones. De repente, ouve-se um
grito como se fosse um gol do Flamengo no maracanã:
-
Errooouuuuuu!!!!
Os
presentes vibram e festejam. Marilda é a mais empolgada. Mas, antes que a
vibração adormecesse, a anfitriã o desafia novamente:
- Felinto,
em que ano inventaram o secador de cabelos?
Fez
um silêncio ainda maior do que o primeiro.
Felinto
hesita, contempla a face alegre da esposa e responde:
-
1932!
Não
demorou muito até que todos os presentes explodissem num só grito:
-
Errooooouuuuu!!!
Outros se animaram e todos quiseram desafiar o Felinto, que vibrava cada vez que perdia. Marilda, finalmente, teve sua noite se sentindo uma legítima moradora de um condomínio da Barra da Tijuca.
A partir daquela
noite viveram felizes até um trair o outro. Ela com a vizinha do lado e
ele com o vizinho do outro. Mas, nenhum dos dois se mudou do condomínio e continuam amigos e felizes até hoje.
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De quem é essa culpa pairando sobre
todos,
O tempo todo,
Esse peso que transcende a vida,
Que tristeza é essa?
Por trás da beleza de todo por do
sol,
De cada lembrança,
De cada emoção mais profunda,
De onde vem essa melancolia transcendental,
Que inventa um carnaval,
Mas que nunca vira cinzas,
Nem
naquelas quartas-feiras,
É a fé na culpa,
Que só sente quem não a tem.
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O almoço com o amigo o deixara mais animado. Era a primeira vez que saía de casa depois da volta do hospital. Foram caminhando até a porta do prédio onde Daniel iria ter sua primeira sessão de psicanálise após a crise de pânico que o levara a ser internado.
Enquanto
esperava ser chamado pelo psicanalista, Daniel ficou olhando aquela antessala escura,
com móveis sem personalidade alguma e reproduções de obras surrealistas. A má
impressão inicial deu lugar a uma simpatia imediata assim que o Dr. Luciano o
recebeu. A sessão correu melhor do que esperava e, ao sair, ele tinha certeza
de ter encontrado o profissional certo para tratá-lo.
Quando
saiu do prédio onde fica o consultório, a Av. N.S. de Copacabana estava fervilhando.
O burburinho de pessoas, carros, ônibus, transeuntes e camelôs era enervante.
Ele se
sentia profundamente triste e tudo o irritava de forma doentia. Caminhou até a
praia, onde havia estacionado o carro, e diante do trânsito de 6 horas da tarde
na Av. Atlântica, resolveu ver o pôr do sol na praia. Só então, percebeu que
não havia sequer pensado em ligar para o escritório, isto o fez sentir-se menos
neurótico. Caminhou até o arpoador e sentou-se na ponta da pedra que mais
avança sobre o mar. A brisa sopra fraca e gostosa, e o barulho das ondas nas
pedras é acolhedor. Estava deprimido como já era de costume, mas, pelo menos
dessa vez, estava com vontade de não estar.
O sol, as cores, as ilhas, a praia, tudo em
seu lugar. Fechou os olhos para que o barulho das ondas se acentuasse e com os
olhos fechados reproduziu a paisagem em sua mente, começou a repetir a
brincadeira. A brisa e o barulho, ele sentia mais intensamente de olhos
fechados, e tentava reproduzir exatamente a paisagem que estava vendo. Em
seguida, abria os olhos para checar a semelhança com a imagem real. A primeira
coisa que reparou é que na paisagem real as cores tinham mais brilho. Tudo
tinha mais brilho. Fechou os olhos novamente, e o brilho continuava fraco, por
mais que se esforçasse não conseguia reproduzir o brilho real em sua mente.
Numa das várias vezes em que fechou os olhos, percebeu uma presença muito próxima,
e ouviu claramente uma voz dizer:
Ele abriu os olhos rapidamente e
procurou em volta, sem ver ninguém que estivesse a uma distância plausível de
poder falar-lhe ao ouvido e se afastar com tanta rapidez. Muito esquisito. Ele tinha certeza e ainda
tinha, com clareza, a lembrança do som da voz que ouvira.
Daniel
não sabia, mas a mudança estava apenas começando.
Haveria
outros sinais.
(Continua...)
Edmir Saint-Clair
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