ORIENTADOR LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO - especializado em redação criativa - desperte sua criatividade adormecida.

DIRIGIR A SI MESMO

 Vivemos num mundo saturado de estímulos. Reagimos sem perceber, quase no automático, e confundimos movimento com direção. Mas o verdadeiro poder, a liberdade genuína, nasce de uma habilidade rara: influenciar a si mesmo. Nasce do nosso desejo de desenvolvermos o nosso poder de decidir nossas ações e de influenciar nossas reações.

 
O autoconhecimento é essa bússola interna. Ele revela o que nos move e o que nos paralisa; mostra, com uma clareza incômoda, as forças invisíveis que nos impulsionam ou nos freiam. Compreender nossas reações é um ato de protagonismo. Não se trata de reprimir sentimentos — eles são parte da nossa natureza — mas de interpretá-los, compreendê-los e canalizá-los de forma inteligente e consciente.

A neurociência já provou que pequenas ações, alguns truques, se repetidos com consistência, são capazes de redesenhar conexões cerebrais e criar novas rotas emocionais. É assim que nos tornamos alquimistas da própria psique.
Uma dessas transmutações é, para mim, um exercício diário: transformar ansiedade em animação. Não é metáfora — é fisiologia. Ansiedade e entusiasmo são irmãs quase gêmeas: ambas aceleram o coração, elevam a energia, inflamam o sistema nervoso. A diferença está na lente com que olhamos para essa energia. E isso faz toda a diferença na vida prática. 

Com treino e intenção, a troca de percepção se torna instantânea. O que antes ameaçava me paralisar, agora se converte em combustível criativo e desempenho afiado.

 
O resultado é simples: energia reorganizada, foco ampliado e a sensação concreta de estar no controle. Essa é a maestria de dirigir a si mesmo — uma jornada contínua, sustentada pela vontade pró ativa de viver com alegria e sentido.
Afinal, quem aprende a se conduzir jamais será conduzido pelos acasos da vida ou pela vontade dos outros.

 
Edmir Saint-Clair

SEM EXPLICAÇÃO

 

        A depressão o havia consumido por meses, transformando seu mundo em uma névoa cinza e opressiva. Tudo mudou naquela noite em que sonhou com Clarinha, sua primeira paixão, a menina de cabelos cacheados e sorriso contagiante que o fazia sorrir até nos dias mais sombrios de sua infância.

No dia seguinte, ele acordou com uma sensação diferente. A campainha tocou, e quando Noah abriu a porta, seu coração quase parou. Era Clarinha, tão linda quanto ele se lembrava, apesar de terem se conhecido aos 9 anos, ela conservava o mesmo sorriso e os olhos puxadinhos.

Pouco conversaram, a despeito dos vinte anos que separava a remota lembrança, a paixão que os invadiu foi tão intensa e mútua que a partir daquele momento se jogaram em um relacionamento tão intenso que beirava a irracionalidade. A partir do momento em que ela entrara naquele apartamento, simplesmente não saíra mais de sua vida. E Noah desejava que ela nunca mais saísse. No entanto, Clarinha impôs uma condição: ninguém poderia saber sobre ela e o relacionamento deles.

Clarinha sempre cheirava a algo suave e inebriante, um perfume que parecia flutuar pelo apartamento de Noah, mesmo quando ela não estava presente. Staël, sua irmã, notou isso imediatamente quando visitou seu apartamento. O cheiro era tão forte que ela não pôde deixar de perguntar a Noah se ele havia começado a namorar alguém.

Ele não respondeu.

Quando estava indo embora, andando pelo corredor até o elevador, ela encontrou um chaveiro com o nome do irmão e uma chave, que parecia ser do apartamento de Noah. Para não incomodar mais o irmão e decidida a não fazer perguntas, ela guardou a chave em sua bolsa, sem dar muita atenção ao fato. No próximo encontro devolveria a chave.

Noah começou a desconfiar dos sumiços de Clarinha, que passava os dias fora de casa, só retornando à noite, sempre deixando claro que não admitia perguntas.

Staël estava cada vez mais preocupada com o comportamento errático do irmão. Era óbvio que ele estava se relacionando com alguém que o estava absorvendo cada vez mais.

A tensão entre Noah e Staël aumentou até que ele finalmente revelou a existência de Clarinha.

Staël lembrou-se da menina que haviam conhecido na infância, uma menina mais velha que sempre demonstrava uma afeição exagerada por Noah, e se mudara quando eles tinham por volta de uns 11/12 anos. Ela se lembrava de como os dois eram fofos juntos, mas não fazia ideia de como eles haviam se reencontrado depois de tantos anos. Achou muito estranho quando soube que ela tinha simplesmente tocado a campainha do apartamento do irmão ressurgindo do passado sem mais explicações.

Quando Noah contou a Clarinha que havia revelado seu segredo a Staël, a reação dela foi inesperada e desproporcional. Ela saiu correndo, desaparecendo pelo corredor como se fosse uma sombra. A partir daquela noite, Clarinha não apareceu mais, deixando Noah mergulhado em uma profunda depressão.

Staël, cada vez mais preocupada com o irmão, decidiu ajudá-lo a encontrar Clarinha.

Através das mídias sociais, conseguiu entrar em contato com uma amiga daquela época que lhe conseguiu o contato da irmã mais nova de Clarinha, ressaltando que não tinha contato e nem notícias de como estariam atualmente. Staël passou à noite inteira no notebook pesquisando todas as pistas possíveis. 

Enquanto isso, em sua casa, Noah sentiu o celular vibrar. Era Clarinha, falando objetivamente e sem rodeios:

- Se você quiser ficar comigo, deve deixar tudo para trás e vir me encontrar.

Sem pensar, Noah escreveu uma longa carta para Staël explicando tudo e saiu, determinado a seguir Clarinha.

No dia seguinte, Staël tocou a campainha do apartamento de Noah, mas não obteve resposta. Preocupada, ela usou a chave que encontrara anteriormente no corredor e entrou. No quarto, encontrou a carta de Noah, que detalhava todo o relacionamento com Clarinha e sua decisão de ir embora com ela.

Conforme ia lendo a carta, Staël ia ficando cada vez mais gelada.

Na bolsa, ela tinha uma impressão de um jornal antigo, fruto de sua pesquisa na noite anterior, datado de 20 anos atrás, cuja manchete dizia: "Menina de 12 anos é encontrada morta em escola pública. "

Staël leu a carta novamente, os olhos arregalados de horror. Clarinha havia morrido quando era criança ainda. Como Noah poderia estar num relacionamento tão intenso e avassalador com uma pessoa que não deveria existir mais.  

A chave que servia na porta do apartamento de Noah, o perfume constante, a insistência de Clarinha em manter o relacionamento em segredo conforme o irmão lhe contara... Staël não via lógica nenhuma naquilo. Será que Noah estava num surto psicótico e imaginara tudo aquilo?

Mas havia algo ainda mais perturbador. Quando Staël voltou para o apartamento, ela encontrou outra carta, escondida entre os pertences de Noah. Essa era de alguém com letra de criança que assinara Clarinha, e dizia:

"Eu sempre estive mais perto do que você podia imaginar, Noah. Eu nunca deixei de amá-lo, mesmo depois de partir. Nosso amor sempre foi eterno, você sempre foi meu. Agora, é hora de você me seguir."

Staël teve um pressentimento muito forte de que algo muito errado estava acontecendo e não era de agora.

Foi até o porteiro do prédio, que era bem antigo no serviço e conhecia muito bem tanto Noah quanto ela. Perguntou se ele conhecia a nova namorada de Noah. O porteiro lhe respondeu que havia muitos meses que não o via com ninguém e que ninguém o procurava fazia tempo, confirmando o isolamento no qual o irmão vivia. Ela teve a ideia de ver as gravações das câmeras de segurança do prédio. Qualquer imagem que registrasse a saída ou entrada do irmão acompanhado de Clarinha bastaria para aliviá-la de tantas dúvidas e angústias.

Após rever as imagens dos últimos dez dias, o que durou horas mesmo em velocidade triplicada, ela confirmou que nenhuma mulher, ou qualquer outra pessoa, havia sequer passado pela porta do apartamento de Noah. Na última gravação em que o irmão aparece, é saindo sozinho do apartamento, entrando no elevador onde desce igualmente sozinho até a câmera do lado de fora do prédio registrar sua imagem afastando-se do edifício.

Desde esse dia, ela nunca mais soube do paradeiro do irmão.

 Edmir Saint-Clair

FELIZ DIA DOS PAIS

Por todos os lados a figura do pai ideal vende tudo que é possível e desnecessário. Não para o pai de carne e osso, com seus jeitos, manias e chatices, mas para aquele que o imaginário coletivo cria para preencher as carências comuns a todo ser humano.

Esse é tipo um pai herói, que aparece na hora certa para dar um conselho, para mostrar o caminho. É o amigo que a gente sempre quis, o ombro que a gente precisa. Ele não tem rosto, não tem nome, mas está sempre ali, nas histórias que a gente ouve.

É a voz que fala baixinho na nossa mente, o abraço que esquenta a alma, mesmo quando ele não está por perto. Esse pai que a gente imagina, sem as chatices do dia a dia, é a cara do que a gente busca: um guia, um protetor além do bem e do mal. Ele nos dá força para sonhar alto, para ir além, e perdoa a gente sem fazer drama.
No final das contas, a gente descobre que essa figura inventada não existe.

O Dia dos Pais, é o dia em que a gente se dá conta de toda essa mitificação a qual a figura paterna é submetida. E como o pai ideal não existe. Mas, o nosso pai existe, com todos os defeitos e qualidades de todos os outros seres humanos. 

 
Essa percepção faz com que uma onda de ternura e compreensão nos invada. Um amor diferente, humano. Um amor entre pai e filho. Único e Verdadeiro.

Edmir Saint-Clair


CONVERSAS NECESSÁRIAS - À VENDA



 

CONVERSAS NECESSÁRIAS

Memórias, Contos e Ensaios 

Há histórias que entretêm. Outras, que inquietam.
E há aquelas que nos encontram — 
no silêncio de uma lembrança, no espanto 
de uma revelação, ou naquele instante 
em que tudo parece fazer sentido.
“Conversas Necessárias” é um convite 
ao leitor que busca mais do que palavras:
busca entendimento, evolução e autoconhecimento.

Crônicas reais, contos fantásticos e ensaios filosóficos se entrelaçam 

neste livro que percorre o vivido, o imaginado e o pensado — 

com lirismo, ironia e profundidade.

Porque há conversas que mudam o mundo. 
E outras, que mudam a gente.


 

O SEGREDO

 

 O avô era um homem discreto, de poucas palavras e muitos silêncios. Tinha uma elegância natural e um senso de humor refinado, mas só se revelava a quem estivesse disposto a escutá-lo com atenção. E, nos últimos tempos, quase não tinha com quem falar. Sua vida regrada, metódica e correta não despertava a curiosidade de ninguém.

 Foi casado com a mesma mulher por mais de cinquenta anos, criou três filhos e aposentou-se como funcionário público. Para quem o conheceu superficialmente, era só isso: um bom homem, trabalhador, marido fiel, pai dedicado e avô amoroso. E era mesmo.

 Ninguém jamais imaginaria que ele tivesse algum segredo — era um homem acima de qualquer suspeita.

 O velório foi simples, como ele havia pedido. No salão pequeno e abafado da funerária do bairro, estavam todos reunidos: filhos, netos, sobrinhos, vizinhos e amigos. Gente emocionada, mas serena. Era como se todos já esperassem a sua partida.

 Foi então que, por volta das dez da manhã, entrou uma mulher desconhecida. Tinha cerca de 70 anos, a mesma idade de minha avó, usava um vestido azul-escuro e segurava uma rosa branca nas mãos.

Ela se aproximou devagar, parou diante do caixão, fez um leve aceno de cabeça e, em seguida, beijou a testa do avô com ternura. Depositou a rosa sobre seu peito e sussurrou algo que ninguém conseguiu ouvir.

 Ele a observou com atenção. Ninguém da família a reconhecia. Ficaram todos em silêncio, constrangidos, até que uma tia tomou coragem e perguntou:

 — A senhora conhecia meu pai?

 A mulher sorriu, com uma mistura de melancolia e carinho, e respondeu:

 — Sim, profundamente.

 E saiu. Simples assim. Sem explicar nada.

 Durante dias, o assunto na família e na vizinhança foi esse. Quem era aquela mulher? Por que dissera aquilo? Seria uma amante? Uma amiga do trabalho? Uma parente distante? Ninguém sabia — e ela nunca mais foi vista.

 A rosa branca secou dentro do caixão, e com ela, o segredo do avô. Nunca souberam o que houve entre os dois, nem se havia algo mesmo. Talvez fosse só nossa imaginação tentando dar um toque de mistério à vida de um homem aparentemente comum.

 Mas, para ele, não. Para ele, aquele momento revelou a parte mais fascinante de seu avô: a parte que ele escolheu manter só para ele. Um segredo que ele levou com dignidade, até o fim, para sempre.

 Edmir Saint-Clair

ONDE MORA O DEUS DE CADA UM

“Quem olha para fora, sonha.

Quem olha para dentro, desperta.”

– Carl Gustav Jung

 

    A espiritualidade, em sua forma mais honesta, não se revela em templos, nem se organiza em rituais.

  Ela se desenvolve de forma intuitiva, a partir daquilo que cada um vive, sente e interpreta.

  Em geral, começa influenciada pela família, mas só amadurece na medida em que cada um estabelece uma relação particular com essa dimensão interna.

  É uma experiência subjetiva e profundamente humana.

  Espiritualidade nada tem a ver com religião.

   A tentativa de institucionalizar a espiritualidade gerou uma legião de atravessadores da fé: padres, pastores, gurus, monges, líderes espirituais e vendedores de promessas.

  Todos se colocam entre o indivíduo e sua experiência interior, como se fossem corretores do sagrado.

  Criaram rituais, dogmas, doutrinas — e, com isso, mercados, hierarquias e dependências.

  Transformaram aquilo que deveria ser íntimo em espetáculo. E a paz da alma em produto vendável.

   A verdade é que a espiritualidade autêntica se parece mais com um ato íntimo do que com uma cerimônia pública.

  Ela exige recolhimento, presença integral e privacidade.

  Não deve ser compartilhada em voz alta, nem delegada a terceiros.

  Se fôssemos honestos, admitiríamos: a espiritualidade se assemelha muito mais à masturbação do que à missa, aos cultos ou a quaisquer outros rituais.

  É solitária, subjetiva, silenciosa.

   A neurociência já identificou padrões de ativação cerebral ligados a estados de contemplação profunda, meditação, êxtase e sensação de conexão com algo maior.

  Essas experiências não vêm de fora — são geradas internamente, no cruzamento entre memória, emoção, percepção e silêncio.

  Não há um “canal espiritual” universal. Cada cérebro constrói o seu.

  A transcendência, quando ocorre, é sempre uma construção subjetiva do próprio sistema nervoso.

  É uma descarga interna — e, por isso mesmo, intransferível.

   É mais fácil seguir fórmulas prontas do que suportar o silêncio da própria busca.

  Por isso, tanta gente prefere obedecer a dogmas, repetir mantras decorados ou pagar por bênçãos, em vez de sentar sozinha consigo mesma.

  Não há crescimento espiritual autêntico sem a coragem de assumir a total respondabilidade pela própria transcendência.

  A maturidade espiritual começa quando deixamos de procurar guias e passamos a ouvir o que já está em nós — mesmo que confuso, fragmentado ou incômodo.

   No fim, a espiritualidade legítima não precisa de púlpito, nem de plateia, nem de manual de instruções.

  Ela começa no momento em que você para de procurar fora — e se arrisca a habitar o seu próprio vazio.

  Porque é ali, e só ali, que habita o que chamamos de sagrado.

  É lá que mora o Deus de cada um.

Edmir Saint-Clair

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O CONSELHEIRO NOTURNO

 

O último ano havia sido difícil. Aos 32 anos, divorciado, uma filha de nove e um trabalho que lhe permitia apenas o básico, havia desistido de seus sonhos.

 Sua vida estava suspensa — fazia tempo. De tudo, somente a filha valera a pena. Enquanto caminhava pela av. Afrânio de Mello Franco em direção à Lagoa, naquela quase 1h da madrugada de uma terça-feira chuvosa, tudo o que sentia era pena de si mesmo.

Caminhava vagarosamente, afinal não estava indo a lugar algum, aliás, nunca ia. A insônia, que há tempos o acompanhava, com certeza o faria chegar atrasado ao trabalho na manhã seguinte e isso lhe renderia mais uma bronca do chefe, e o círculo vicioso mais uma vez se autoalimentaria, tirando-lhe os sonos futuros.

Tudo o que desejava era escrever suas histórias. Mas como começar? Por onde?

Tudo o que ele havia escrito até agora, não passava de textos baratos, cheios de clichês, que quando muito impressionavam alguma moça mais desavisada.

 No fundo, ele acreditava que poderia escrever algo bom, mas já não tinha certeza.

Sentia-se um velho em fim de carreira nenhuma.

Pensou na filha e um nó subiu-lhe a garganta, soluçou — sem chorar — um suspiro profundo, como se seu corpo expulsasse o excesso de tristeza que já não suportava.

Seguiu caminhando. Virou na Rua Humberto de Campos e passou pela 14ª Delegacia de Polícia no piloto automático.

A rua estava tão deserta quanto seu espírito. Não via saída.

A solidão soava como paz. Para onde seu pensamento fosse lá estava a angústia que aumentava a ansiedade que aumentava a velocidade com que sua mente lhe aterrorizava com pensamentos fatalistas.

Sentia raiva, ansiedade, angústia — e uma pena imensa de si mesmo. Não tinha para onde correr nem a quem recorrer.

A rua deserta estava em perfeita sintonia com ele. A chuva cessara — restavam os pingos que caíam das folhas encharcadas.

Não fazia frio. Nem calor. Não fazia nada e nada importava.

Acendeu o baseado e entrou na Rua José Linhares. O entorpecimento que a maconha lhe causava era um alívio grande, a sensação do primeiro trago nublava os pensamentos.

Os tragos seguintes aguçaram seus sentidos — o som da chuva, a luz amarelada, filtrada pelas copas densas das árvores.

Na esquina entre a Humberto de Campos e a José Linhares, o prédio em formato de L tem uma marquise em frente à porta de madeira da garagem — um bom abrigo contra a chuva. E é escuro.

Era um canto da rua. Fumando ali, encolhido, sentia-se o melhor que podia naquele momento.

Só percebeu o vulto quando já estava bem perto — e se assustou. Era o porteiro, que parou e o fitou em silêncio. Sentiu-se intimidado e saiu da entrada da garagem.

Sentir-se intimidado não era novidade. Seus pais faziam questão de mantê-lo familiarizado com esse sentimento.

Era um exilado — um estorvo confinado espontaneamente a um quarto de portas sempre fechadas.

A sensação era de constante ameaça. Velada, obscura e onipresente.

Uma prisão sem grades, uma tortura sem ferros.

Pensou que a única coisa em comum entre aquelas três pessoas, que poderiam ser uma família, era a certeza de que ele não era nada.

E nunca seria. Ele deu errado. Sua vida era um erro.

Caminhou até a metade do quarteirão e parou diante de um prédio em construção. Ali era mais escuro, sem porteiro. Encostou-se num carro estacionado ao meio-fio.

Foi impossível não notar o carro preto reluzente, de linhas futuristas. Os vidros, completamente negros, bloqueavam a visão do interior.

Era o tipo de carro que teria, se pudesse.

Mas não podia. Depois do divórcio, voltou a morar com os pais — e a verdade é que provavelmente jamais sairia de lá.

E, mais uma vez, pensou em algo que há tempos lhe seduzia: a morte.

Acabara de comprar uma caixa de cada um de seus ansiolíticos e remédios para dormir — na única farmácia que lhe vendia sem receita, com ágio, é claro.

Seus olhos choraram o choro de sempre. A rua estava escura como sua alma.

Aquela angústia intransponível o levou de volta a um pensamento que amadurecia nas noites insones.

— Trinta comprimidos de ansiolíticos mais trinta soníferos... isso vai me livrar de tudo — pensou.

Dormir — a única coisa que ele realmente gostava, e sabia fazer. E assim, tudo estaria resolvido.

Enquanto puxava um trago mais fundo, sentiu a porta do carro onde estava encostado se abrir. Sua reação foi automática: escondeu o baseado. Ele vivia escondendo tudo de todos.

Um homem bem-vestido, usando um chapéu preto, no estilo dos filmes noir em preto e branco, que lhe cobria o rosto, aproximou-se. O som de sua voz parecia-lhe familiar quando o homem lhe pediu para fumar de seu baseado.

A princípio, hesitou — mas havia algo confiável naquele homem. Manteve a cabeça abaixada, tentando esconder as lágrimas.

O estranho pegou o baseado e, enquanto prendia a fumaça, dirigiu-se a ele — sem mostrar o rosto.

— Sei exatamente o que você está sentindo agora...

Levantou a cabeça, tentando ver o rosto do homem. Mas o estranho desviou o olhar e continuou.

— Não se preocupe. Você não vai fazer o que está pensando, eu lhe garanto.

Puxou mais uma vez o cigarro, fazendo com que a brasa reluzisse e uma cortina de fumaça tornasse ainda mais difícil a visão de seu rosto.

As palavras daquele homem o assustavam. Afinal, como poderia ele saber o que estava pensando?

Não poderia, pensou, ele deveria estar apenas se utilizando de clichês, pois não seria difícil alguém perceber sua angústia.

E o estranho continuou.

— Não tenha receio. Eu sei que tudo isso parece — e é — muito estranho. Mas este momento vai mudar profundamente a sua vida. Para melhor. O tempo vai lhe mostrar... apenas acredite.

E continuou falando, como se conhecesse cada pensamento que lhe passara pela cabeça nos instantes anteriores àquele encontro improvável.

O estranho seguia falando, calma e pausadamente, enquanto as lágrimas escorriam — incontroláveis — pelo seu rosto.

Ele mantinha a cabeça baixa, tentando esconder a profusa emoção. O estranho, de chapéu preto, facilitava sua tarefa evitando olhar em sua direção, sem parar de falar.

Parecia saber exatamente o que fazia ali.

Foram interrompidos por uma jovem que irrompeu vinda de algum lugar que ele não percebeu.

— Vamos, pai?

A voz feminina o fez se virar a tempo de ver uma mulher de cabelos lisos, longos e muito negros entrando no carro. Não conseguiu ver-lhe o rosto, mas o som daquela voz lhe provocou uma sensação estranha — algo que não soube identificar.

O carro arrancou, e o homem não se despediu. Ele não tivera tempo de perguntar nada. Na verdade — percebeu — não dissera uma só palavra. E, mesmo assim, ele sabia tudo.

As lágrimas haviam cessado. Ele estava quase catatônico — estático, sem reação. Fumou o resto do baseado e, quando acabou, ainda não conseguia ordenar o raciocínio.

Quem era aquele estranho que parecia conhecê-lo tão bem?

O que ele fazia ali, parado diante de um prédio em construção, à uma da madrugada — como se o esperasse? De onde surgira aquela mulher que o chamou de pai?

Talvez estivesse esperando a filha — que ele nem viu de onde surgiu. Essa lhe pareceu uma boa resposta. Mas... e as outras?

A cabeça começou a rodar — por pouco não caiu.

Quando se recuperou, percebeu algo estranho: a angústia havia sumido. Completamente.

Subitamente, a ideia de suicídio perdeu o sentido. De algum modo, aquele estranho modificou seu pensamento.

Voltou para casa em busca de respostas para perguntas que mal conseguia formular — e muito menos responder.

Por fim, já em casa, adormeceu profundamente — como não acontecia há anos.

No dia seguinte, passou a manhã inteira no trabalho, fazendo contas. Concluiu que, se fosse demitido, o que receberia de indenização e seguro-desemprego o manteria por alguns meses. Tempo suficiente para tentar um trabalho que realmente lhe trouxesse algum prazer.

Sentia-se mais motivado — e sabia que o estranho tinha tudo a ver com isso.

As palavras daquele homem o haviam influenciado de uma forma diferente, e ele não conseguia entender por que elas haviam penetrado tão profundamente em seu espírito.

O Conselheiro Noturno — como passou a chamá-lo — falara com tanta segurança que acabou por contagiá-lo de forma definitiva.

Desde aquele dia, quando o desânimo batia, recorria à lembrança do Conselheiro Noturno.

Passou a visitar agências de publicidade, oferecendo-se como redator. Nada parecia promissor no início — até que conseguiu um estágio, não remunerado, numa agência pequena.

A partir daí,  sua vida começou a mudar. Mas era só o começo de uma longa caminhada.

Vinte e cinco anos se passaram.

Agora, ele é diretor de criação de uma prestigiada agência de propaganda, com dois livros de contos e um de poesias publicados e um terceiro em fase de acabamento.

Tem um carro que lhe parece semelhante ao do Conselheiro Noturno — não igual, claro: o seu é do ano, e o outro veio há mais de duas décadas atrás. Mas estava satisfeito com algo que, para ele, era parecido.

Fora isso, a lembrança daquela noite nunca se desvaneceu.

Hoje é um dia especial. Sua filha acaba de se mudar para o apartamento que ele deu — e que ela escolheu. Vão sair para jantar e comemorar o primeiro dia dela na nova casa. Uma ocasião única, com a qual ele sonhara muitas vezes.

Chega à agência um pouco mais cedo do que seu costume — não quer se alongar nos compromissos de trabalho. O dia está cinza e chuvoso, mas para ele o dia parece radiante. Dias de chuva no Rio de Janeiro podem ser belos e agradáveis.

O celular toca. É sua filha, pedindo o carro emprestado para resolver tarefas da produção do figurino de uma peça teatral em que está envolvida. Combinam que ela deixará o veículo na garagem dele no final da tarde.

Resolve almoçar sozinho, perto da agência, em Ipanema. O tempo segue chuvoso e, depois de comer, sente vontade de caminhar até a Praça Nossa Senhora da Paz. O chão está molhado e a praça vazia. Ele espana as gotas do banco e se senta.

No mesmo instante, o Conselheiro lhe vem à cabeça. Uma sensação estranha o invade — não sabe o que é, mas já sentiu antes. Uma única vez.

O Conselheiro Noturno parecia rondá-lo.

Já passa da meia-noite quando sua filha liga. Diz que ficou arrumando algumas coisas e acabou perdendo a hora. Deixa-o à vontade para remarcarem — se ele achar que está tarde, podem deixar o jantar para o dia seguinte.

Mas ele insiste. Aquele é um dia único na vida dos dois. Reconfirmam o compromisso. Ele vai buscá-la em casa.

Ele para em frente ao prédio da filha e permanece no carro, esperando que ela desça.

De repente, sente a traseira do veículo abaixar — alguém se apoiou ali. Um cheiro de maconha invade o interior do veículo pela fresta da janela semiaberta, um arrepio intenso percorre sua espinha e irradia-se por todo o corpo.

Só então percebe que está exatamente no mesmo lugar de vinte e cinco anos atrás.

Vira-se para trás tentando ver quem se apoiara no carro e, nesse instante, ao olhar de relance para o banco traseiro, vê um chapéu preto — provavelmente, do figurino que sua filha estava produzindo — e que havia sido esquecido ali.

Naquele momento, ele finalmente descobre quem é o Conselheiro Noturno.

Abre a porta do carro, pega o chapéu — e vai cumprir seu destino.

 - Edmir Saint-Clair


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