COACH LITERÁRIO
DESTINO MENINO.
Todo minuto é momento
Um invento, um sentido,
Por fora, por dentro,
É cada segundo, sem tempo,
É quase nada no vento
A vida são horas correndo
e se existe ou não um destino,
Ele é só um menino
que não sabe onde ir
A verdade é que nada se sabe,
Se é do errado que se chega ao certo,
Se é para frente, para trás ou para os lados,
Porque não tem lado certo, nem errado
Não tem nem em cima,
nem embaixo
E os minutos continuam correndo,
E a gente sempre mais lentos,
Sem saber para que andar
Já que é o tempo que nos carrega
Até onde quiser nos levar
A mim, que me leve
em qualquer pé de vento
Para um tempo que seja de amar.
– Edmir Saint-Clair
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NOITE DE NATAL
Seu pai o despertou dizendo-lhe que era o dia de retirar os pontos. Dia 24 de dezembro, mas ele não tinha a menor ideia, nem de que dia da semana era aquele e muito menos do mês.
Acordou e permaneceu deitado, tudo estava muito estranho. Ele se sentia estranho demais. Não tinha noção de que dia era aquele, nem de quanto tempo havia "dormido", o que, até aquele momento, pensava ter sido um sono normal. Nunca se sentira daquela forma. O corpo fraco, tremolo, a cabeça não encontrava um ponto de equilíbrio sobre seu pescoço e parecia pender para os lados. Uma intensa coriza começou a lhe escorrer pelo nariz.
Passou a mão no rosto e sentiu o curativo grande no supercílio direito. Lembrou-se do acidente. Um pensamento racional no meio daquele caos mental o fez dar-se conta que havia passado muito mais tempo do que imaginava.
Levantou-se com muita dificuldade. Quando deu por si já estava deitado no banco de trás do carro do pai. As superquadras de Brasília possuem quebra molas enormes e sua cabeça explode a cada solavanco. Devia estar resfriado, pensou, ainda bem que trouxe um rolo de papel higiênico para dar conta daquela coriza incomum. Assua o nariz sente uma pontada aguda na cabeça e ouve um barulho vindo de dentro de seu crânio.
Quando o pai para na entrada do Hospital das Forças Armadas, ele mal consegue saltar do carro, no que foi ajudado por não sabe quem.
Apoiando-se no bom samaritano, foi conduzido até a entrada do prédio, enquanto seu pai fora estacionar o carro. Ouvia sua cabeça fazer mais barulhos esquisitos, nunca havia sentido aquilo. Seu nariz escorria numa coriza que nunca tivera antes. De repente, ouve uma voz elevar-se com autoridade:
- Tragam uma maca imediatamente para esse rapaz!
Era um médico e o rapaz era ele.
Deitaram-no na maca, que chegou junto com seu pai que vinha do estacionamento.
Ele não tinha a menor ideia do estava acontecendo, estava confuso e assustado. Sentiu-se frágil e indefeso. Não parecia um pesadelo, ele sabia que era real.
O médico lhe fez algumas perguntas que seu pai o ajudou a responder. Só então se deu conta de que "dormira" mais de uma semana e que não se lembrava de nada do que acontecera nesse ínterim. A não ser de ter acordado uma noite, depois do impacto no rodapé que lhe rasgou o lado direito frontal da cabeça.
Daquele único dia em que acordou, em casa, depois do acidente, sua leve lembrança era da dor lancinante na cabeça que o fizera implorar para que seus pais o levassem para o hospital. Eles não o levaram. Porque não o fizeram? E ele "dormiu" mais alguns dias.
Não se lembrava de ter acordado nenhuma vez, além daquela. Não se lembrava de como se alimentara, bebera água, como fora ao banheiro ou como fizera qualquer outra coisa. Um ser humano não sobreviveria por uma semana sem cumprir essas necessidades fisiológicas. Era como se aqueles dias não tivessem existido. Mas, se ele estava ali naquele no hospital, vivo, com certeza aqueles dias existiram, pensou. Quando tudo passasse alguém haveria de lhe dar aquelas respostas.
Lembrou-se que, nos momentos seguintes ao acidente que provocara a fratura no crânio, já sentia que havia acontecido alguma coisa mais grave com o seu cérebro e pediu que tirassem um raio-X do local da batida (ano 1975 - século 20).
Em vez disso, sua mãe ignorou seus pedidos e convenceu os médicos de que ele estava apenas muito “nervoso” e "exagerando" o ocorrido e, em vez do exame, lhe aplicaram um calmante endovenoso que o fez dormir e acordar somente mais de uma semana depois (pelo menos era assim na memória dele). Foram exatos 10 dias que não existiram.
Porque não acreditaram quando ele se queixou da estranha sensação que sentira no cérebro no dia do acidente?
Porque razão sua mãe não acreditara nos graves sintomas dos quais se queixara durante aquele trajeto até o hospital, logo após o violento choque de seu crânio com o chão?
Quando viu seu pai e o médico que o socorrera na entrada se aproximando pelo imenso corredor, foi percebendo que a expressão de ambos era de tensão.
O pai se antecipou ao médico e falou:
- Você vai ter que ser internado.
- O que eu tenho? Perguntou assustado.
O médico tomou a palavra:
- Está com suspeita de fratura de crânio e ruptura da dura-máter, uma das duas membranas que envolve o cérebro, junto com a meninge. O líquido que estava saindo do seu nariz é o líquido que fica dentro dessa membrana e que envolve, protege e estabiliza o cérebro. A dor que você está sentindo é a pressão do ar que entrou quando o líquido saiu. Da mesma forma que o ar entra numa garrafa quando derramamos o seu conteúdo líquido.
Antes que ele perguntasse ou esboçasse qualquer reação, um enfermeiro começou empurrar sua maca em direção à sala de raios-X.
Ele estava muito assustado, com medo de morrer. Aos 19 anos, a ideia da morte é ainda muito mais aterrorizante. Nunca havia passado por nada tão sério com relação à saúde ou a acidentes graves. Tudo aquilo que o médico acabara de lhe falar soava muito amedrontador.
Os exames foram feitos e confirmou-se o diagnóstico inicial.
Foi levado para o 9° andar, neurologia, do Hospital das Forças Armadas, e instalado em um quarto branco, estéril e modernoso.
O médico regulou sua cama hospitalar para que a inclinação da cabeça ficasse no ângulo exato e devido. Ele não poderia se levantar para nada, absolutamente nada. Tampouco poderia se virar para os lados, na cama. Deitado de barriga para cima, sem poder ver televisão, ler ou qualquer outra atividade que pudesse exigir, mesmo que minimamente, esforço para o seu cérebro dolorido e inchado. Não poderia sair daquela posição nem quando estivesse dormindo.
A noite chegou, 24 de dezembro, véspera de natal. Ele não acreditava no que estava vivendo. A chuva intensa, que começou a cair e a escorrer pelo vidro da janela, parecia tornar aquela noite ainda mais surreal.
A tempestade fez com que as linhas telefônicas parassem de funcionar, o que não era raro naquele tempo, isolando-o ainda mais da vida, e interrompendo a comunicação com a única pessoa que se importava com ele naquela noite de terror, sua namorada que, por ter apenas 16 anos, não pôde passar a noite com ele no hospital, por ser menor de idade.
A interrupção aumentou ainda mais aquela profunda tristeza que não conhecia. O manto negro da solidão absoluta começou a tomar conta de tudo, até chegar ao recôndito mais profundo de sua alma.
Naquela noite de Natal suas únicas companhias foram o medo da morte, a solidão, o abandono e a ausência doída de todos que amava. E as lágrimas lhe caíram até que o sono o vencesse.
Nunca entendeu porque sua mãe, seu pai e seus irmãos o abandonaram, daquela forma, durante um momento tão grave e crítico, quando acabara de saber que corria real e iminente perigo de morte, conforme o neurologista revelou.
Naquele Natal, quando ele mais precisava, todos estavam ausentes, ocupados com os festejos natalinos em família.
Nunca mais gostou do Natal.
Nunca compreendeu porque haviam feito aquilo com ele.
Mesmo décadas depois, ninguém em sua família sequer aceitava tocar naquele assunto, escutá-lo ou respondê-lo. Sempre que ele tentava, obtinha a mesma resposta vazia, impessoal e desprovida de qualquer empatia, carinho ou solidariedade:
- Esquece isso...
Dita sempre de uma forma fria, desinteressada e lacônica.
E ele nunca soube o que aconteceu naqueles 10 dias que não existiram.
- Edmir Saint-Clair
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SAINDO DA DEPRESSÃO
De
repente, ele se deu conta que as coisas começavam a entrar num sincronismo que há
muito não existia. Pequenos detalhes se encaixando no momento certo.
O
sabonete, que acabava no meio do banho, agora tem outro novinho à mão. A toalha,
que ele não se esquecera de pegar, a mesma que só se lembrava de não tê-la pego
quando estava fechando o chuveiro. O banho, que sempre lhe trouxe bem estar, ainda
mais no verão carioca. A depressão havia lhe tirado todos os prazeres, até o da
higiene.
De
repente, o encadeamento dos eventos rotineiros parecia entrar em sintonia, um
acontecimento não atrapalha mais o outro, agora, todos parecem se complementar. Ele começou a perceber um aumento na
capacidade de tomar pequenas decisões, como a que o fez comprar o sabonete
antes que o outro acabasse, como era comum acontecer. A depressão lhe tirara a
capacidade de decidir sobre tudo e qualquer coisa.
Seu
cérebro estava se curando, buscando a estabilidade, a homeostase, se
consertando.
Ele
sabe que se não atrapalhar seu cérebro, tudo vai continuar a entrar, cada vez
mais, em sintonia.
Sintonia com o quê ou quem? Consigo mesmo. Com a sensação de se bastar,
de não precisar de nada além da água caindo sobre seu corpo para ter aquela
sensação de plenitude que sentia naquele agora.
Percebeu
que estava fora do inferno. Um profundo alívio, do qual sobreveio uma leveza
indescritível. Perdeu o sentido de
urgência, a ansiedade se dissipou.
Não
foi mágica, foi ajuda, pedira socorro. Sozinho, teria morrido. Foi terapia, foi
neuropsicologia. Foi a ciência que ajudou seu cérebro a se curar, deixando-o
ser maravilhosamente fantástico como o de todos os seres humanos, permitindo
que se reprocessasse e arrumasse toda a bagunça. A ciência fora capaz de lhe
curar, intercedendo, efetivamente, na desensibilização e reprocessamento de
traumas que lhe afetavam muito mais do que supunha sua vã filosofia.
Até
aquele momento, ele não acreditava que sairia daquele mundo de horror chamado
depressão. Ninguém que esteja passando por ela acredita que possa vencê-la, faz
parte da doença.
Naquele
momento, a água, o sabonete e a toalha lhe mostraram que ele estava de volta à
vida.
Sobrevivera.
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