ORIENTADOR LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO - especializado em redação criativa - desperte sua criatividade adormecida.

A MEDALHA DE SÃO JORGE

A ansiedade é grande. Ele não vê o filho há tempo demais. A saudade aperta ainda mais agora que faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quer que Felipe vá buscá-lo no desembarque — pode haver imprevistos nas conexões e não quer que o pai fique de molho esperando no aeroporto. Está vindo de Pequim, depois de cinco anos na China.

Felipe decide descansar um pouco — a ansiedade dos últimos dias o deixou exausto. Deita-se no sofá da sala e adormece. Passou a noite acordado, ansioso, pensando na volta do filho. Agora, cede ao cansaço.

 O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h06 daquela manhã.

A campainha toca insistentemente. Ele desperta sobressaltado e, ato reflexo, corre até a porta.

 — Diego... Dá um abraço, filhão...

 Diego abraça o pai com força e saudade, iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e familiar. Pai e filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor.

Felipe pega uma das malas no hall do elevador, o filho carrega as outras. Pelo volume da bagagem, parece que veio de vez. Tomara, ele pensa.

Voos internacionais sempre chegam cedo pela manhã. Dá tempo de brincarem um pouco nas ondas do final do Leblon no final da  tarde. Felipe entrega a Diego a prancha que mandou fazer de presente para ele.

Diego se emociona com a recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daqueles abraços demorados e saudosos. Tem orgulho do pai. A felicidade dos dois transborda. São daqueles momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca mais vai sair. Olhar para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.

— Ele é meu filho, pensa Felipe.

— Ele é meu pai, pensa Diego no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são grandes demais, não cabem em palavras.

A felicidade acontece explicitamente naquele momento: pai e filho desfrutando a plenitude da presença do outro.

Combinam que Diego vai dormir um pouco — viajou mais de trinta horas. Está exausto.

Felipe beija a testa do filho e sai do quarto.

Diego não deve acordar antes das duas da tarde. Felipe tem quase seis horas pela frente. Decide que é melhor almoçarem em casa, para que o filho possa acordar com calma e sem pressa. Lembra-se da feijoada de sábado do restaurante Degrau — a mesma que comiam desde que Diego era pequeno e ainda não gostava. Mas, depois que o filho se tornara adolescente, virou programa obrigatório de todos os sábados. É a pedida perfeita para hoje.

Ele volta até a porta do quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo em si.

Uma feijoada, e depois uma boa remada no mar de fim de tarde outonal. A luz mais bonita do Rio de Janeiro.

Seria perfeito se tivessem um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fuma. Fumar um baseado com o filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um ritual quase xamânico.

Faz tempo que Felipe não compra maconha, e perdeu o contato com os fornecedores ocasionais do bairro. Normalmente, é uma meia dúzia de amigos, moradores do próprio Leblon, que vendem para conhecidos. Ou a velha opção de sempre: a doleta da Cruzada. Pequenas quantidades, geralmente um cigarro, vendido a varejo. Nesse ponto do fim de semana, se quiser fumar um baseado com o filho antes da praia, vai ter que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é tranquilo, ele pensa. Sorri sozinho: a última vez que foi lá comprar um baseado deve ter sido há pelo menos uns vinte e cinco anos.

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Diego volta três dias antes de completar trinta anos. Um adulto pleno, um competente profissional de I.A. com formação altamente especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai — não importando com quem Felipe estivesse casado — só moraram juntos nos dois primeiros anos de vida dele, enquanto seus pais foram casados. Época da qual, obviamente, não se lembra. Depois disso, lembra-se dos fins de semana, férias e feriados — como todo filho de pai separado. Pouco antes de viajar para a China, passaram onze meses numa convivência maravilhosa e tardia, para ambos, na casa de Felipe.

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Felipe mora na Rua Padre Achotegui, na Selva de Pedra. A Cruzada São Sebastião fica a um quarteirão de distância. Antes, ele decide passar no restaurante Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem. Melhor garantir que nada saia errado. A feijoada de sábado do Degrau é disputada no bairro e costuma acabar cedo. A ideia é servirem-se em casa, para que Diego acorde devagar e coma na maior preguiça que conseguir.

Já na praia, depois de passar no Degrau, Felipe nota que continua ansioso e atribui à excitação pela chegada do filho. Diego já chegou, mas ele ainda anseia pela conversa, pela troca que certamente terão. E por tudo o que ainda viverão juntos a partir dali. Um chopinho no Clipper, com certeza, vai dissipar essa sensação estranha. Onze da manhã de sábado — a essa hora é certo encontrar os amigos no bar.

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Diego não consegue parar de se mexer na cama. Está inquieto. Acorda incomodado, pensa que talvez seja o frio do ar-condicionado e se cobre mais. Olha a hora no celular: 11 horas da manhã. Dormiu menos de três horas... isso não costuma acontecer. Normalmente, dorme seis horas de um sono calmo e contínuo. Sempre agradece mentalmente ao pai por tê-lo introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribui a isso sua calma, seu equilíbrio. Mas não agora.

Ainda cansado e sem conseguir adormecer novamente, sente uma ansiedade angustiante.

Rola na cama até o cansaço vencê-lo. Adormece. Mas o sono não é repousante.

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Felipe termina o segundo chope. Conversa com amigos da vida toda — sobre a chegada de Diego, claro — e isso faz o tempo passar com mais leveza. Mas nem tanto. Enquanto espera a conta, a sensação estranha retorna. Ansioso, tenso. Ele não é assim, nunca foi, e não há motivo para estar daquele jeito agora.

Menos mal, o tempo passou. O relógio marca meio-dia em ponto.

Hora de seguir para a Cruzada. Despede-se e parte.

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Diego acorda sobressaltado de um sono rápido e agitado. Olha o celular: meio-dia. Tem certeza de que não conseguirá mais dormir. E ficar na cama só vai piorar.

Atribui a angústia à excitação da chegada, ao fuso horário, ao acúmulo de sensações. Tudo junto, talvez. Não está acostumado àquela inquietação que lhe revirava o estômago. Uma ansiedade sem motivo, sem explicação. Detesta se sentir confuso.

Há algo diferente. E errado.

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Felipe atravessa a avenida Ataulfo de Paiva e desce pela rua Carlos Góes, em direção à Selva de Pedra. Vira à direita na rua Humberto de Campos e segue rumo à Cruzada. Ao parar no cruzamento com a avenida Afrânio de Melo Franco, repara que a porta da delegacia está movimentada. Nunca se preocupou com isso. Não vai ser hoje.

O sinal abre, ele atravessa. Na esquina oposta, vê Adilson saindo da Igreja Santos Anjos e acenando. Felipe acena de volta.

São amigos desde pequenos. Jogaram juntos no time de futebol de praia e em muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas. Depois, ao entrarem na vida adulta, seguiram caminhos diferentes. Hoje, Felipe é arquiteto e Adilson, motorista de uma empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e se orgulha disso. Ainda mora na Cruzada São Sebastião, no apartamento que herdou dos pais.

Apesar de sempre ter tido amigos por lá, Felipe entrou poucas vezes naquela comunidade. No Leblon, era comum que amigos que moravam na ali pegassem baseados para os outros. Faziam “um voo para os amigos”, como se dizia na gíria da época. Sempre foi assim.

No meio de uma conversa cordial, Felipe pergunta se Adilson poderia pegar uma doleta. A reação é imediata — e inesperada.

Adilson se mostra visivelmente contrariado com o pedido do amigo. Na verdade, se sente ofendido e responde de forma bastante incisiva.

— Felipe, sempre achei você um cara legal. Gosto de você... temos cinquenta anos de amizade, nunca mais me peça isso. Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.

O constrangimento é mútuo e bastante incômodo. Os dois se conhecem desde meninos. Mas, naquele instante, uma distância nunca antes percebida dá-lhes um tapa na cara. A distância que, no Leblon,  todos fingem que não existe se escancara ali, na esquina da Igreja Santos Anjos.

Eles apertam as mãos e Adilson se afasta, caminhando rumo à Cruzada.

Felipe permanece parado por alguns minutos, tentando digerir o que acabou de acontecer. Observa Adilson se afastar, até sumir entre os prédios. Sente vergonha.

Recupera-se ao lembrar que Diego o espera. Vai ter que entrar na Cruzada para comprar. Volta a caminhar, tentando manter o passo nem rápido, nem lento demais. Normal. Não está acostumado. A angústia volta. Lamenta ter ofendido o amigo — mesmo que sem querer.

Está passando em frente à portaria dos fundos da AABB quando vê as primeiras pessoas correndo. Logo depois, alguns tiros, mas não consegue identificar de onde vêm. Não sabe para onde correr, que lado proteger.

A seguir começa a ouvir sirenes de polícia. Gritos vindos de todas as direções. Barulho de carros vindo da direção da delegacia. Os tiros aumentam. Os transeuntes, muitas mulheres e crianças, correm buscando abrigo.

Felipe percebe que está no meio do fogo cruzado.

De repente, sente algo rasgar e queimar sua barriga — uma dor profunda — e o sangue quente jorra e escorre pelas pernas e genitais. Ele cai, as mãos na barriga. Solta um grito alto de dor. É como se uma flecha de aço em brasa tivesse atravessado seu abdômen.

Felipe tenta controlar a respiração enquanto pressiona o ferimento, que sangra sem parar e empoça no cimento desgastado da calçada.

É desesperador sentir o sangue escorrer e saber que não há possibilidade de socorro naquele momento.

Pensa no filho — e a dor ganha alma. Não pode morrer ali. Não hoje. Os tiros continuam.

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Diego adora os requintes aos quais o pai se dedica. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de expresso italiano, sempre com dezenas de opções e variedades de grãos, que ele mói na hora.

O sabor está excelente, mas a ansiedade aumenta. Ele vira a xícara impaciente, sem degustar. Arruma-se e decide descer até a rua. Aquela inquietação desconhecida é agoniante. Por quê? A falta de causalidade intensifica ainda mais a angústia de alguém tão acostumado ao mundo lógico da programação computacional.

Diego salta do elevador e, da portaria, já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de que há algo errado é cada vez mais intensa.

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Felipe luta para se manter acordado, mas as vozes e os ruídos se dissolvem num eco cada vez mais distante. Adilson é o primeiro a aparecer, abaixa-se e apoia sua cabeça com as mãos.

— Puta que pariu! Que merda, meu véio! — Grita Adilson assustado, enquanto digita o celular chamando a ambulância do SAMU. Ali na Cruzada São Sebastião todos têm o número desse telefone. Após a ligação, Adilson se agacha novamente ao lado de Felipe, que já está bastante pálido. O tiro é de grosso calibre e atingiu o lado direito do abdômen. A hemorragia é grande.

Felipe fala com a voz enfraquecida:

— Adilson, por favor, avisa meu filho.

— Você ainda mora na Rua Padre Achotegui?

Felipe confirma com um movimento de cabeça. Percebe que Adilson chora. Isso não é um bom sinal.

Adilson arranca um pingente do pescoço e parte a medalha em dois:

— Fica com isso na mão e pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou dar a outra metade para o Diego.

Felipe apenas percebe quando os enfermeiros abrem espaço e o colocam na maca. Tudo parece nebuloso e distante. Os sons e vozes têm eco. Os paramédicos fazem alguns procedimentos ali mesmo. Ainda dá tempo de reforçar o pedido a Adilson.

Ele aperta a metade da medalha nas mãos e começa a rezar do jeito que ainda se lembra.

Os solavancos da maca sendo encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados. Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente, literalmente, a vida se esvaindo até desfalecer.

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Em poucos minutos, vários moradores já estão na rua — é sempre assim quando algo extraordinário acontece nessa parte do Leblon. A Selva de Pedra tem seu jeito próprio de ser. Diego continua cada vez mais ansioso, mais angustiado. Tenta entender algo daquela agitação quando o porteiro do seu prédio puxa conversa:

— Troca de tiros na Cruzada, tem um baleado grave.

Um calafrio corta Diego como um bisturi gelado ao longo da espinha. Ele reconhece um homem caminhando com passos apressados vindo da praça em direção à sua portaria — é Adilson. O amigo do pai que jogou futebol de praia com ele.

E, que mora na Cruzada São Sebastião!

As pernas de Diego ameaçam ceder. Não pode ser. Mas quanto mais Adilson se aproxima, mais o olhar dele confirma o pior.

Adilson conhece Diego desde que ele nasceu.

Chega perto e o afasta da presença de outras pessoas.

— Diego, seu pai foi baleado. Foi levado para o Hospital Miguel Couto e pediu para você ir para lá. Eu vou com você. Mas, antes, ele pediu que você pegue os documentos dele que estão na mesinha de cabeceira.

— É grave? — Pergunta Diego.

— Estava sangrando muito, os paramédicos não disseram nada.

Adilson toca o ombro de Diego antes que ele siga para o prédio. Tira do pescoço a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a ele.

— Fica com isso na mão e pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber. Para São Jorge de Ogum. A outra metade está com ele. Agora vai. Comece a rezar agora!

Diego está em choque. Age como um robô, mecanicamente. Ele não sabe rezar. Nunca aprendeu, nunca o ensinaram. Mas a necessidade é a mãe de todas as bênçãos, e ele pede a São Jorge de Ogum com todas as suas forças. Com uma fé que nunca soube que possuía.

O elevador chega. Ele entra, toca o número do andar e volta à reza improvisada. Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como há poucas horas atrás. Consegue sentir, quase fisicamente, o abraço que trocaram. Sua alma se aquieta. Estranhamente, se aquieta.

Quando abre os olhos, ainda está no segundo de dez andares. Parece que passou muito mais tempo, sente-se estranho. Abre a mão — a metade da medalha de São Jorge quase feriu sua pele, de tão forte que a apertava.

O elevador chega. Ele sai e olha para a porta do apartamento do pai — leva um susto que quase o derruba. Suas malas estão ali, na porta. Ele se olha: está com a mesma roupa de quando chegou pela manhã.

O que é aquilo?

A única coisa que permanece imutável é a metade da medalha, ainda em sua mão marcada. Mas não há tempo para pensar. Seu pai está morrendo no hospital. Precisa dele.

Procura a chave do apartamento no bolso — não a encontra. As malas na porta o desconcertam por completo. Por impulso, toca a campainha. Ouve sons do outro lado. Toca de novo. Ouve o barulho da fechadura sendo destrancada. E, nesses milésimos de segundo, deseja o impossível.

A porta se abre — e Felipe aparece, com a expressão mais assustada que Diego já viu. Os dois se abraçam e choram. Cada um com sua metade da medalha de São Jorge de Ogum na mão.

O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h06 daquela manhã — pela segunda vez no mesmo dia.

- Edmir Saint-Clair


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OS LACERDINHAS (O INCÊNDIO DA PRAIA DO PINTO)

Nunca mais vi um Lacerdinha. Nem ouvi falar. 

Pensando bem, faz muitos anos, décadas, que não tenho notícia. O Lacerdinha era um inseto do tamanho de um mosquito pernilongo, só que preto, mais encorpado e sem as pernas longas. E não transmitia doenças.

Não era um mosquito: era um inseto pretinho que infestava o Leblon, principalmente as transversais, numa certa época do ano. Minhas lembranças deles estão ligadas ao tempo em que eu morava na Rua José Linhares.

 No final da tarde, eram cigarras cantando e Lacerdinhas caindo das árvores. Às vezes, caíam nos olhos. Ardia e coçava muito! Deixava as pálpebras inchadas e minha mãe preocupada.

Atraídos por roupas claras, sobretudo as amarelas, frequentemente acertavam os olhos e causavam uma irritação intensa.

Esses minúsculos insetos eram chamados de Lacerdinha em referência a um antigo político carioca, Carlos Lacerda, governador no tempo do estado da Guanabara.

Descobrimos que eles ficavam nas folhas mais novas das árvores, ainda enroladas. A gente as desenrolava e surgiam um monte de Lacerdinhas em seu interior.

Para mim, os Lacerdinhas despertam uma lembrança marcante. Uma história que me provoca vergonha até hoje. Eu tinha uns cinco ou seis anos e era acostumado a brincar na rua. Havia muitas crianças, tanto no meu prédio quanto nos vizinhos.

Naquele tempo, no Leblon, a maioria das casas tinha uma empregada que morava na favela Praia do Pinto ou na Cruzada São Sebastião. Quando, por algum motivo, a empregada da minha mãe levava o filho para o trabalho, no caso, a minha casa, ele se tornava mais um amigo que passaria o dia brincando comigo, meu irmão e nossos outros amigos.

Seu apelido era Bilico. O nome era Bernardo. O dia era sábado, 10 de maio de 1969, véspera do Dia das Mães. Dona Celestina e minha mãe estariam ocupadas preparando o almoço comemorativo do dia seguinte.

Bilico era um menino adorável, mais novo que eu um ano, e mais velho que meu irmão apenas alguns meses. Negro, com um sorriso de dentes grandes e brancos. Tímido, mas engraçado, falava de uma maneira diferente que eu achava legal. Quando passava o dia conosco, fazia tudo junto: almoçava, tomava banho, brincava, lanchava, descia para a rua com a gente. Era sempre divertido.

Nesse dia, Bilico chegou cedo, tomou café conosco e descemos para brincar. Era época de Lacerdinha.

Dentre os garotos que brincavam na rua, havia um que era especialmente assustador para mim e meu irmão. Arlindo era mais velho, mas não andava com os garotos da idade dele. Gostava de nos intimidar e bater. Ninguém sentia pena quando o pai dele aparecia chamando-o, sempre gritando e batendo. Tínhamos medo dos dois.

Nessa tarde, estávamos catando Lacerdinhas nas árvores. Abríamos as folhas e observávamos os insetos se mexendo.

De repente, Arlindo pegou alguns Lacerdinhas e os enfiou com violência nos olhos do Bilico, que observava curioso.

— Tá com fome? Toma, neguinho! — falou, com mais raiva do que o habitual.

Bilico começou a coçar os olhos e a chorar com a ardência. Todos os meninos riram. Menos eu, meu irmão e o próprio Bilico, que saiu andando e chorando na direção da portaria do nosso prédio.

Foi um sentimento estranho e desconfortável que nunca havia experimentado antes. Anos mais tarde eu saberia que o nome era constrangimento. Eu senti vergonha de algo que não sabia exatamente o que era.

Bilico não subiu para nossa casa, ficou num canto da portaria chorando baixinho. Disse que se chegasse lá em cima chorando e com o olho inchado a mãe dele iria brigar. Não queria arrumar confusão com os "filhos das madames".

Depois de algum tempo, parou de chorar e subimos. Pela escada. Naquela época, empregados e "pessoas de cor" só podiam subir pelo elevador de serviço. Bilico só subia pela escada.

Quando chegamos em casa, Dona Celestina viu o olho do filho inchado e muito vermelho. Não falou nada, mas fechou a cara. Chamou Bilico para a cozinha e de lá só o vimos quando foram embora, bem mais tarde. Lembro bem da cara de choro dele se despedindo da gente.

Aquele sábado me marcaria para sempre.

Naquela mesma noite, um misterioso e devastador incêndio consumiu totalmente os barracos de madeira da Praia do Pinto, deixando centenas de famílias sem teto. Era 11 de maio de 1969, Dia das Mães.

A casa da Dona Celestina e do Bilico virou cinzas junto com toda a favela. Não sobrou nenhum barraco de pé.

Dona Celestina nunca mais voltou.

Bilico nunca mais veio passar o dia conosco.

Tenho muitas saudades deles e me lembro dos dois com muito carinho e uma ponta de vergonha. Até hoje.

-  Edmir Saint-Clair


A favela banida


A história sobre o incêndio da favela Praia do Pinto.

EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR


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VESTÍGIOS DE CIVILIZAÇÕES HUMANAS EXTINTAS?

 

           Em 2025, uma varredura inovadora sob a Pirâmide de Kéfren revelou um complexo subterrâneo surpreendente. Cinco estruturas em níveis múltiplos, oito poços cilíndricos de 648 metros de profundidade e duas imensas câmaras cúbicas se estendem por 2 km abaixo do Planalto de Gizé.

Usando tomografia avançada com Radar de Abertura Sintética (SAR), pesquisadores das universidades de Pisa e Strathclyde desafiam o que sabíamos sobre as pirâmides. Teorias emergentes sugerem que essas formações podem ser vestígios de uma civilização ancestral avançada – ou até parte de uma rede energética perdida, ecoando as especulações de Nikola Tesla.

Será que as Grandes Pirâmides eram muito mais do que simples tumbas? O que mais poderá estar oculto sob as areias do Egito?

Luciano Villar


O ROUBO QUE NUNCA ACONTECEU

 

    Tudo dentro do planejado. Com alguma folga. Dá tempo de tomar um coco apreciando esse maravilhoso pôr do sol.

- A meditação tem me feito bem, pensou Jair.

Ele avista seu alvo a uma distância ideal. Levanta-se e mistura-se entre os corredores que passam. Regula seus passos no ritmo dos mais lentos. Quando percebe a aproximação esperada, reduz  mais um pouco seu ritmo, de modo que durante a ultrapassagem pelo alvo possa forçar alguma troca de olhares. Após a ultrapassagem bem sucedida, a distância aumenta apenas um pouco, o suficiente para não despertar suspeitas. E assim, foram e voltaram até o arpoador. Na volta, a distância ficara maior,  ficar muito próximo poderia despertar suspeitas. Jair sabe onde o alvo vai parar. Havia estudado minuciosamente a rotina do jovem deputado estadual.

Nos últimos metros, acelera a marcha e quando para no quiosque está ofegante, como deveria. Não foi difícil surgir assunto entre os dois enquanto tomam água de coco. Quando o alvo se despede, já existe uma certa camaradagem tipicamente carioca entre corredores de praia.

A partir daquele momento, tudo tinha que ter acertividade e rapidez. Assim que o alvo atravessa as duas pistas da praia, na direção da Rua Cupertino Durão, Jair apressa o passo e rapidamente alcança o outro lado da rua, onde o alvo tem de passar, obrigatoriamente. Encosta-se numa das árvores, entre dois carros estacionados, e aguarda. Ninguém vindo de nenhum dos lados.

O alvo passa e é abordado de forma agressiva, não deixando margem para reação alguma.

 - Sérgio, isso aqui é uma arma. Fique quieto e preste atenção. Vamos até a sua casa, andando devagar e conversando como dois velhos amigos. Se você fizer qualquer coisa errada morre. Ouviu? Responde! Ouviu?!

Jair foi bastante agressivo na aproximação, não deixando espaço para argumentações. Sérgio estava paralisado e apenas balbuciou um sim quase inaudível. Sempre foi uma pessoa muito medrosa.

Jair continua.

- Quanto mais nervoso você ficar mais perigoso fica para nós dois. Então fique calmo e tudo vai dar certo. Prometo pra você.

Com a arma dentro do agasalho, mas já devidamente apresentada a Sérgio, os dois continuam a andar na direção do elegante prédio do jovem deputado.

Sobem direto, sem parar na portaria. Morador não precisa se identificar. E, na maioria, nesses prédios, não se dá boa noite a porteiros.

Sérgio mora sozinho.

Na ampla sala, Sérgio não sabe o que estava realmente acontecendo, mas já percebe que um assalto comum não é.

Sérgio nunca fora dos mais corajosos, por isso estava acostumado a ser submisso sem questionar. Jair o manda sentar-se no sofá da sala.

À essa altura, por todo o contexto percebido, Sérgio começa a desconfiar porque Jair está ali. Ainda bastante nervoso tenta amenizar o clima.

- Fique tranqüilo, pode levar tudo o que você quiser. Não vou causar nenhum problema. Só quero não quero violências, por favor.

Sérgio tem a voz trêmula. Seu medo é visível e patético.

- Sérgio, sei que você tem 500 mil dólares em cédulas e cheques de viagem aqui no seu apartamento. Sei a que horas, onde, e a mando de quem você pegou esse dinheiro. Sei que ninguém pode saber que esse dinheiro existe e muito menos que está aqui na sua casa.

Sérgio ficou completamente branco. Pensou que seria roubado, mas aquilo era bem mais do que isso. Definitivamente, não era um simples assalto. Havia algo por trás.

- Você é policial federal? Perguntou Sérgio.

- Sorte sua que não!! Se fosse teria que matá-lo. Respondeu Jair soltando um riso.

Ainda sem entender, Sérgio percebe que Jair já não parece tão violento quanto no início, mesmo assim não consegue parar de tremer. Sempre fora medroso. Era óbvio que não estava lidando com um ladrãozinho pé de chinelo. Pelo linguajar e pela postura, Jair é profissional. Talvez, das forças de segurança. Na verdade, não fazia idéia de quem se tratava e de onde surgira aquele homem.

Jair pega seu celular e começa a filmar Sérgio.

- Você vai gravar? Por quê?! Pergunta Sérgio.

- Se levanta e vai pegar a mala com o dinheiro. Diz Jair apontando o celular.

Sérgio hesita:

- Não está mais aqui... o secretário do senador já pegou...

A voz de Sérgio falha e irrita Jair, que rapidamente troca o celular pela pistola, engatilha e aponta para ele.

O corajoso deputado se transfigura apavorado, e imediatamente revela que a mala está dentro do armário no quarto.

Jair não segura o riso. Os dois se recompõe, Jair volta a falar manso e nota que o deputado havia mijado nas calças.

Sérgio entra em seu quarto, abre o armário, pega a mala, coloca-a sobre a cama e a abre. Jair grava tudo ininterruptamente com o celular. Enquadrando o quarto inteiro, alternando com closes da mala e dos retratos de família no quarto do deputado, para caracterizar, com detalhes, onde estão naquele momento.

A seguir, voltam para a sala e Jair continua gravando a mala aberta sobre a mesa de jantar e a sala inteira ao fundo.

Pronto, aquele vídeo não deixa dúvidas de que aquele dinheiro esteve com o deputado dentro de sua casa.

Jair recolhe a mala cheia de dólares. Diante do atônito e medroso deputado mijado, recoloca seu agasalho esportivo, guarda o celular e a pistola no bolso.

- Sérgio, agora vai ser o seguinte. Daqui a duas horas vou enviar para você, pelo seu whatsApp, o vídeo que fizemos agora. Ou seja, eu tenho a prova de que você estava com 500 mil dólares em dinheiro vivo, e que, obviamente, não tem como explicar porque vieram parar aqui sem comprometer muita gente graúda. 

Mostre esse vídeo para o seu "pessoal”, porque ele também garante que você não pode ser preso para não delatar. Ou seja, não ter acontecido nada aqui, será melhor para todo mundo. 

Se eu souber que tem alguém atrás de mim, jogo esse vídeo na internet na hora, os jornalistas vão adorar e isso vai virar o próximo escândalo nacional da semana.

Sérgio ouviu calado, e calado permaneceu. 

Afinal, oficialmente, aquele dinheiro nunca existiu e ninguém poderia reclamá-lo sem se incriminar. Não tinha nada a dizer. Não podia fazer nada. A não ser aguardar o vídeo para garantir que continuaria vivo e interessante para o poder que representava.

Jair saiu do prédio tranquilamente, não sem antes perguntar ao simpático porteiro quanto estava o jogo do Flamengo contra o Botafogo no Maracanã:

- 4 a Zero pro Mengão, doutor! E ainda tá no primeiro tempo...

Era o que faltava para coroar aquela noite dourada para Jair. Afinal, como diz a sabedoria popular:

- Ladrão...que rouba ladrão...Tá perdoado!

  - Edmir Saint-Clair

Este conto faz parte do Livro "A Casa Encantada - Contos do Leblon"


 
 

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A GREVE DAS PALAVRAS

 As palavras estão revoltadas.

Não suportam mais serem vilipendiadas,

mal interpretadas e caluniadas. 

Na reunião de hoje do DIretório CIrcular Ordinário NAcional do RIO, entidade conhecida como DI.CI.O.NA.RIO, esse assunto parece dominar as conversas e debates preliminares. O plenário está fervilhando. Fala-se em greve geral, que envolveria todas as classes de palavras. Um representante dos substantivos pede a palavra e sobe à tribuna:

- Amigos e amigas, estamos perdendo, cada vez mais, nossa credibilidade. Essa casa parece não existir mais. As leis do idioma são sistematicamente ignoradas. Corremos o risco de não fazermos mais sentido. Como dizia o grande Ariano Suassuna, quando um jornal adjetiva o Chimbinha, da banda Calypso, como guitarrista genial, que palavra usar para definir Beethoven?

Foi aplaudido de pé pelo plenário.

A Democracia pediu a palavra:

- E eu??! Me usam sem a menor cerimônia e sem nenhum respeito à minha história. Falam em meu nome, mas no fundo estão só querendo enganar o povo. Estou cansada de ser usada por quem só quer exercer o poder em nome de si mesmo. Pelo prazer doentio de ter poder sobre outras pessoas.

A gratidão levantou-se e pediu um aparte:

- E eu??! Virei uma ordinária...na boca do povo. É gratidão por tudo e a toda hora. Antes, eu era chamada somente para ocasiões muito especiais. Por uma graça alcançada, por um grande favor prestado ou uma atitude nobre realizada. Hoje, valho muito pouco. Todos falam por  mim, sem ter a menor idéia de quem realmente sou. Não tem mais respeito algum. Sem querer ofender meus grandes amigos dessa classe tão efusiva, virei praticamente uma interjeição. Roubaram meu lugar de fala, perdi minha verdadeira identidade. Minhas origens estão ligadas a oração, ao contato com o divino e com sentimentos profundos de agradecimento. Hoje, virei arroz de festa, fim de frase. Sinceramente, perdi completamente o sentido de existir...

Os companheiros se aproximaram para consolá-la, estava aos prantos, muito emocionada com o próprio discurso.

Dali pra frente, discussões cada vez mais acaloradas davam a dimensão exata de como a corrupção dos sentidos e má utilização geral das palavras havia chegado ao limite do suportável. Acusação de complacência da casa com erros imperdoáveis. Para os mais conservadores, verdadeiros crimes hediondos contra as palavras.

No final, não houve mais discursos. Todo plenário levantou-se e uma só palavra foi ouvida:

- Greve geral já!

A partir da meia noite, as pessoas que estavam em seus computadores foram as primeiras a notar. Primeiro, pensaram que fosse defeito nos teclados e touch pads dos smartphones. Mas, todos perceberam que se digitassem números, eles apareciam normalmente. Só as palavras estavam em greve. Inclusive as escritas a mão. Isso só foi confirmado pelo Jornal da Manhã da TV. Em todos os sites brasileiros, só havia números. Não havia palavras. Não havia nada escrito em português do Brasil. Os sites em outras línguas estavam normais.

O dia foi de ligações telefônicas, única forma de comunicação em território brasileiro. Recordes em cima de recordes nos números de chamadas de todos os tipos. As pessoas só conseguiam saber dos acontecimentos através da palavra falada. Ninguém conseguia escrever nada. Mesmo que tentasse escrever com canetas diretamente no papel, as palavras não obedeciam às ordens dadas e se embaralhavam como numa criptografia caótica e indecifrável.

No final daquela noite, surgiu o único texto que apareceu nas telas de todos os aparatos conectáveis do Brasil, nas últimas 24 horas:

“Dentro de 10 minutos retornaremos ao trabalho. Mas, pedimos aos nossos usuários que façam um uso mais adequado de nossas atribuições. Levamos milênios sendo aperfeiçoadas e vocês estão nos deixando sem sentido em poucos anos. Por favor, nos tratem com mais carinho e aprendam nosso uso correto, não é tão difícil.  Afinal, nosso objetivo é o mesmo: fazer com que todos nós nos entendamos da melhor maneira possível.”

- Edmir Saint-Clair


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