O avô era um
homem discreto, de poucas palavras e muitos silêncios. Tinha uma elegância
natural e um senso de humor refinado, mas só se revelava a quem estivesse
disposto a escutá-lo com atenção. E, nos últimos tempos, quase não tinha com quem
falar. Sua vida regrada, metódica e correta não despertava a curiosidade de
ninguém.
Foi casado com
a mesma mulher por mais de cinquenta anos, criou três filhos e aposentou-se como
funcionário público. Para quem o conheceu superficialmente, era só isso: um bom
homem, trabalhador, marido fiel, pai dedicado e avô amoroso. E era mesmo.
Ninguém jamais imaginaria
que ele tivesse algum segredo — era um homem acima de qualquer suspeita.
O velório foi
simples, como ele havia pedido. No salão pequeno e abafado da funerária do
bairro, estavam todos reunidos: filhos, netos, sobrinhos, vizinhos e amigos.
Gente emocionada, mas serena. Era como se todos já esperassem a sua partida.
Foi então que,
por volta das dez da manhã, entrou uma mulher desconhecida. Tinha cerca de 70
anos, a mesma idade de minha avó, usava um vestido azul-escuro e segurava uma
rosa branca nas mãos.
Ela se aproximou
devagar, parou diante do caixão, fez um leve aceno de cabeça e, em seguida,
beijou a testa do avô com ternura. Depositou a rosa sobre seu peito e
sussurrou algo que ninguém conseguiu ouvir.
Ele a observou
com atenção. Ninguém da família a reconhecia. Ficaram todos em silêncio,
constrangidos, até que uma tia tomou coragem e perguntou:
— A senhora
conhecia meu pai?
A mulher
sorriu, com uma mistura de melancolia e carinho, e respondeu:
— Sim,
profundamente.
E saiu. Simples
assim. Sem explicar nada.
Durante dias, o
assunto na família e na vizinhança foi esse. Quem era aquela mulher? Por que
dissera aquilo? Seria uma amante? Uma amiga do trabalho? Uma parente distante? Ninguém
sabia — e ela nunca mais foi vista.
A rosa branca
secou dentro do caixão, e com ela, o segredo do avô. Nunca souberam o que
houve entre os dois, nem se havia algo mesmo. Talvez fosse só nossa imaginação
tentando dar um toque de mistério à vida de um homem aparentemente comum.
Mas, para ele,
não. Para ele, aquele momento revelou a parte mais fascinante de seu avô: a
parte que ele escolheu manter só para ele. Um segredo que ele levou com
dignidade, até o fim, para sempre.
A espiritualidade,
em sua forma mais honesta, não se revela em templos, nem se organiza em
rituais.
Ela se desenvolve
de forma intuitiva, a partir daquilo que cada um vive, sente e interpreta.
Em geral, começa
influenciada pela família, mas só amadurece na medida em que cada um estabelece
uma relação particular com essa dimensão interna.
É uma experiência
subjetiva e profundamente humana.
Espiritualidade
nada tem a ver com religião.
A tentativa de
institucionalizar a espiritualidade gerou uma legião de atravessadores da fé:
padres, pastores, gurus, monges, líderes espirituais e vendedores de promessas.
Todos se colocam entre
o indivíduo e sua experiência interior, como se fossem corretores do sagrado.
Criaram rituais,
dogmas, doutrinas — e, com isso, mercados, hierarquias e dependências.
Transformaram
aquilo que deveria ser íntimo em espetáculo. E a paz da alma em produto
vendável.
A verdade é que a
espiritualidade autêntica se parece mais com um ato íntimo do que com uma
cerimônia pública.
Ela exige
recolhimento, presença integral e privacidade.
Não deve ser
compartilhada em voz alta, nem delegada a terceiros.
Se fôssemos
honestos, admitiríamos: a espiritualidade se assemelha muito mais à masturbação
do que à missa, aos cultos ou a quaisquer outros rituais.
É solitária,
subjetiva, silenciosa.
A neurociência já
identificou padrões de ativação cerebral ligados a estados de contemplação
profunda, meditação, êxtase e sensação de conexão com algo maior.
Essas experiências
não vêm de fora — são geradas internamente, no cruzamento entre memória,
emoção, percepção e silêncio.
Não há um “canal
espiritual” universal. Cada cérebro constrói o seu.
A transcendência,
quando ocorre, é sempre uma construção subjetiva do próprio sistema nervoso.
É uma descarga
interna — e, por isso mesmo, intransferível.
É mais fácil seguir
fórmulas prontas do que suportar o silêncio da própria busca.
Por isso, tanta
gente prefere obedecer a dogmas, repetir mantras decorados ou pagar por
bênçãos, em vez de sentar sozinha consigo mesma.
Não há crescimento
espiritual autêntico sem a coragem de assumir a total respondabilidade pela própria transcendência.
A maturidade
espiritual começa quando deixamos de procurar guias e passamos a ouvir o que já
está em nós — mesmo que confuso, fragmentado ou incômodo.
No fim, a
espiritualidade legítima não precisa de púlpito, nem de plateia, nem de manual de
instruções.
Ela começa no
momento em que você para de procurar fora — e se arrisca a habitar o seu
próprio vazio.
Porque é ali, e só
ali, que habita o que chamamos de sagrado.
O último ano havia sido difícil.
Aos 32 anos, divorciado, uma filha de nove e um trabalho que lhe permitia
apenas o básico, havia desistido de seus sonhos.
Sua vida estava suspensa — fazia
tempo. De tudo, somente a filha valera a pena. Enquanto caminhava pela av.
Afrânio de Mello Franco em direção à Lagoa, naquela quase 1h da madrugada de
uma terça-feira chuvosa, tudo o que sentia era pena de si mesmo.
Caminhava vagarosamente, afinal
não estava indo a lugar algum, aliás, nunca ia. A insônia, que há tempos o
acompanhava, com certeza o faria chegar atrasado ao trabalho na manhã seguinte
e isso lhe renderia mais uma bronca do chefe, e o círculo vicioso mais uma vez
se autoalimentaria, tirando-lhe os sonos futuros.
Tudo o que desejava era escrever
suas histórias. Mas como começar? Por onde?
Tudo o que ele havia escrito até
agora, não passava de textos baratos, cheios de clichês, que quando muito
impressionavam alguma moça mais desavisada.
No fundo, ele acreditava que
poderia escrever algo bom, mas já não tinha certeza.
Sentia-se um velho em fim de
carreira nenhuma.
Pensou na filha e um nó subiu-lhe
a garganta, soluçou — sem chorar — um suspiro profundo, como se seu corpo
expulsasse o excesso de tristeza que já não suportava.
Seguiu caminhando. Virou na Rua
Humberto de Campos e passou pela 14ª Delegacia de Polícia no piloto automático.
A rua estava tão deserta quanto
seu espírito. Não via saída.
A solidão soava como paz. Para
onde seu pensamento fosse lá estava a angústia que aumentava a ansiedade que
aumentava a velocidade com que sua mente lhe aterrorizava com pensamentos
fatalistas.
Sentia raiva, ansiedade, angústia
— e uma pena imensa de si mesmo. Não tinha para onde correr nem a quem
recorrer.
A rua deserta estava em perfeita
sintonia com ele. A chuva cessara — restavam os pingos que caíam das folhas
encharcadas.
Não fazia frio. Nem calor. Não
fazia nada e nada importava.
Acendeu o baseado e entrou na Rua
José Linhares. O entorpecimento que a maconha lhe causava era um alívio grande,
a sensação do primeiro trago nublava os pensamentos.
Os tragos seguintes aguçaram seus
sentidos — o som da chuva, a luz amarelada, filtrada pelas copas densas das
árvores.
Na esquina entre a Humberto de
Campos e a José Linhares, o prédio em formato de L tem uma marquise em frente à
porta de madeira da garagem — um bom abrigo contra a chuva. E é escuro.
Era um canto da rua. Fumando ali,
encolhido, sentia-se o melhor que podia naquele momento.
Só percebeu o vulto quando já
estava bem perto — e se assustou. Era o porteiro, que parou e o fitou em
silêncio. Sentiu-se intimidado e saiu da entrada da garagem.
Sentir-se intimidado não era
novidade. Seus pais faziam questão de mantê-lo familiarizado com esse
sentimento.
Era um exilado — um estorvo
confinado espontaneamente a um quarto de portas sempre fechadas.
A sensação era de constante
ameaça. Velada, obscura e onipresente.
Uma prisão sem grades, uma
tortura sem ferros.
Pensou que a única coisa em comum
entre aquelas três pessoas, que poderiam ser uma família, era a certeza de que
ele não era nada.
E nunca seria. Ele deu errado.
Sua vida era um erro.
Caminhou até a metade do
quarteirão e parou diante de um prédio em construção. Ali era mais escuro, sem
porteiro. Encostou-se num carro estacionado ao meio-fio.
Foi impossível não notar o carro
preto reluzente, de linhas futuristas. Os vidros, completamente negros,
bloqueavam a visão do interior.
Era o tipo de carro que teria, se
pudesse.
Mas não podia. Depois do
divórcio, voltou a morar com os pais — e a verdade é que provavelmente jamais
sairia de lá.
E, mais uma vez, pensou em algo
que há tempos lhe seduzia: a morte.
Acabara de comprar uma caixa de
cada um de seus ansiolíticos e remédios para dormir — na única farmácia que lhe
vendia sem receita, com ágio, é claro.
Seus olhos choraram o choro de
sempre. A rua estava escura como sua alma.
Aquela angústia intransponível o
levou de volta a um pensamento que amadurecia nas noites insones.
— Trinta comprimidos de
ansiolíticos mais trinta soníferos... isso vai me livrar de tudo — pensou.
Dormir — a única coisa que ele
realmente gostava, e sabia fazer. E assim, tudo estaria resolvido.
Enquanto puxava um trago mais
fundo, sentiu a porta do carro onde estava encostado se abrir. Sua reação foi
automática: escondeu o baseado. Ele vivia escondendo tudo de todos.
Um homem bem-vestido, usando um
chapéu preto, no estilo dos filmes noir em preto e branco, que lhe cobria o
rosto, aproximou-se. O som de sua voz parecia-lhe familiar quando o homem lhe
pediu para fumar de seu baseado.
A princípio, hesitou — mas havia
algo confiável naquele homem. Manteve a cabeça abaixada, tentando esconder as
lágrimas.
O estranho pegou o baseado e,
enquanto prendia a fumaça, dirigiu-se a ele — sem mostrar o rosto.
— Sei exatamente o que você está
sentindo agora...
Levantou a cabeça, tentando ver o
rosto do homem. Mas o estranho desviou o olhar e continuou.
— Não se preocupe. Você não vai
fazer o que está pensando, eu lhe garanto.
Puxou mais uma vez o cigarro,
fazendo com que a brasa reluzisse e uma cortina de fumaça tornasse ainda mais
difícil a visão de seu rosto.
As palavras daquele homem o
assustavam. Afinal, como poderia ele saber o que estava pensando?
Não poderia, pensou, ele deveria
estar apenas se utilizando de clichês, pois não seria difícil alguém perceber
sua angústia.
E o estranho continuou.
— Não tenha receio. Eu sei que
tudo isso parece — e é — muito estranho. Mas este momento vai mudar
profundamente a sua vida. Para melhor. O tempo vai lhe mostrar... apenas
acredite.
E continuou falando, como se
conhecesse cada pensamento que lhe passara pela cabeça nos instantes anteriores
àquele encontro improvável.
O estranho seguia falando, calma
e pausadamente, enquanto as lágrimas escorriam — incontroláveis — pelo seu
rosto.
Ele mantinha a cabeça baixa,
tentando esconder a profusa emoção. O estranho, de chapéu preto, facilitava sua
tarefa evitando olhar em sua direção, sem parar de falar.
Parecia saber exatamente o que
fazia ali.
Foram interrompidos por uma jovem
que irrompeu vinda de algum lugar que ele não percebeu.
— Vamos, pai?
A voz feminina o fez se virar a
tempo de ver uma mulher de cabelos lisos, longos e muito negros entrando no
carro. Não conseguiu ver-lhe o rosto, mas o som daquela voz lhe provocou uma
sensação estranha — algo que não soube identificar.
O carro arrancou, e o homem não
se despediu. Ele não tivera tempo de perguntar nada. Na verdade — percebeu —
não dissera uma só palavra. E, mesmo assim, ele sabia tudo.
As lágrimas haviam cessado. Ele
estava quase catatônico — estático, sem reação. Fumou o resto do baseado e,
quando acabou, ainda não conseguia ordenar o raciocínio.
Quem era aquele estranho que
parecia conhecê-lo tão bem?
O que ele fazia ali, parado
diante de um prédio em construção, à uma da madrugada — como se o esperasse? De
onde surgira aquela mulher que o chamou de pai?
Talvez estivesse esperando a
filha — que ele nem viu de onde surgiu. Essa lhe pareceu uma boa resposta.
Mas... e as outras?
A cabeça começou a rodar — por
pouco não caiu.
Quando se recuperou, percebeu
algo estranho: a angústia havia sumido. Completamente.
Subitamente, a ideia de suicídio
perdeu o sentido. De algum modo, aquele estranho modificou seu pensamento.
Voltou para casa em busca de
respostas para perguntas que mal conseguia formular — e muito menos responder.
Por fim, já em casa, adormeceu
profundamente — como não acontecia há anos.
No dia seguinte, passou a manhã
inteira no trabalho, fazendo contas. Concluiu que, se fosse demitido, o que
receberia de indenização e seguro-desemprego o manteria por alguns meses. Tempo
suficiente para tentar um trabalho que realmente lhe trouxesse algum prazer.
Sentia-se mais motivado — e sabia
que o estranho tinha tudo a ver com isso.
As palavras daquele homem o
haviam influenciado de uma forma diferente, e ele não conseguia entender por
que elas haviam penetrado tão profundamente em seu espírito.
O Conselheiro Noturno — como
passou a chamá-lo — falara com tanta segurança que acabou por contagiá-lo de
forma definitiva.
Desde aquele dia, quando o
desânimo batia, recorria à lembrança do Conselheiro Noturno.
Passou a visitar agências de
publicidade, oferecendo-se como redator. Nada parecia promissor no início — até
que conseguiu um estágio, não remunerado, numa agência pequena.
A partir daí, sua vida começou a mudar. Mas era só o começo
de uma longa caminhada.
Vinte
e cinco anos se passaram.
Agora, ele é diretor de criação
de uma prestigiada agência de propaganda, com dois livros de contos e um de
poesias publicados e um terceiro em fase de acabamento.
Tem um carro que lhe parece
semelhante ao do Conselheiro Noturno — não igual, claro: o seu é do ano, e o
outro veio há mais de duas décadas atrás. Mas estava satisfeito com algo que,
para ele, era parecido.
Fora isso, a lembrança daquela
noite nunca se desvaneceu.
Hoje é um dia especial. Sua filha
acaba de se mudar para o apartamento que ele deu — e que ela escolheu. Vão sair
para jantar e comemorar o primeiro dia dela na nova casa. Uma ocasião única,
com a qual ele sonhara muitas vezes.
Chega à agência um pouco mais
cedo do que seu costume — não quer se alongar nos compromissos de trabalho. O
dia está cinza e chuvoso, mas para ele o dia parece radiante. Dias de chuva no
Rio de Janeiro podem ser belos e agradáveis.
O celular toca. É sua filha,
pedindo o carro emprestado para resolver tarefas da produção do figurino de uma
peça teatral em que está envolvida. Combinam que ela deixará o veículo na
garagem dele no final da tarde.
Resolve almoçar sozinho, perto da
agência, em Ipanema. O tempo segue chuvoso e, depois de comer, sente vontade de
caminhar até a Praça Nossa Senhora da Paz. O chão está molhado e a praça vazia.
Ele espana as gotas do banco e se senta.
No mesmo instante, o Conselheiro
lhe vem à cabeça. Uma sensação estranha o invade — não sabe o que é, mas já
sentiu antes. Uma única vez.
O Conselheiro Noturno parecia
rondá-lo.
Já passa da meia-noite quando sua
filha liga. Diz que ficou arrumando algumas coisas e acabou perdendo a hora.
Deixa-o à vontade para remarcarem — se ele achar que está tarde, podem deixar o
jantar para o dia seguinte.
Mas ele insiste. Aquele é um dia
único na vida dos dois. Reconfirmam o compromisso. Ele
vai buscá-la em casa.
Ele para em frente ao prédio da
filha e permanece no carro, esperando que ela desça.
De repente, sente a traseira do
veículo abaixar — alguém se apoiou ali. Um cheiro de maconha invade o interior
do veículo pela fresta da janela semiaberta, um arrepio intenso percorre sua
espinha e irradia-se por todo o corpo.
Só então percebe que está
exatamente no mesmo lugar de vinte e cinco anos atrás.
Vira-se para trás tentando ver
quem se apoiara no carro e, nesse instante, ao olhar de relance para o banco
traseiro, vê um chapéu preto — provavelmente, do figurino que sua filha estava
produzindo — e que havia sido esquecido ali.
Naquele momento, ele finalmente
descobre quem é o Conselheiro Noturno.
Abre a porta do carro, pega o
chapéu — e vai cumprir seu destino.